quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Você apoia Israel? Saiba o que Israel pensa sobre você!

Emoticon smile"Talmud Babilônico", publicado pela Socidade Talmúdica de Boston, p. XII
Os judeus se referem ao restante dos habitantes da Terra, os povos não-judeus, como "gentios" ou "goyim". Vamos ver o que o Talmud judaico ensina aos judeus quanto à maioria não-judaica, isto é, aqueles que não pertencem ao "povo escolhido" de Javé:
"Os judeus são chamados seres humanos, mas os não-judeus não são humanos. Eles são bestas."
- Talmud: Baba mezia, 114b
"O Akum (não-judeu) é como um cachorro. Sim, a escritura ensina a honrar o cachorro mais do que ao não-judeu."
- Ereget Raschi Erod, 22 30
"Mesmo tendo sido criados por Deus os não-judeus ainda são animais em forma humana. Não cai bem para um judeu ser servido por um animal. Portanto ele será servido por animais em forma humana."
- Midrasch Talpioth, p. 255 Warsaw 1855
"Uma grávida não-judia não é mais do que um animal grávido."
- Coschen hamischpat 405
"As almas dos não-judeus vem de espíritos impuros e são chamadas porcos."
- Jalkut Iuchoth Haberith, p. 250 b
"Se você comer com um gentio, é o mesmo que comer com um cachorro."
- Tosapoth, Jebamoth 94b
"Se o judeu tem um servente não-judeu que morre, um não deve expressar simpatia ao judeu. Você deve dizer a ele: "Deus irá repor 'sua perda', como se um de seus bois tivesse morrido."
- Jore dea 377,1
"Relação sexual entre gentios é como relação sexual entre animais."
- Talmud Sanhedrin 74b
"É permitido tirar o corpo e a vida de um gentio."
- Sepher ikkarim III c 25
"É a lei matar qualquer um que nega a Torah. Os cristãos pertencem aos negaceadores da Torah."
- Coschen hamischpat 425 Hagah 425,5
"Um gentio herético você pode matar com suas próprias mãos."
- Talmud, Abodah Zara, 4b
"Todo judeu, que faz jorrar o sangue dos sem-Deus (não-judeus), está fazendo o mesmo que um sacrifício a Deus."
- Talmud: Bammidber raba c 21 & Jalkut 772

domingo, 29 de novembro de 2015

Carta Aberta a FHC que merece ir para os livros de história



fhc carta aberta theotonio santos
Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente do Brasil. Foto: divulgação
Segue uma Carta Aberta de 



Theotonio dos Santos, economista, cientista político e um dos formulado-
res da Teoria da Dependência. Hoje é um dos principais expoentes da
Teoria do Sistema Mundo. Mestre em Ciência Política pela UnB e doutor
“notório saber” pela UFMG e pela UFF. Coordenador da cátedra e rede
UNU-UNESCO de Economia Global e Desenvolvimento sustentável – 
REGGEN.
Meu caro Fernando,
Vejo-me na obrigação de responder a carta aberta que você dirigiu ao
Lula, em nome de uma velha polêmica que você e o José Serra inicia-
ram em 1978 contra o Rui Mauro Marini, eu, André Gunder Frank e Vâ-
nia Bambirra, rompendo com um esforço teórico comum que iniciamos
no Chile na segunda metade dos nos 1960.
A discussão agora não é entre os cientistas sociais e sim a partir de uma
experiência política que reflete contudo este debate teórico. Esta carta 
assinada por você como ex-presidente é uma defesa muito frágil teórica
e politicamente de sua gestão. Quem a lê não pode compreender porque
você saiu do governo com 23% de aprovação enquanto Lula deixa o seu
governo com 96% de aprovação.Já discutimos em várias oportunidades
os mitos que se criaram em torno dos chamados êxitos do seu governo.
Já no seu governo vários estudiosos discutimos, o inevitável caminho de
seu fracasso junto à maioria da população.

