sábado, 24 de março de 2018

As Novas Armas da Rússia (1): O discurso histórico de Putin

As Novas Armas da Rússia (1): O discurso histórico de Putin
Organizado por Ruben Bauer Naveira
Este é o primeiro artigo da série “As Novas Armas da Rússia”, que busca apresentar ao público brasileiro a nova realidade mundial inaugurada pelo discurso do presidente da Rússia Vladimir Putin no dia primeiro de março, o qual marca uma ruptura histórica de consequências imensuráveis para todo o mundo inclusive o Brasil: os Estados Unidos já não detêm mais a supremacia militar no planeta, e os seus dias de superpotência estão contados.
Esta série será composta também pelos seguintes artigos:
– As Novas Armas da Rússia (2): Resumo das armas (compilação pela equipe do site SouthFront.org)
– As Novas Armas da Rússia (3): Implicações militares (análise por Andrei Martyanov)
– As Novas Armas da Rússia (4): Implicações políticas (análise por The Saker)
– As Novas Armas da Rússia (5): Implicações para o Brasil (análise por Ruben Bauer Naveira)

Transcrição da parte final (na qual foram apresentados os novos sistemas de armamentos) do discurso do presidente Vladimir Putin da Rússia perante a Assembleia Geral da Federação Russa e o Parlamento Russo
[...]
Todos os projetos e prioridades de que falei hoje, como o desenvolvimento urbano, investimentos em infraestrutura, educação, saúde, meio ambiente, tecnologias e pesquisa de inovação para apoiar a economia, promover os talentos, a juventude, tudo isso está sendo concebido para uma tarefa estratégica – o desenvolvimento realmente renovador da Rússia.
Ao mesmo tempo, não podemos esquecer de cobrir, de modo confiável, as questões de segurança da Rússia.
Colegas,
A operação na Síria mostrou as novas grandes capacidades das Forças Armadas Russas. Em anos recentes muito foi feito para melhorar o Exército e a Marinha. As Forças Armadas têm hoje 3,7 vezes mais armas modernas. Mais de 300 novas unidades de equipamentos foram postas em serviço. As forças estratégicas de mísseis receberam 80 novos mísseis balísticos intercontinentais, 102 mísseis balísticos lançáveis de submarinos e três submarinos Borei movidos a energia nuclear e armados com mísseis balísticos. 12 regimentos de mísseis receberam novos mísseis balísticos intercontinentais Yars. O número de transportadores de mísseis de longo alcance e alta precisão aumentou 12 vezes, e o número de mísseis cruzadores guiados foi multiplicado por 30. O Exército, as Forças Aeroespaciais e a Marinha também são hoje significativamente mais fortes.
Todos, a Rússia e o mundo inteiro, já sabem os nomes de nossos mais novos aviões, submarinos, armas antiaéreas e sistemas de mísseis teleguiados em terra e embarcados no ar e no mar. Todos são armas de alta tecnologia, novas em folha. Temos um sólido campo de radar para alertar no caso de ser concebido algum ataque de míssil em todo o perímetro do território russo (recurso importantíssimo). Depois que a URSS foi desmantelada, apareceram vários buracos. Hoje já não há buracos. Foram todos consertados.
Demos um salto adiante no desenvolvimento de aviação tripulada à distância; criamos o Centro de Controle da Defesa Nacional; e formou-se o comando operacional de zonas marítimas distantes. O número de profissionais militares foi multiplicado por 2,4, e a disponibilidade de equipamento nas Forças Armadas cresceu, de 70% para entre 95 e 100%. As longas filas de espera por moradia permanente foram eliminadas; e o período de espera foi reduzido em 83%.
E agora, afinal, sobre a questão da defesa, importantíssima.
Falarei sobre os mais novos sistemas de armas estratégicas da Rússia que estamos criando como reação à retirada unilateral dos EUA do Tratado de Mísseis Antimísseis, e ao posicionamento que eles dão aos seus sistemas de defesa, tanto em território dos EUA como fora das suas fronteiras nacionais.
Gostaria de rememorar rapidamente uma parte de nosso passado recente.
Em 2000, os EUA anunciaram que se retiravam do Tratado de Mísseis Antimísseis. A Rússia opôs-se categoricamente a esse gesto. Víamos o Tratado EUA-URSSs sobre Mísseis Antimísseis, assinado em 1972, como o principal alicerce do sistema de segurança internacional. Nos termos desse tratado, as partes tinham o direito de instalar sistemas de defesa com mísseis antimísseis exclusivamente nos limites do próprio território. A Rússia instalou seus sistemas desse tipo em torno de Moscou; os EUA, em torno de sua base de mísseis antimísseis em terra, em Grand Forks.
Junto com o Tratado de Redução de Armas Estratégicas, o Tratado ABM não só criou uma atmosfera de confiança, mas, além disso, também impedia que qualquer dos lados usasse armas atômicas de modo completamente temerário e irresponsável, porque essas armas põem em risco a própria vida humana sobre o planeta, e, também, porque o número limitado de mísseis antimísseis de defesa tornava o agressor potencial vulnerável a um contra-ataque.
Fizemos o máximo possível para dissuadir os EUA da decisão de sair do Tratado. Em vão. Em 2002, os EUA se desligaram do Tratado de Mísseis Antimísseis. Mesmo depois disso, ainda insistimos no esforço de construir um diálogo construtivo com os EUA. Propusemos trabalhar juntos nessa área para aparar arestas e manter a atmosfera de confiança. A um certo ponto, cheguei a pensar que seria possível algum acordo, mas não. Rejeitaram todas, todas as nossas propostas, absolutamente tudo. Então, dissemos que teríamos de melhorar nossos modernos sistemas de ataque, para proteger nossa segurança. Como resposta, os EUA disseram que não criariam um sistema global de mísseis antimísseis de defesa contra a Rússia, que podíamos fazer o que quiséssemos, e que os EUA presumiriam que nossas ações não seriam de agressão aos EUA.
As razões por trás dessa posição são óbvias. Depois do colapso da URSS, a Rússia, ainda chamada no exterior de União das Repúblicas Soviéticas Socialistas, perdeu 23,8% do próprio território nacional; 48,5% da própria população; 41% do PIB; 39,4% do potencial industrial (quase metade de nosso potencial, vejam bem), além de 44,6% de sua capacidade militar, por causa da dispersão das Forças Armadas Soviéticas entre as várias repúblicas ex-soviéticas. O equipamento militar do exército russo estava ficando obsoleto, e as Forças Armadas estavam em estado lastimável. Havia terrível guerra civil em curso no Cáucaso, e inspetores dos EUA vigiavam a operação de nossas principais usinas de enriquecimento de urânio.
