domingo, 20 de janeiro de 2013

Raúl Castro, o verdadeiro dissidente

No Ocidente, Cuba é representada como uma sociedade fechada em si mesma, na qual o debate crítico é inexistente e a pluralidade das ideias é proibida por quem está no poder. Na realidade, Cuba está longe de ser uma sociedade monolítica que compartilharia um pensamento único.

Com efeito, a cultura do debate se desenvolve mais a cada dia e é simbolizada pelo Presidente cubano Raúl Castro, que se converteu no primeiro a falar dos reveses, das contradições, aberrações e injustiças presentes na sociedade cubana.

A necessidade de mudança e do debate crítico
Em dezembro de 2010, em uma intervenção diante do Parlamento cubano, Raúl Castro fez um discurso mais alarmista e colocou o governo e os cidadãos frente às suas responsabilidades: “Ou retificamos ou já acabou o tempo de seguir à beira do precipício, nos afundamos, e afundaremos”. Também acrescentou pouco tempo depois: “É imprescindível romper com a barreira psicológica colossal que resulta de uma mentalidade arraigada em hábitos e conceitos do passado”.

Raúl Castro também reprovou duramente a debilidade do debate crítico em cuba. Também reprovou os silêncios, a complacência e a mediocridade. Lançou um chamado para maior franqueza: “Não é preciso temer a discrepância de critérios […], as diferenças de opiniões, que […] sempre serão mais desejáveis do que a falsa unanimidade baseada na simulação e no oportunismo. Trata-se de um direito do qual ninguém deve ser privado”. Castro denunciou “o excesso de secretismo a que nos habituamos por mais de 50 anos” para ocultar erros, falhas e equívocos. “É necessário mudar a mentalidade dos quadros e de todos os compatriotas, acrescentou.

Sobre os meios de comunicação, disse o seguinte:

"Nossa imprensa fala bastante disso, das conquistas da Revolução, e nos discursos também falamos muito; mas é preciso ir à medula dos problemas […]. Sou um defensor da luta contra o secretismo porque é debaixo desse tapete onde se ocultam as falhas que temos, bem como os interessados de que isso seja assim e de que tudo siga assim. E eu me lembro de algumas críticas; “sim, tirem do jornal tal crítica”, orientei eu mesmo […]. Imediatamente, a grande burocracia começou a se mover: “Essas coisas não ajudam, demoralizam os trabalhadores”. Quais trabalhadores vão desmoralizar? Como ocorreu em uma ocasião, na grande empresa estatal de leite El Triángulo. Levou semanas, porque um dos caminhões dessa vacaria, que estava lá em Camagüey, estava quebrado, e então todo o leite que se produzia nas vacarias dessa zona, desse lugar, eram jogados a uns porcos que estavam criando. Foi então que eu disse a um secretário do Comitê Central para atender a agricultura nessa etapa, coloque no Granma, conte tudo isso que está acontecendo, faça uma crítica. Alguns vieram mim e até que: “Essas coisas não ajudam porque desmoralizam os trabalhadores”. O que não sabiam era que eu o havia orientado."

No dia 1º de agosto de 2011, durante seu discurso de fechamento da VII Legislatura do Parlamento Cubano, Raúl Castro reiterou a necessidade do debate crítico e da controvérsia na sociedade. “Todas as opiniões devem ser analisadas, e quando não se alcançar o consenso, as discrepâncias serão levadas às instâncias superiores facultadas para decidir e, além disso, ninguém está autorizado para impedi-lo. Convidou para acabar com “o hábito do triunfalismo, a estridência e o formalismo ao abordar a atualidade nacional e a gerar materiais escritos e programas de televisão e rádio, que, por seu conteúdo e estilo, chamem a atenção e estimulem o debate na opinião pública” para evitar “materiais entediantes, improvisados e superficiais” nos meios de comunicação.

A corrupção
Raúl Castro tampouco se esquivou do problema da corrupção: “Diante das violações da Constituição e da legalidade estabelecida, não resta outra alternativa senão recorrer à Fiscalização e aos Tribunais, como já começamos a fazer, para exigir a responsabilidade dos infratores, sejam quem forem, porque todos os cubanos, sem exceção, somos iguais perante a lei”.

Raúl Castro, consciente de que a corrupção também afeta os funcionários do alto escalão, mandou uma mensagem clara aos responsáveis por todos os setores: “É preciso lutar para acabar definitivamente com a mentira e o engano na conduta dos quadros de qualquer nível”. De modo mais insólito, apoiou-se em dois dos dez mandamentos bíblicos para ilustrar seus pontos. “Não roubarás” e “não mentirás”. Do mesmo modo, evocou os três princípios éticos e morais da civilização inca: “não mentir, não roubar, não ser folgado”, os quais devem guiar a conduta de todos os responsáveis da nação.