Pois as premissas teóricas em que baseava sua ação política eram profun-
damente equivocadas e contraditórias com os interesses da maioria da po-
pulação. (Se os leitores têm interesse de conhecer o debate sobre estas ba-
ses teóricas lhe recomendo meu livro já esgotado: Teoria da Dependência:
Balanço e Perspectivas, Editora Civilização Brasileira, Rio, 2000). Contudo
nesta oportunidade me cabe concentrar-me nos mitos criados em torno do
seu governo, os quais você repete exaustivamente nesta carta aberta.O pri-
meiro mito é de que seu governo foi um êxito econômico a partir do fortaleci-
mento do real e que o governo Lula estaria apoiado neste êxito alcançando
assim resultados positivos que não quer compartilhar com você… Em primei-
ro lugar vamos desmitificar a afirmação de que foi o plano real que acabou 
com a inflação.
Os dados mostram que até 1993 a economia mundial vivia uma hiperinflação
na qual todas as economias apresentavam inflações superiores a 10%. A par-
tir de 1994, TODAS AS ECONOMIAS DO MUNDO APRESENTARAM UMA 
QUEDA DA INFLAÇÃO PARA MENOS DE 10%. Claro que em cada pais apa-
receram os “gênios” locais que se apresentaram como os autores desta queda.
Mas isto é falso: tratava-se de um movimento planetário. No caso brasileiro, a 
nossa inflação girou, durante todo seu governo, próxima dos 10% mais altos.
TIVEMOS NO SEU GOVERNO UMA DAS MAIS ALTAS INFLAÇÕES DO MUN-
DO. E aqui chegamos no outro mito incrível. Segundo você e seus seguidores 
(e até setores de oposição ao seu governo que acreditam neste mito) sua polí-
tica econômica assegurou a transformação do real numa moeda forte. Ora Fer-
nando, sejamos cordatos: chamar uma moeda que começou em 1994 valendo 
0,85 centavos por dólar e mantendo um valor falso até 1998, quando o próprio 
FMI exigia uma desvalorização de pelo menos uns 40% e o seu ministro da eco-
nomia recusou-se a realizá-la “pelo menos até as eleições”, indicando assim a 
época em que esta desvalorização viria e quando os capitais estrangeiros deve-
riam sair do país antes de sua desvalorização, O fato é que quando você flexibi-
lizou o cambio o real se desvalorizou chegando até a 4,00 reais por dólar. E não
venha por a culpa da “ameaça petista” pois esta desvalorização ocorreu muito 
antes da “ameaça Lula”.
ORA, UMA MOEDA QUE SE DESVALORIZA 4 VEZES EM 8 ANOS PODE SER
CONSIDERADA UMA MOEDA FORTE? Em que manual de economia? Que eco-
nomista respeitável sustenta esta tese? Conclusões: O plano Real não derrubou 
a inflação e sim uma deflação mundial que fez cair as inflações no mundo inteiro.
A inflação brasileira continuou sendo uma das maiores do mundo durante o seu 
governo. O real foi uma moeda drasticamente debilitada. Isto é evidente: quando
nossa inflação esteve acima da inflação mundial por vários anos, nossa moeda 
tinha que ser altamente desvalorizada. De maneira suicida ela foi mantida artifici-
almente com um alto valor que levou à crise brutal de 1999.
Segundo mito – Segundo você, o seu governo foi um exemplo de rigor fiscal.Meu
Deus: um governo que elevou a dívida pública do Brasil de uns 60 bilhões de reais
em 1994 para mais de 850 bilhões de dólares quando entregou o governo ao Lula,
oito anos depois, é um exemplo de rigor fiscal? Gostaria de saber que economista
poderia sustentar esta tese. Isto é um dos casos mais sérios de irresponsabilidade
fiscal em toda a história da humanidade.
E não adianta atribuir este endividamento colossal aos chamados “esqueletos” das
dívidas dos estados, como o fez seu ministro de economia burlando a boa fé daque-
les que preferiam não enfrentar a triste realidade de seu governo. Um governo que
chegou a pagar 50% ao ano de juros por seus títulos para, em seguida, depositar os
investimentos vindos do exterior em moeda forte a juros nominais de 3 a 4%, não po-
de fugir do fato de que criou uma dívida colossal só para atrair capitais do exterior 
para cobrir os déficits comerciais colossais gerados por uma moeda sobrevalorizada
que impedia a exportação, agravada ainda mais pelos juros absurdos que pagava pa-
ra cobrir o déficit que gerava.
Este nível de irresponsabilidade cambial se transforma em irresponsabilidade fiscal 
que o povo brasileiro pagou sob a forma de uma queda da renda de cada brasileiro 
pobre. Nem falar da brutal concentração de renda que esta política agravou drastica-