Por algum tempo, a questão nem era se conseguiríamos desenvolver algum sistema de armas estratégicas – havia quem duvidasse de que nosso país fosse capaz de armazenar em segurança e manter as armas nucleares que herdamos depois do colapso da URSS. A Rússia tinha dívidas gigantescas, a economia não funcionava sem empréstimos do FMI e do Banco Mundial; era impossível manter a esfera social.
Aparentemente, nossos parceiros concluíram que seria completamente impossível, na perspectiva histórica previsível, que nosso país ressuscitasse sua economia, sua indústria, sua indústria da defesa e suas Forças Armadas, até níveis suficientes para garantir apoio ao indispensável potencial estratégico. E sendo assim, ninguém precisaria ouvir o que a Rússia tivesse a dizer; e, para o futuro, bastaria manter aquela grande vantagem militar unilateral, para ditar as ordens em todas as esferas.
Basicamente, essa posição, essa lógica, se se consideram as realidades daquele momento, é compreensível, e grande parte da culpa é nossa. Todos esses anos, os 15 anos desde que os EUA se retiraram do Tratado de Mísseis Antimísseis, nós tentamos insistentemente nos reengajar ao lado dos norte-americanos, para discussões sérias, tentando acordos na esfera da estabilidade estratégica.
Conseguimos alcançar alguns daqueles objetivos. Em 2010, Rússia e EUA assinaram o Tratado de Redução de Armas Estratégicas START, com medidas para prosseguir na redução e limitação de armas estratégicas de ataque. Mas, à luz do plano para construir um sistema global de mísseis antimísseis, que ainda prossegue até hoje, todos os acordos assinados no contexto do Novo Tratado START estão agora sendo gradualmente esvaziados, porque, enquanto o número de transportadores e de armas é reduzido, uma das partes, a saber, os EUA, permite o crescimento constante não controlado do número de mísseis antimísseis, melhora a qualidade desses mísseis e constrói novas áreas para lançamento de mísseis. Se não fizéssemos coisa alguma, isso levaria à completa degradação do arsenal e nossos mísseis poderiam ser simplesmente interceptados.
Apesar de nossos numerosos protestos, a máquina norte-americana foi posta em movimento, a correia de transmissão foi ligada e posta a andar adiante. Há hoje novos sistemas de mísseis de defesa instalados no Alasca e na Califórnia; como resultado da expansão da OTAN para o leste, duas novas áreas para mísseis de defesa foram criadas na Europa Ocidental: uma já está implantada na Romênia, e o deslocamento do sistema também para a Polônia já está agora praticamente concluído. O alcance dele será sempre crescente; devem ainda ser criadas novas áreas de lançamento no Japão e na Coreia do Sul. O sistema global de mísseis de defesa dos EUA também inclui cinco cruzadores e 30 destroieres, os quais, pelo que sabemos, foram instalados em regiões muito próximas das fronteiras da Rússia. Não exagero, absolutamente, no que lhes digo; e o processo avança rapidamente.
Nesse quadro, o que fizemos, além de protestar e alertar? Como a Rússia respondeu a esse desafio? Pois lhes digo como.
Durante todos esses anos, desde a saída unilateral dos EUA do Tratado de Mísseis Antimísseis, trabalhamos sem descanso em armas e equipamentos avançados, que nos levaram a descobertas indispensáveis para desenvolver novos modelos de armas estratégicas.
Permitam-me lembrar que os EUA estão criando um sistema global de mísseis de defesa que visa, principalmente, a enfrentar armas estratégicas que cumprem trajetórias balísticas. Armas desse tipo são a espinha dorsal de nossas forças de contenção, como são também a espinha dorsal do armamento de outros membros do clube nuclear.
Assim sendo, a Rússia desenvolveu e trabalha continuamente para aperfeiçoar sistemas altamente efetivos, mas de preço razoável, capazes de superar a defesa de mísseis. Estão instalados em todos os nossos complexos de mísseis balísticos intercontinentais.
Além disso, cuidamos também de desenvolver a próxima geração de mísseis. Por exemplo, o Ministério da Defesa e empresas da indústria aeroespacial e de mísseis estão em ativa fase de teste de um novo sistema de mísseis com um pesado míssil intercontinental. Demos a ele o nome de "Sarmat".
O sistema Sarmat substituirá o sistema Voevoda criado pela URSS. Seu imenso poder foi reconhecido universalmente. Nossos colegas estrangeiros deram-lhe até um nome muito ameaçador [N. do T.: os americanos deram os nomes de “Satan” (Satã) ao Voevoda, e “Satan-2” ao Sarmat].
Isso posto, as capacidades do míssil Sarmat são muito superiores. Pesando mais de 200 toneladas, tem fase de arranque curta, o que torna mais difícil interceptá-lo para os sistemas de mísseis de defesa. O alcance desse novo míssil pesado, o número e a potência de seus blocos de combate, é maior que o do Voevoda. O Sarmat será equipado com várias ogivas nucleares de grande alcance, inclusive hipersônicas, e os mais modernos recursos para escapar dos mísseis de defesa. O alto grau de proteção dos lançadores desses mísseis e as significativas capacidades de energia que o sistema oferece permitirá que ele seja usado em quaisquer condições.
Por favor, assistam ao vídeo [clique aqui para assistir ao vídeo completo do discurso, contudo posicionado no início da apresentação do míssil Sarmat, a qual tem duração de 47 segundos].
O Voevoda tem alcance de 11 mil quilômetros. O alcance do Sarmat é praticamente ilimitado.
Como o vídeo mostra, o Sarmat pode alcançar alvos via os dois polos, Norte e Sul.
O Sarmat é um míssil formidável e, dadas as suas características, não pode ser detido nem pelos mais avançados sistemas de mísseis de defesa.
Mas não paramos nisso. Começamos a desenvolver novos tipos de armas estratégicas que absolutamente não seguem trajetórias balísticas no caminho até o alvo e, portanto, os sistemas existentes de mísseis de defesa são inúteis contra ele. Não fazem sentido algum.
Permitam comentar essas novas armas.
As armas avançadas da Rússia são baseadas em tecnologia de ponta, realizações únicas e exclusivas, descobertas de nossos cientistas, projetistas e engenheiros. Uma dessas descobertas é uma unidade de energia nuclear pequena e de alto desempenho que pode ser instalada num míssil semelhante ao nosso míssil X-101, que pode ser disparado de avião, ou num míssil Tomahawk dos EUA – parecido com isso, mas com alcance dúzias de vezes mais longo, dúzias de vezes, basicamente tem alcance ilimitado. É um míssil de tipo 'invisível aos radares', que voa a baixa altitude e transporta uma ogiva nuclear. Tem alcance quase ilimitado, trajetória não previsível e capacidade para contornar os limites conhecidos de interceptação. É invencível contra todos os sistemas existentes e em estudo de mísseis de defesa e de defesa antiaérea. Hoje repetirei várias vezes essa informação.