A liberdade religiosa
Da mesma forma, Raúl Castro condenou veementemente as derivas sectárias. Assim, denunciou publicamente por televisão alguns atentados à liberdade religiosa devidos à intolerância “enraizada na mentalidade de não poucos dirigentes em todos os níveis”. Citou o caso de uma mulher, quadro do Partido Comunista com trajetória exemplar, que foi afastada de suas funções em fevereiro de 2011 por sua fé cristã e cujo salário foi reduzido em 40% por violar o artigo 43 da Constituição de 1976, que proíbe todo tipo de discriminação.

O presidente da República denunciou assim “o dano ocasionado a uma família cubana por atitudes baseadas em uma mentalidade arcaica, alimentada pela simulação e o oportunismo”. Ao lembrar que a pessoa vítima dessa discriminação havia nascido em 1953, data do ataque ao quartel Moncada pelos partidários de Fidel Castro contra a ditadura de Fulgencio Batista, Raúl Castro disse o seguinte:

"Eu não fui ao Moncada para isso […]. Da mesma forma, recordávamos que o dia 30 de julho, dia da reunião mencionada, eram completados 54 anos do assassinato de Frank País e de seu fiel companheiro Raúl Pujol. Eu conheci Frank no México, voltei a vê-lo na Sierra, não me lembro de ter conhecido uma alma tão pura como essa, tão valente, tão revolucionária, tão nobre e modesta, e dirigindo-me a um dos responsáveis por essa injustiça que cometeram, eu lhe disse: Frank acreditava em Deus e praticava sua religião. Que eu saiba, nunca deixou de fazê-lo. “O que vocês teriam feito com Frank País?”.

A produtividade, o salário mensal e a libreta de abastecimento
Quanto à produtividade e à política econômica, Raúl Castro admite “uma ausência de cultura econômica na população”, assim como os erros do passado. “Não pensamos em voltar a copiar ninguém. Tivemos muitos problemas ao fazê-lo e porque, além disso, muitas vezes copiamos mal”. O governo cubano dá prova de lucidez quanto às carências em matéria econômica. Reconhece que “a espontaneidade, a improvisação, a superficialidade, o não cumprimento das metas, a falta de profundidade nos estudos de viabilidade e a carência de completude ao empreender uma inversão” atentam gravemente contra a nação.

Quanto à renda mensal dos cubanos, Raúl Castro dá provas de ludidez: “O salário ainda é claramente insuficiente para satisfazer a todas as necessidades, pois praticamente deixou de cumprir com seu papel de assegurar o princípio socialista de que cada qual ganhe segundo sua capacidade e receba segundo seu trabalho. Ele favoreceu manifestações de indisciplina social”.

Do mesmo modo, o presidente cubano não vacilou ao salientar os efeitos negativos da libreta de abastecimento em vigor desde 1960 – particularmente, “seu nocivo caráter igualitarista”, que se converteu em “um peso insuportável para a economia e em um desestímulo ao trabalho, além de gerar ilegalidades diversas na sociedade”. Também apontou as seguintes contradições: “Como a libreta está projetada para cobrir os mais de 11 milhões de cubanos por igual, não faltam exemplos absurdos, como o café que abastece até os recém-nascidos. O mesmo acontecia com os cigarros até setembro de 2010, quando era fornecido sem distinguir fumantes e não fumantes, propiciando o crescimento desse hábito nocivo na população. Segundo ele, a libreta “contradiz, em sua essência, o princípio da distribuição que deve caracterizar o socialismo, ou seja, “de cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo seu trabalho”. Por isso, “será imprescindível agir para erradicar as profunda distorções existentes no funcionamento da economia e da sociedade em seu conjunto”.

A troca geracional

Por outro lado, Raúl Castro também salientou a presença de um problema crucial em Cuba: a troca geracional e a falta de diversidade. Denunciou “a insuficiente sistematicidade e vontade política para assegurar a promoção de mulheres, negros, mestiços e jovens a cargos decisórios, sobre a base do mérito e das condições pessoais. Expressou seu despeito sem se esquivar de sua própria responsabilidade: “Não ter resolvido este último problema em mais de meio século é uma verdadeira vergonha que carregaremos em nossas consciências durante muitos anos”. Portanto, Cuba sofre “as consequência de não contar com uma reserva de substitutos devidamente preparados, com experiência suficiente e maturidade para assumir as novas e complexas tarefas de direção no Partido, no Estado e no Governo”.

Todas essas declarações foram feitas ao vivo na televisão cubana em horário nobre. Permitem ilustrar a presença do debate crítico em Cuba no mais lato nível do Estado. Assim, Raúl Castro não é apenas o presidente da nação, mas também – segundo parece – o primeiro dissidente do país e o mais feroz crítico das derivas e imperfeições do sistema.

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