mente neste pais da maior concentração de renda no mundo. Vergonha, Fernando. 
Muita vergonha. Baixa a cabeça e entenda porque nem seus companheiros de partido
querem se identificar com o seu governo…te obrigando a sair sozinho nesta tarefa in-
sana.
Terceiro mito – Segundo você, o Brasil tinha dificuldade de pagar sua dívida externa 
por causa da ameaça de um caos econômico que se esperava do governo Lula. Fer-
nando, não brinca com a compreensão das pessoas. Em 1999 o Brasil tinha chegado
à drástica situação de ter perdido TODAS AS SUAS DIVISAS. Você teve que pedir 
ajuda ao seu amigo Clinton que colocou à sua disposição os 20 bilhões de dólares do
tesouro dos Estados Unidos e mais uns 25 BILHÕES DE DÓLARES DO FMI, Banco 
Mundial e BID.
Tudo isto sem nenhuma garantia. Esperava-se aumentar as exportações do pais para
gerar divisas para pagar esta dívida. O fracasso do setor exportador brasileiro mesmo
com a espetacular desvalorização do real não permitiu juntar nenhum recurso em dólar
para pagar a dívida. Não tem nada a ver com a ameaça de Lula. A ameaça de Lula exis-
tiu exatamente em consequência deste fracasso colossal de sua política macroeconô-
mica. Sua política externa submissa aos interesses norte-americanos, apesar de algu-
mas declarações críticas, ligava nossas exportações a uma economia decadente e um
mercado já copado. A recusa dos seus neoliberais de promover uma política industrial
na qual o Estado apoiava e orientava nossas exportações.
A loucura do endividamento interno colossal. A impossibilidade de realizar inversões pú-
blicas apesar dos enormes recursos obtidos com a venda de uns 100 bilhões de dólares
de empresas brasileiras. Os juros mais altos do mundo que inviabilizava e ainda inviabili-
za a competitividade de qualquer empresa. Enfim, UM FRACASSO ECONOMICO RO-
TUNDO que se traduzia nos mais altos índices de risco do mundo, mesmo tratando-se 
de avaliadoras amigas. Uma dívida sem dinheiro para pagar… Fernando, o Lula não era
ameaça de caos. Você era o caos. E o povo brasileiro correu tranquilamente o risco de 
eleger um torneiro mecânico e um partido de agitadores, segundo a avaliação de vocês,
do que continuar a aventura econômica que você e seu partido criou para este país.
Gostaria de destacar a qualidade do seu governo em algum campo mas não posso fazê-
-lo nem no campo cultural para o qual foi chamado o nosso querido Francisco Weffort 
(neste então secretário geral do PT) e não criou um só museu, uma só campanha signifi-
cativa. Que vergonha foi a comemoração dos 500 anos da “descoberta do Brasil”. E no 
plano educacional onde você não criou uma só universidade e entrou em choque com a
maioria dos professores universitários sucateados em seus salários e em seu prestígio 
profissional.
Não Fernando, não posso reconhecer nada que não pudesse ser feito por um medíocre
presidente.Lamento muito o destino do Serra. Se ele não ganhar esta eleição vai ficar 
sem mandato, mas esta é a política. Vocês vão ter que revisar profundamente esta ten-
tativa de encerrar a Era Vargas com a qual se identifica tão fortemente nosso povo. E te-
rão que pensar que o capitalismo dependente que São Paulo construiu não é o que o po-
vo brasileiro quer. E por mais que vocês tenham alcançado o domínio da imprensa brasi-
leira, devido suas alianças internacionais e nacionais, está claro que isto não poderia as-
segurar ao PSDB um governo querido pelo nosso povo. Vocês vão ficar na nossa história
com um episódio de reação contra o verdadeiro progresso que Dilma nos promete aprofun-
dar. Ela nos disse que a luta contra a desigualdade é o verdadeiro fundamento de uma po-
lítica progressista.
E dessa política vocês estão fora. Apesar de tudo isto, me dá pena colocar em choque tão
radical uma velha amizade. Apesar deste caminho tão equivocado, eu ainda gosto de vocês
( e tenho a melhor recordação de Ruth) mas quero vocês longe do poder no Brasil. Como 
a grande maioria do povo brasileiro. Poderemos bater um papo inocente em algum congres-
so internacional se é que vocês algum dia voltarão a frequentar este mundo dos intelectuais
afastados das lides do poder.
Com a melhor disposição possível, mas com amor à verdade, me despeço.
http://www.pragmatismopolitico.com.br/2012/09/carta-aberta-fhc-theotonio-santos-historia.html