No final de 2017, a Rússia lançou com sucesso seu mais novo míssil movido a energia nuclear, no campo central de testes. Durante o voo, o motor movido a energia nuclear alcançou a capacidade prevista no projeto e garantiu a propulsão necessária.
Agora que os testes de lançamento e operação em campo foram bem-sucedidos, podemos começar a desenvolver um tipo completamente novo de arma, um sistema estratégico de armas nucleares com um míssil movido a energia nuclear.
Assistam ao vídeo [clique aqui para assistir ao vídeo completo do discurso, contudo posicionado no início da apresentação do míssil de cruzeiro com propulsão a energia nuclear, a qual tem duração de 52 segundos].
Podem ver o modo como o míssil evita os interceptadores. Dado que o alcance é ilimitado, o míssil pode manobrar pelo tempo que for necessário.
Como os senhores com certeza compreenderam, nenhum outro país desenvolveu qualquer coisa semelhante a isso. Algum dia aparecerá, mas até lá já teremos inventado algo ainda melhor.
Noutro campo, todos nós sabemos que projetos e desenvolvimento de sistemas de armas remotamente tripulados é tendência comum no mundo. No que concerne à Rússia, desenvolvemos veículos submersíveis remotamente tripulados que podem navegar em grandes profundidades (pode-se dizer, profundidades extremas), intercontinentais, em velocidades várias vezes superiores à de submarinos, torpedos de última geração e todos os tipos de navios de superfície, mesmo alguns dos mais rápidos. É realmente fantástico. São objetos silenciosos, altamente manobráveis com mínimas vulnerabilidades que o inimigo possa tentar explorar. Absolutamente nada há no mundo capaz de superá-los.
Veículos subaquáticos remotamente tripulados podem transportar ogivas convencionais e ogivas nucleares, o que os capacita a buscar vários tipos de alvos, incluindo esquadrões de aeronaves, fortificações litorâneas e infraestrutura.
Em dezembro de 2017, uma unidade de motor nuclear para esse drone subaquático [mas silencioso] remotamente tripulado completou um ciclo de testes que durou vários anos. Essa unidade de motor nuclear é excepcional, porque é muito pequena, ao mesmo tempo em que tem impressionante relação potência-peso. É uma centena de vezes menor que as unidades nucleares que operam como motores dos modernos submarinos atômicos, mas ainda muito mais potente, e pode rapidamente ser posta em modo de combate, quero dizer, atingir capacidade máxima, 200 vezes mais rápido.
Os testes já completados nos permitem começar a desenvolver um novo tipo de arma estratégica que pode transportar massiva carga nuclear.
Assistam ao vídeo [clique aqui para assistir ao vídeo completo do discurso, contudo posicionado no início da apresentação do veículo submarino remotamente tripulado com propulsão a energia nuclear, a qual tem duração de 1 minuto e 15 segundos].
Devo dizer que essas duas novas armas estratégicas ainda não têm nome, o míssil cruzador de alcance global, e o veículo subaquático tripulado à distância. Sugestões, por favor, para o website do Ministério da Defesa.
Sabe-se que países que têm alto potencial de pesquisa e tecnologia avançada estão desenvolvendo ativamente as chamadas armas hipersônicas. A velocidade do som é em geral medida em números Mach, homenagem ao cientista austríaco Ernst Mach, conhecido por sua pesquisa nesse campo. Mach 1 equivale a 1.062 km/h, em altitude de 11 quilômetros. A velocidade do som é igual a Mach 1. Velocidades entre Mach 1 e Mach 5 são chamadas supersônicas; e acima de Mach 5, hipersônicas. Claro que esse tipo de arma oferece vantagens substanciais num conflito armado. Especialistas militares creem que seja arma extremamente poderosa, e que as velocidades hipersônicas a tornam invulnerável pelos sistemas de defesa aérea existentes, porque, dito de forma simplificada, os mísseis interceptores não a alcançam. Assim sendo, é compreensível que todos os principais exércitos do mundo trabalhem para obter essa arma ideal.
Amigos, a Rússia já tem essa arma.
O estágio mais importante no desenvolvimento de modernos sistemas de armas foi a construção de um sistema de mísseis hipersônicos de alta precisão. Como os senhores podem ter certeza, é o único sistema desse tipo no mundo. Os testes foram completados com sucesso e, o mais importante: dia 01 de dezembro do ano passado, esses sistemas entraram em operação experimental nas bases aéreas do Distrito Militar Sul.
As características exclusivas da aeronave transportadora de alta velocidade permitem levar o míssil ao local-alvo em minutos. O míssil que voa a velocidade hipersônica, 10 vezes mais rápido que a velocidade do som, pode também manobrar em todas as fases da trajetória de voo, o que também lhe permite superar todos os demais mísseis existentes e, creio, também todos os sistemas de defesa antiaérea e antimísseis em estudo hoje, transportando ogivas nucleares e convencionais, com um alcance superior a 2.000 quilômetros. Esse sistema recebeu o nome de Kinzhal (Adaga).
Vídeo, por favor. [clique aqui para assistir ao vídeo completo do discurso, contudo posicionado no início da apresentação do míssil hipersônico Mach 10 Kinzhal, a qual tem duração de 1 minuto].
Tenho ainda de falar sobre mais um avanço tecnológico realmente revolucionário – o sistema de míssil estratégico instalada num novo equipamento de combate, uma asa planadora, que também já foi testada com sucesso.
Repetirei mais uma vez o que dissemos incontáveis vezes aos nossos parceiros norte-americanos e europeus que são membros da OTAN: nós os russos faremos todos os esforços necessários para neutralizar todas as ameaças que se apresentem contra nós, que hoje se concretizam no deslocamento do sistema global de mísseis de defesa dos EUA. Dissemos isso nas conversações, e também dissemos publicamente.
Em 2004, depois dos exercícios de forças nucleares estratégicas, quando esse sistema foi testado pela primeira vez, eu mesmo disse o seguinte numa conferência de imprensa (é incômodo para mim citar palavras minhas, mas ainda é o que há de mais adequado para dizer aqui). Disse eu em 2004:
   “Dado que outros países aumentam o número e a qualidade das próprias armas e do próprio potencial militar, a Rússia também terá de assegurar que tenha à sua disposição nova geração de armas e de tecnologia.
   Sobre isso, tenho o prazer de informar aos senhores que testes já concluídos com sucesso durante as recentes manobras nos permitem confirmar que, em futuro próximo, as Forças Armadas Russas, as Forças de Mísseis Estratégicos, receberão novos sistemas de armas de velocidade hipersônicas e de alta precisão que podem atingir alvos em distância intercontinental e podem auto-ajustar a própria altitude e o próprio curso durante o voo. É declaração muito importante, porque nenhum país do mundo até agora conta com esse tipo de armamento no respectivo arsenal militar.” [fim da citação].
Claro, cada palavra tem significado relevante, porque falamos da possibilidade de ultrapassar os limites da percepção. Por que fizemos tudo isso? Por que falamos sobre isso?
Como os senhores podem ver, não fizemos segredo de nossos planos e falamos abertamente sobre eles, em primeiro lugar, para atrair nossos parceiros à mesa de conversações. Vejam bem, aquela conferência de imprensa aconteceu em 2004.
É realmente surpreendente que, apesar de todos os problemas com a economia, finanças e nossa indústria da defesa, a Rússia tenha-se mantido, como ainda é, uma grande potência nuclear. Mas também é fato que ninguém quis conversar conosco sobre o xis da questão da nossa segurança nacional. Ninguém quis nos ouvir. Agora, nos ouvirão.
Diferente de todos os tipos hoje existentes de equipamento de combate, esse sistema é capaz de voar, em distâncias intercontinentais, em velocidades supersônicas de mais de Mach 20.
Como eu mesmo disse em 2004, na rota até o alvo, o bloco míssil planador é capaz das manobras mais radicais – tanto lateralmente (a distâncias de vários milhares de quilômetros) como na vertical. É isso que o torna absolutamente invulnerável por quaisquer sistemas de defesa aérea ou de defesa por míssil. O emprego de novos tipos de materiais possibilita que a asa-bloco planadora voe longas distâncias praticamente em condições de formar plasma. Voa para seu alvo como um meteoro, como uma bola de fogo. A temperatura na superfície da asa-bloco alcança de 1.600 a 2.000 graus Celsius, mas a asa-bloco mesmo assim permanece sob controle confiável.
Assistam ao vídeo, por favor [clique aqui para assistir ao vídeo completo do discurso, contudo posicionado no início da apresentação da asa planadora intercontinental Mach 20 Avangard, a qual tem duração de 58 segundos]
Por razões óbvias, não podemos mostrar aqui a aparência externa desse sistema. É importante demais. Espero que os senhores compreendam. Mas posso garantir que, sim, temos todas essas máquinas e todas funcionam perfeitamente. Além disso, nossas indústrias de defesa já começaram a produção em massa dessa nova arma estratégica. Chamamos ela de Avangard.
Sabemos perfeitamente que vários outros países estão desenvolvendo armas avançadas com novas propriedades físicas. Temos todos os motivos para crer que estamos pelo menos um passo à frente – sob todos os critérios – nas áreas mais essenciais.
Alcançamos progresso notável em armas com laser. Não é simples conceito ou simples plano. Esse projeto já ultrapassou, mesmo, os estágios iniciais de produção. Desde o ano passado, nossos soldados já estão equipados com armas com laser.
Não quero revelar mais detalhes, porque ainda não é a hora. Mas os especialistas compreenderão que, com esse tipo de armas, a capacidade de defesa da Rússia foi multiplicada.
Temos aqui mais um pequeno vídeo [clique aqui para assistir ao vídeo completo do discurso, contudo posicionado no início da apresentação das armas a laser, a qual tem duração de 21 segundos].
Os que se interessem por equipamento militar, estão convidados a sugerir um nome para essa nova arma, para esse sistema de ponta.
Claro que o processo avança e refinaremos também essa tecnologia que hoje é o estado-da-arte. Obviamente, há muito mais desenvolvimentos do que lhes apresentei hoje. Mas fiquemos por aqui, por hora.
Quero enfatizar muito especialmente que as novas armas estratégicas que foram desenvolvidas mais recentemente – são de fato novos tipos de armas estratégicas – não são de modo algum resultado de algo que tenhamos recebido da União Soviética. Evidentemente, trabalhamos sobre algumas ideias de nossos engenhosos antecessores. Mas tudo que os senhores viram hoje é resultado do trabalho dos vários últimos anos, produto de dúzias de organizações de pesquisa, gabinetes e institutos de projetos.
Milhares, literalmente milhares de nossos especialistas, cientistas renomados, projetistas, engenheiros, operários apaixonados e talentosos trabalham literalmente há anos, discretos, calados, sem egoísmos, doando o melhor de cada um, em total dedicação. Muitos desses profissionais são muito jovens. São nossos heróis, ombro a ombro com nossos soldados, que manifestam todos as melhores qualidades do Exército Russo quando convocado ao combate.
Quero dirigir-me pessoalmente a cada um deles, e dizer-lhe que não haverá prêmios ou recompensas. Muitas vezes estive pessoalmente com essas pessoas, e sei que não trabalham à espera de recompensas. O maior prêmio para eles é a certeza de que assim se garante a segurança de nosso país e de nosso povo. Como presidente e em nome do povo russo, agradeço muito a todos vocês, pelo trabalho dedicado e seus resultados. Nosso país precisa muito desse trabalho e desses resultados.
Como eu já disse, todos os futuros produtos para finalidades militares estão baseados em avanços notáveis que podem, devem e serão usados nos setores civis de alta tecnologia. Não me canso de repetir que só um país que tenha alto nível de educação e de pesquisa fundamental, pesquisa aplicada, tecnologia, infraestrutura industrial e recursos humanos pode desenvolver com sucesso armas complexas, sem igual no planeta, do tipo que vimos aqui. Pelos resultados, os senhores podem ver que a Rússia tem todos esses recursos.
Expandiremos nosso potencial e nos focaremos em alcançar as metas ambiciosas que nosso país se propôs a alcançar em termos de desenvolvimento econômico, social e de infraestrutura. Nossa defesa efetiva servirá como garantia do desenvolvimento russo de longo prazo.
Permitam-me insistir que cada um dos sistemas de armamentos aos quais me referi aqui tem sua própria extraordinária importância. Ainda mais importante, todos esses avanços tomados em conjunto capacitam o Ministério da Defesa e o Alto Comando do Estado-maior para que desenvolvam um sistema de defesa muito amplo, no qual cada peça do novo equipamento militar terá sua específica insubstituível função. Acima de armas estratégicas que estão hoje em prontidão para combate, e se beneficiam de atualizações regulares, a Rússia terá capacidade de defesa que garantirá a segurança da nação no longo prazo.