sábado, 28 de novembro de 2015

O porrete e o vira-lata

Por Mauro Santayana



No momento em que se levantam, novamente, as vozes do neoliberalismo tupiniquim, exigindo uma rápida abertura comercial do Brasil para o exterior, e o PMDB inclui, em seu documento Uma Ponte para o Futuro, a necessidade do Brasil estabelecer acordos comerciais com a Europa e os EUA, lembrando a iminência e a imposição “histórica” do Acordo Transpacífico, e em que mídia tradicional segue com sua insistência em defender como modelo a ridícula Aliança do Pacífico, a União Européia - depois de enrolar, durante anos, nas negociações com o Mercosul - parece que vai simplesmente “congelar” as negociações entre os dois blocos nesta sexta-feira.

A razão é clara.

Por mais que se esforcem os vira-latas tupiniquins, fazendo tudo que os gringos querem, oferecendo quase 90% de liberação de produtos, os protecionistas europeus simplesmente se recusam a concorrer com o Mercosul na área agrícola - justamente onde somos mais competitivos.

E, além disso, como se não bastasse, a UE como um todo, para dificultar, hipocritamente, ainda mais o fechamento de um acordo, exige o equivalente a uma rendição total da nossa parte:

A liberação de quase 100% dos produtos e livre acesso, para suas empresas, como se nacionais fossem, a setores como serviços de engenharia e advocacia e ao gigantesco mercado de compras governamentais brasileiro, de dezenas de bilhões de dólares.

O recado é óbvio:

Não adianta ficar ganindo e mendigando com olhar pidão, para ter atenção ou uma migalha, porque não vamos ceder um centímetro, e, mesmo que vocês façam tudo, tudo o que queremos, poderão não ganhar nada em troca, está claro?

Como lembramos outro dia, grandes potências impõem acordos comerciais, e os pequenos países os assinam.

Nações que não tem uma indústria tão desenvolvida como a nossa, como a Argentina, ou outras, que, com salários miseráveis, se transformaram em mera linha de maquila, tendo prejuízos no comércio exterior, apesar de trabalharem como burros de carga montando produtos destinados a terceiros mercados, como o México (vide O México e a América do Sul), não tem outra saída a não ser se associar a outros países (esse é o projeto do Brasil para a América do Sul, por meio do Mercosul e da UNASUL) ou assinar acordos comerciais desvantajosos, para se integrar, subalternamente, à economia mundial.

Países maiores, com grandes mercados consumidores reais ou potenciais, como a China, preferem fechar suas economias durante anos, dedicando-se a desenvolver seu mercado interno, a indústria e a tecnologia, abrindo seletivamente seu território a empresas estrangeiras e cobrando um alto preço para quem quisesse ter acesso a ele, para depois se impor, comercialmente, ao mundo.

A pergunta é a seguinte:

Vamos nos atrelar, como um mero vagão de commodities, ao trem puxado pela Europa e os Estados Unidos, onde sempre seremos tratados, apesar de nossos eventuais progressos, como um povo de segunda classe, ou, em nossa condição de oitava economia do planeta, vamos tentar estabelecer um projeto próprio e soberano, de longo prazo, como fazem outras potências intermediárias do nosso tipo, como a China, a Rússia e a Índia, que, aliás, não têm - nenhuma delas - acordos de livre comércio com a Europa ou os EUA?

Tentar emular, abjetamente os outros, e lamber o sapato alheio é fácil.

Difícil é trabalhar para erguer – assumindo a missão e o sacrifício – no quinto maior território do mundo - uma nação justa, forte, e independente, e legá-la, como fizeram em outros países que muitos no Brasil admiram e “copiam”, como um estandarte de honra e de prosperidade, para os nossos filhos.

http://altamiroborges.blogspot.com.br/2015/11/o-porrete-e-o-vira-lata.html#more

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Como o Ocidente está manufaturando o terrorismo islâmico