Claro que há muitas coisas que teremos de fazer em termos de construção militar, mas uma coisa já está bem clara: a Rússia possui exército moderno, altamente tecnológico, muito compacto, dadas as dimensões do território, centrado em seu corpo de oficiais, dedicados ao país e prontos a sacrificar qualquer coisa pelo povo russo. Mais cedo ou mais tarde, outros exércitos também terão a tecnologia, as armas, inclusive as mais avançadas. Mas nada disso me preocupa, porque já temos hoje os melhores armamentos, e melhores ainda teremos no futuro. Nós temos, e eles jamais terão, gente como Roman Filipov, Major-Aviador russo [N. do T.: Filipov pilotava a aeronave SU-25 da Força Aérea Russa em missão na Síria que em 03fev2018 foi abatida por terroristas, ejetou-se de paraquedas e combateu até a morte os terroristas em solo].
Espero que tudo que aqui ficou dito leve agressores potenciais a pensar duas vezes, porque passos inamistosos contra a Rússia, como instalar mísseis de defesa e trazer a infraestrutura da OTAN para junto da fronteira russa, tornaram-se inefetivos em termos militares e implicam custos injustificáveis, tornando inúteis aqueles passos agressivos para os que promovem as agressões.
É nosso dever informar nossos parceiros de tudo que aqui foi dito hoje, nos termos dos tratados e compromissos internacionais que a Rússia assinou. No momento adequado, especialistas dos ministérios da Defesa e de Relações Exteriores terão muitas ocasiões para discutir todos esses assuntos com nossos parceiros. Isso, evidentemente, se nossos parceiros se interessarem e quiserem trocar ideias.
De minha parte, devo dizer que conduzi todo o trabalho para reforçar a capacidade de defesa da Rússia dentro do que determinam os acordos vigentes para controle de armas; não estamos violando coisa alguma. Devo dizer especificamente que a força militar crescente da Rússia não é ameaça contra ninguém; jamais tivemos planos para usar esse nosso novo potencial para finalidades ofensivas, muito menos para finalidades agressivas.
Não estamos ameaçando nada nem ninguém. Não atacaremos ninguém nem tomaremos coisa alguma, de quem quer que seja, pela força das armas, novas ou antigas. A Rússia não precisa de absolutamente nada. Antes o contrário. Considero indispensável destacar – porque é muito importante – que o crescente poder militar dos russos é sólida garantia para a paz global. O poder militar dos russos preserva e sempre preservará a paridade estratégica e o equilíbrio de forças no mundo, o qual, como se sabe, foi e continua a ser fato chave da segurança internacional desde o final da 2ª Guerra Mundial, até hoje.
E, àqueles que nos últimos 15 anos se dedicaram a acelerar a corrida armamentista e buscaram arrancar vantagens unilaterais contra a Rússia, impondo restrições e sanções – que são ilegais do ponto de vista da Lei Internacional – com vistas a conter o nosso desenvolvimento nacional, inclusive na área militar, direi o seguinte: ‘Tudo o que tanto vocês tentaram impedir que acontecesse, com sua política ilegal, já aconteceu. Ninguém conseguiu conter a Rússia’.
Agora temos de estar atentos a essa realidade. Ninguém alimente qualquer dúvida sobre o que eu disse aqui: não é blefe. Dediquem um momento de reflexão ao que aqui foi dito e feito. Descartem os que insistem em viver no passado. Parem de sacudir a canoa na qual viajamos todos, essa nossa Terra comum.
Quanto ao futuro de nossa Terra comum, quero dizer ainda que estamos muito preocupados com algumas disposições da revisão do posicionamento nuclear recentemente publicadas pelos EUA, que reduzem as limitações ao uso de armamento nuclear. Por trás das portas fechadas dos gabinetes, há quem fale de calma. Mas nós estamos lendo o que está escrito. E o que está escrito é que essa nova estratégia nuclear poderá ser acionada mesmo em resposta a ataques com armas convencionais, e até mesmo contra algum ciberataque.
Chamo atenção para a evidência de que a doutrina militar da Rússia diz que a Rússia se reserva o direito de usar armas nucleares exclusivamente em resposta a ataque nuclear, ou a ataque com outras armas de destruição em massa contra nosso país ou nossos aliados, ou em resposta a ato de agressão contra nós, com armas convencionais, que ameacem a própria sobrevivência do Estado russo. Tudo aqui está claramente especificado.
Assim sendo, entendo que é meu dever anunciar o seguinte:
Qualquer uso de armas nucleares contra a Rússia ou contra seus aliados, seja por armas de pequeno porte, médio porte ou qualquer outro porte será, em todos os casos, considerado equivalente a ataque nuclear contra nosso país. A retaliação será imediata, com todas as consequências que se devem esperar de ataque desse tipo contra a Rússia e aliados.
Não deve pairar quanto a isso nenhuma dúvida. O mundo não precisa de mais ameaças. Em vez disso, vamos sentar à mesa de negociações, para juntos concebermos um novo e relevante sistema de segurança internacional e desenvolvimento sustentável para a civilização humana. Todo o tempo, nós repetimos isso. Todas as nossas propostas continuam válidas. A Rússia está pronta para esses novos tempos.
Nossas políticas jamais serão erigidas sobre declarações de excepcionalismo. Protegemos nossos interesses e respeitamos os interesses de outros países. Observamos a lei internacional e acreditamos no papel inviolável da ONU. Esses são os princípios e os modos de abordar a realidade que nos permitem construir relações fortes, amistosas e iguais com a absoluta maioria dos países.
Exemplo disso é nossa ampla e abrangente parceria estratégica com a República Popular da China. Rússia e Índia também se beneficiam mutuamente de relação estratégica especial, privilegiada. Nossas relações com muitos outros países no mundo estão chegando a um estágio de novo dinamismo.
A Rússia está amplamente envolvida em organizações internacionais. Com nossos parceiros, estamos promovendo e fazendo avançar associações e grupos como a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO), a Organização para a Cooperação de Xangai e os BRICS. Estamos promovendo agenda positiva na ONU, no G20 e na Cooperação Econômica do Pacífico Asiático (APEC). Estamos interessados em cooperação normal e construtiva com os EUA e a União Europeia. Esperamos que o bom senso prevaleça, e que nossos parceiros optem pela via do trabalho honesto, igual e coletivo.
Ainda que nossos pontos de vista colidam vez ou outra em algumas questões, nem por isso deixamos de ser parceiros, porque temos de trabalhar juntos para conseguir responder aos desafios mais complexos, garantir a segurança global e construir o mundo do futuro, mais interconectado a cada dia, com mais e mais processos de integração dinâmica.
A Rússia e seus parceiros na União Econômica Eurasiana querem fazer dela um grupo de integração econômica globalmente competitivo. A agenda da UEE inclui construir um mercado comum para eletricidade, petróleo, derivados de petróleo e gás, harmonizando mercados financeiros e conectando nossas autoridades alfandegárias. E também continuamos a trabalhar numa maior parceria eurasiana.
Colegas,
Esse é momento de virada para todo o mundo, e os que querem e conseguem mudar, os que agem e andam adiante fatalmente tomarão a dianteira. A Rússia e os russos expressamos esse desejo de andar adiante em todos os momentos de definição de nossa história. Em apenas 30 anos, fizemos mudanças que custaram séculos a outros países.
Continuaremos confiantemente a traçar nossa própria rota, como sempre fizemos. Nos manteremos unidos, como sempre estivemos. Nossa unidade é o mais firme alicerce para o progresso futuro. Nos próximos anos, nossa meta é fortalecer sempre mais essa unidade, de modo a sermos uma só equipe coesa, que compreende que é indispensável mudar sempre e que devota toda sua energia, seu conhecimento, sua experiência e seu talento a alcançar os objetivos de todos.
Desafios e altos objetivos dão significado especial a nossa vida. Temos de ser claros e firmes em nossos planos e ações, temos de tomar iniciativas e assumir responsabilidades, temos de nos fortalecer, o que significa que temos de ser úteis à nossa família, aos nossos filhos e a todo o país; temos de mudar o mundo e mudar nosso país, sempre para melhor; e temos de construir a Rússia com a qual todos sonhamos.
Só então a próxima década e todo o século 21 serão com certeza tempos de grandes vitórias para todos os russos e de sucessos partilhados. Acredito firmemente que assim será.
Obrigado. [Fim da transcrição]

As Novas Armas da Rússia (3): Implicações militares



organizado por Ruben Bauer Naveira
Este é o terceiro artigo da série “As Novas Armas da Rússia”, que busca apresentar ao público brasileiro a nova realidade mundial inaugurada pelo discurso do presidente da Rússia Vladimir Putin no dia primeiro de março, o qual marca uma ruptura histórica de consequências imensuráveis para todo o mundo inclusive o Brasil: os Estados Unidos já não detêm mais a supremacia militar no planeta, e os seus dias de superpotência estão contados.
Esta série é também composta pelos seguintes artigos:
– As Novas Armas da Rússia (2): Resumo das armas(compilação pela equipe do site SouthFront.org)
– As Novas Armas da Rússia (4): Implicações políticas (análise por The Saker)
– As Novas Armas da Rússia (5): Implicações para o Brasil (análise por Ruben Bauer Naveira)

As Novas Armas da Rússia (3): Implicações militares
Por Andrei Martyanov
Durante a guerra russo-georgiana de agosto de 2008, as operações do 58º Exército da Rússia foram definidas como “coerção para a paz”. É definição adequada, que faz lembrar o que estava então realmente em jogo. Os russos venceram aquela guerra e, sim, realmente coagiram a Geórgia a adotar comportamento muito mais pacífico. Nos termos de Clausewitz, os russos alcançaram o principal objetivo da guerra, dado que compeliram o inimigo a fazer a vontade da Rússia. Os russos, como mostram os eventos dos últimos 19 anos, já não têm ilusões sobre a possibilidade de algum tipo de conduta civilizada razoável do Ocidente como um todo, menos ainda dos EUA, que continuam a viver na bolha que os isola das vozes exteriores da razão e da paz. O currículo global dos EUA das últimas décadas não exige quaisquer elaborações sofisticadas: é currículo de repetidos desastres militares e humanitários.
O discurso de Vladimir Putin no dia 01mar2018 à Assembleia da Federação Russa não tratou das próximas eleições presidenciais, como sugerem muitos no Ocidente obcecados com eleições. A fala de Putin teve o objetivo de coagir as elites norte-americanas, se não para a paz, pelo menos para alguma forma de sanidade – aquelas elites que estão atualmente completamente isoladas das realidades geopolíticas, militares e econômicas de um mundo recentemente surgido. Como no caso da Geórgia em 2008, a coerção baseou-se no poder militar. O Exército Russo pré-Shoigu [N. do T.: refere-se ao general Serguei Shoigu, Ministro da Defesa da Rússia, que desde então tem comandado a modernização das Forças Armadas da Rússia], com todas as deficiências reais e sabidas, precisou de apenas cinco dias para liquidar a força georgiana treinada e parcialmente equipada pelos EUA – a tecnologia, o pessoal e o manejo operacional do Exército Russo foram simplesmente melhores. Obviamente, esse tipo de cenário não é concebível entre Rússia e os EUA; vale dizer, não é... a menos que o mito da superioridade tecnológica dos EUA tenha esvaziado como bolha de sabão.
A maioria das elites do poder nos EUA jamais prestaram um dia de serviço militar na vida, nem nunca frequentaram instituições acadêmicas militares sérias. Sua expertise em questões tecnológico-militares e geopolíticas se limita a um ou dois 'seminários' sobre armas atômicas, e, no melhor dos casos, aos esforços do Serviço de Pesquisa do Congresso. Essas elites simplesmente não têm a qualificação mínima indispensável para compreender a complexidade e a natureza de uma força militar; muito menos são capazes de compreender o serviço que presta esse tipo de força. Elas simplesmente não têm pontos de referência. Mesmo assim, uma vez que são produto da cultura norte-americana pop-militar – também chamada “pornografia militar” ou simplesmente propaganda –, essa coleção de advogados, 'cientistas políticos', sociólogos e jornalistas que dominam a cozinha estratégica norte-americana e que vivem de cozinhar, em regime non-stop, as doutrinas geopolíticas e militares as mais delirantes –, eles com certeza entendem alguma coisa, quando veem os seus entes queridos com um alvo desenhado ou na testa ou nas costas.
A mensagem de Putin aos EUA foi extremamente simples: fez os EUA lembrarem as incontáveis vezes em que se recusaram até a ouvir o que os russos tinham a dizer sobre a posição da Rússia no Tratado dos Mísseis Antimísseis. Como escreveu Jeffrey Lewis, em um momento de surpreendente sobriedade da revista Foreign Policy:
A verdadeira origem da nova geração de bizarras armas nucleares russas não está na mais recente Atualização da Doutrina Nuclear dos EUA, mas na decisão do governo George W. Bush, em 2001, de retirar os EUA do Tratado dos Mísseis Antimísseis; e no fracasso bipartidário dos dois governos, de Bush e de Obama, que absolutamente não conseguiram dedicar atenção significativa às preocupações dos russos frente aos mísseis de defesa dos EUA. Putin disse claramente em seu discurso: “Durante todos esses anos, desde a saída unilateral dos EUA do Tratado dos Mísseis Antimísseis, nós trabalhamos sem descanso em armas e equipamentos avançados, que nos levaram a descobertas indispensáveis para desenvolver novos modelos de armas estratégicas. Esses feitos tecnológicos agora estão aí. Infelizmente, nós não conseguimos os feitos diplomáticos de que precisávamos”.
A mensagem de Putin foi clara: “Ninguém quis conversar conosco sobre o xis da questão da nossa segurança nacional. Ninguém quis nos ouvir. Agora, nos ouvirão”. Desse ponto em diante, a fala de Putin só pode ser descrita como um “Stalingrado versus Pearl Harbor” da tecnologia militar. Os desdobramentos estratégicos dos mais novos sistemas de armas que Putin apresentou são imensos. De fato, eles têm peso histórico decisivo. Claro, muitos especialistas norte-americanos, como era de se esperar, trataram de minimizar o evento o mais possível, o qual não passaria de evento de autopromoção – é o que se pode esperar vindo de qualquer ‘especialista’ da comunidade militar norte-americana. Já outros não foram tão longe, e vários, sim, nem tentaram disfarçar o susto. A impressão geral hoje, um dia depois da apresentação de Putin, pode ser descrita, em termos simples, do seguinte modo: o degrau que separa os mísseis dos EUA e da Rússia é real, mas não se trata de um mero degrau; se trata, na verdade, de um abismo tecnológico. Paradoxalmente, esse abismo nem está onde muitos até já admitiram que estaria – por exemplo, no míssil balístico RS-28 Sarmat, cuja existência e características aproximadas eram mais ou menos conhecidas já há anos. Claro que se trata, inegavelmente, de realização tecnológica impressionante, um míssil balístico que não só tem alcance praticamente ilimitado mas que, além disso, é capaz de adotar trajetórias que tornam inúteis todas as defesas com mísseis antimísseis. Afinal, ser atacado a partir do Polo Sul por um míssil que viajará sobre toda a América do Sul, absolutamente não é evento que os militares dos EUA tenham meios para neutralizar. E eles continuarão sem dispor desses meios por ainda muitos e muitos anos.
O mesmo se pode dizer do sistema de asa planadora hipersônica de velocidade Mach 20, chamado Avangardque já está sendo produzido em série, num desenvolvimento completamente surpreendente – os EUA têm programa semelhante para esse tipo de arma, mas ainda não lograram sucesso; ideias assim circulam nos EUA desde meados dos anos 2000s, sob o guarda-chuva do programa PGS (Prompt Global Strike). Essas são sim fantásticas conquistas tecnológicas dos russos, que Jeffrey Lewis chama de “bizarras” apenas para não confessar que “nós não temos nada que sequer se aproxime disso”, mas nem foi esse o verdadeiro choque. Vários dos meus artigos nesse universo trataram precisamente da área na qual os EUA estão absolutamente atrasados: os mísseis cruzadores, todos os tipos deles. Previ há muito tempo que o real declínio militar dos EUA viria precisamente desse lado. Hoje é absolutamente claro que a Rússia está em posição de gigantesca vantagem militar-tecnológica em mísseis cruzadores e aerobalísticos, décadas à frente dos EUA nesse campo crucial.
Enquanto os acadêmicos ocidentais discutiam esses sistemas exóticos e sem dúvida surpreendentes, projetados e construídos para transportar armas atômicas até qualquer ponto do globo com a mais alta precisão, muitos daqueles que são realmente profissionais lá estavam sem respirar, de queixo caído, ao ser relevado o míssil Kinzhal (adaga). Essa sim, é a arma que muda definitivamente o jogo, em termos geopolíticos, estratégicos, operacionais, táticos e psicológicos. Já se sabia há algum tempo que a Marinha russa dispunha de um míssil revolucionário, de velocidade Mach 8, o míssil antinavios 3M22 Zircon. Por mais impressionante e virtualmente não interceptável por qualquer das defesas conhecidas que o Zircon seja, o Kinzhal é simplesmente estarrecedor, tais as suas capacidades. O Kinzhal, que muito provavelmente é baseado no padrão do famoso míssil Iskander, alcança Mach 10, é altamente dirigível e manobrável. Esse míssil aerobalístico com alcance de 2.000 quilômetros, transportado e lançado por jatos MiG-31BM, simplesmente reescreveu o manual da guerra naval. É arma que torna obsoletas as frotas de superfície. Não, você não está lendo errado. Nenhuma defesa aérea ou sistema antimísseis que há hoje no mundo é capaz de obter qualquer vantagem no confronto com o Kinzhal (talvez com a exceção do futuro S-500, especialmente projetado para interceptar alvos hipersônicos [N. do T.: o mais avançado sistema russo antimísseis]) e, muito provavelmente, levará décadas até que se encontre um antídoto para ele. Mais especificamente: nenhum sistema moderno ou projetado de defesa aérea usado por quaisquer das frotas da OTAN pode interceptar nem sequer um único míssil dotado de tais características. Uma salva de cinco ou seis desses mísseis garante a destruição de qualquer porta-aviões e respectiva grupo de combate de destroieres e cruzadores, por exemplo. E tudo isso sem usar munição nuclear.
O emprego de tal arma – detalhe importante, especialmente porque agora sabemos que já há uma delas voando no Distrito Militar Sul da Rússia – é muito simples. O ponto-alvo mais provável de mísseis lançados dos MiG-31’s estará nas águas internacionais do Mar Negro, o que implica dizer que todo o Mediterrâneo Oriental estará fechado para qualquer tipo de navios ou esquadras de superfície.
A Rússia pode também fechar completamente o Golfo Pérsico. Ela pode também estabelecer uma vastíssima zona de exclusão no Pacífico, áreas nas quais os jatos MiG-31 estacionados em Yelizovo na península de Kamchatka ou na Base Aérea Centralnaya Uglovaya em Primosrky Kraipoderão patrulhar grandes distâncias sobre o oceano. Vale ressaltar que a atual plataforma de transporte e lançamento do míssil Kinzhal é o MiG-31 – possivelmente o melhor jato interceptador da História. Obviamente, a capacidade do jato MiG-31 para alcançar altas velocidades supersônicas (bem acima de Mach 2) é um fator chave para o lançamento. Mas não importa quais sejam os procedimentos para lançar essa arma aterrorizante, as consequências estratégicas imediatas da entrada em operação do Kinzhal são as seguintes:
1. Os porta-aviões são finalmente deslocados para o nicho da mera projeção de poder contra adversários fracos e indefesos, e para bem longe das áreas marítimas da Rússia, sejam o Mediterrâneo, o Pacífico ou o Atlântico Norte. Significa também uma zona de exclusão para qualquer um dos 33 destroieres e cruzadores da Marinha americana equipados com o sistema Aegis [N. do T.: sistema originalmente defensivo de mísseis antimísseis, que podem no entanto disparar também mísseis de ataque Tomahawk, que são mísseis de cruzeiro de difícil detecção, o que sempre representou uma grave preocupação para a Rússia], cruciais para o escudo dos chamados Mísseis Balísticos de Defesa dos norte-americanos;
2. O míssil Kinzhal torna completamente inúteis e obsoletos as clássicas esquadras de combate comandadas por porta-aviões, que se tornam imprestáveis como principal força de ataque contra adversário de força igual ou semelhante. Também deixa sem defesas qualquer navio de combate de superfície, sejam quais forem as suas defesas antiaérea e antimísseis. O Kinzhal anula completamente as centenas de bilhões de dólares que foram investidos naquelas plataformas e armas, que de repente foram convertidas em nada mais que gordos alvos indefesos. Todo o conceito de Batalha Ar-Mar, que também atende pelo nome de Conceito Conjunto para Acesso e Manobra nas Áreas Globais em Comum, e que é a pedra de toque da dominação global pelos EUA, foi também tornado simplesmente inútil. Pode-se chamar isso de catástrofe completa, doutrinária e orçamentária.
3. O chamado “controle sobre os mares e negação de acesso aos mares” muda completamente de natureza, as duas coisas se fundem. Quem possui essas armas é simplesmente 'dono' de vastos espaços nos mares cobertos pelos alcances do míssil Kinzhale das aeronaves que os transportam. Isso também remove completamente qualquer apoio de superfície, crucial para os submarinos em todos os casos, expondo-os à aviação e aos navios de superfície de patrulha e de guerra antissubmarina. O efeito é multiplicativo e é profundo.
A Rússia possui muitos desses transportadores-lançadores – o programa de modernização dos jatos MiG-31s para o modelo BM já está há anos funcionando a pleno vapor, e as unidades da frente de combate da Força Aérea russa vêm recebendo considerável influxo desse tipo de aeronave. Ficou claro agora o motivo pelo qual foi empreitado esse processo de modernização – ele fez dos MiG-31BM as plataformas de lançamento do Kinzhal. Como o Major-Almirante James L. Jones deixou registrado em 1991, depois da Primeira Guerra do Golfo: “Para botar para correr em pânico uma esquadra de combate de porta-aviões e tudo, basta alguém despejar na água meia dúzia de barris com inflamáveis”. O míssil Kinzhal efetivamente remove para milhares de quilômetros de distância das praias russas qualquer força de superfície não suicida, e torna irrelevante toda a sua capacidade. Em linguagem de leigos, significa apenas uma coisa – toda a frota de superfície da Marinha dos Estados Unidos vira uma força oca, boa só para desfilar em dias de parada e exibir bandeira nos litorais de países fracos e subdesenvolvidos. E isso pôde ser feito apenas com uma fração mínima dos custos astronômicos das plataformas e armas norte-americanas.
É muito difícil, nesse momento, prever o efeito de médio e longo prazo, nos EUA, do discurso de Putin. Pode-se prever bem mais facilmente que usarão o clichê, muito batido e já semimorto, da “assimetria”. Mas esse clichê não se aplica. O que aconteceu no dia primeiro de março desse ano, com o anúncio e a exibição das novas armas russas, não é fenômeno de “assimetria”: foi o reconhecimento do advento de um paradigma completamente novo na concepção da guerra, na tecnologia militar e, como consequência, também na estratégia e no manejo operacional. As velhas regras e os velhos saberes já não se aplicam mais. Os EUA não estavam e não estão preparados para o que veio, apesar de muitos profissionais competentes, inclusive nos EUA, terem alertado sobre um novo paradigma militar-tecnológico que estava em andamento, e alertado também para a miopia e a arrogância dos norte-americanos em tudo que tenha a ver com militares e militarismos. Como o coronel Daniel Davies se viu forçado a admitir:
Por mais justificado que o orgulho possa ter sido naquele momento, o orgulho rapidamente se converteu na mais insuportável arrogância. Hoje, essa arrogância é perigo mortal para a nação. Talvez nada exemplifique melhor essa ameaça do que o sistema disfuncional de compras do Pentágono.
É prudente prever hoje, considerado o pano de fundo de uma abordagem geral da guerra pelos norte-americanos, que não haverá resposta tecnológica sensível dos EUA à Rússia no futuro previsível. Os EUA simplesmente não têm recursos para se contrapor, exceto botar para rodar suas máquinas de imprimir dinheiro, levando a si próprios completamente à falência nesse processo. Mas esse é o ponto: os russos sabem disso, e o discurso de Putin não visou ameaçar diretamente os EUA, ainda que, para todos os efeitos e propósitos, os EUA estejam hoje simplesmente indefesos diante do arsenal de armas hipersônicas da Rússia. A Rússia não persegue o objetivo de destruir os EUA. As ações da Rússia são ditadas por uma única razão: dar um tranco, meter um trabuco no nariz de um bêbado armado com dois punhais que está aos pulos num bar apinhado de gente, para obrigá-lo a parar de pular, entregar os punhais e ouvir o que os outros tenham a dizer. Em outras palavras, a Rússia entrou armada de pistola numa briga de faca. Porque esse parece ser o único modo de lidar, hoje, com os EUA.
Se o tranco e a demonstração da superioridade militar-tecnológica dos russos terão algum efeito, como foi desde o começo a intenção dos russos, poderá ter início uma conversa racional e sensível sobre a nova ordem mundial entre os atores geopolíticos decisivos. O mundo já não tem como continuar arcando com um abusador valentão, pretensioso, superficial e guiado por autopromoção, que nem percebe o que faz e que ameaça a estabilidade e a paz do mundo. A autoproclamada hegemonia dos norte-americanos está encerrada, precisamente no ponto que realmente importa para qualquer real ou suposto hegemon – no campo militar. Ela já estava encerrada faz algum tempo, mas faltava o discurso de Putin para demonstrar o velho e bom truísmo de Al Capone, que sabia que sempre se pode obter muito mais com uma palavra gentil e uma arma do que só com a palavra gentil. Afinal de contas, ninguém mais que a Rússia insistiu em usar só a palavra gentil. Não funcionou, e os EUA agora só têm a si mesmos para culpar.