Obama e Hollande

Cem anos atrás, seria inimaginável que um par de homens muçulmanos entrasse em um café ou num veículo de transporte público e se explodisse, matando dezenas de pessoas. Ou que cometesse o massacre da equipe de uma revista satírica em Paris! Coisas como estas simplesmente não aconteciam.
Quando você lê as memórias de Edward Said, ou conversa com homens e mulheres de Jerusalém oriental, fica claro que a maior parte da sociedade palestina era absolutamente secular e moderada. Estava mais preocupada com a vida, a cultura, mesmo com a moda do que com dogmas religiosos.
O mesmo pode ser dito sobre muitas outras sociedades muçulmanas, inclusive as da Síria, Iraque, Irã, Egito e Indonésia. Fotos antigas falam por si. Por isso é importante estudar imagens antigas de novo, cuidadosamente.
O islã não é apenas uma religião; é também uma enorme cultura, uma das maiores do planeta, que enriqueceu nossa humanidade com conquistas científicas e arquitetônicas e com muitas descobertas no campo da medicina.
Os muçulmanos escreveram poesia deslumbrante e compuseram linda música. Mas, acima de tudo, desenvolveram algumas das primeiras estruturas sociais do mundo, inclusive enormes hospitais públicos e as primeiras universidades, como a de al-Qarawiyyin em Fez, no Marrocos.
A ideia do “social” era natural para muitos políticos muçulmanos e, se o Ocidente não tivesse interferido brutalmente, ao derrubar governos de esquerda para colocar no trono aliados fascistas de Londres, Washington e Paris, quase todos os países muçulmanos, inclusive o Irã, o Egito e Indonésia, provavelmente seriam socialistas, sob um grupo moderado de líderes seculares.
No passado, muitos líderes muçulmanos se levantaram contra o controle do mundo pelo Ocidente e figuras enormes como o presidente indonésio Ahmet Sukarno, foram próximos aos partidos e ideologias comunistas. Sukarno até forjou um movimento antiimperialista global, o Movimento dos Não-Alinhados, que ficou claramente definido durante a Conferência de Bandung, na Indonésia, em 1955.
Isso contrastava com as elites conservadoras e cristãs, que se sentiam em casa com governantes fascistas e colonialistas, com reis, comerciantes e oligarcas dos grandes negócios.
Para o Império, a existência e a popularidade de governantes muçulmanos progressistas e marxistas governando os países do Oriente Médio ou ricos em recursos como a Indonésia eram claramente inaceitáveis.
Se eles pretendiam usar a riqueza natural para melhorar a vida de seus povos, o que sobraria para o Império e suas corporações? Isso tinha de ser desfeito por todos os meios. O islã tinha de ser dividido, infiltrado com radicais e classes anti-comunistas e por aqueles que não se importavam com o bem estar de seus povos.
Quase todos os movimentos radicais do islã de hoje, em qualquer parte do mundo, são ligados ao wahhabismo, uma seita ultraconservadora e reacionária do islã que está no controle da vida política da Arábia Saudita, do Qatar e de outros grandes aliados do Ocidente no Golfo.
Citando o Dr. Abdullah Mohammad Sindi:
“Está muito claro pelos dados históricos que sem apoio britânico nem o wahhabismo nem a Casa de Saud existiriam hoje. O wahhabismo é um movimento fundamentalista do islã inspirado pelos britânicos. Através de sua defesa da Casa de Saud, os Estados Unidos apoiam o wahhabismo direta e indiretamente, apesar dos ataques terroristas do 11 de setembro de 2001. O wahhabismo é violento, direitista, rígido, extremista, reacionário, sexista e intolerante…”
O Ocidente deu apoio total aos wahhabis nos anos 80. Eles foram empregados, financiados e armados depois que a União Soviética foi tragada no Afeganistão, na guerra civil que durou de 1979 a 1989. Como resultado da guerra, a União Soviética entrou em colapso, exausta econômica e psicologicamente.
Os Mujahedeen, que lutaram tanto contra os soviéticos contra o governo esquerdista em Cabul, foram encorajados e financiados pelo Ocidente e seus aliados. Vieram de todos os cantos do mundo islâmico para lugar a “Guerra Santa” contra os infiéis comunistas.
De acordo com os arquivos do Departamento de Estado:
“Contingentes dos assim chamados árabes afegãos e guerrilheiros estrangeiros desejavam mover a jihad contra os ateus comunistas. Notáveis entre eles era um jovem saudita de nome Osama bin Laden, cujo grupo eventualmente se tornou a al-Qaeda”.
Grupos radicais islâmicos, criados e injetados em vários países muçulmanos pelo Ocidente incluem a al-Qaeda, mas também, mais recentemente, o ISIS (também conhecido como ISIL). O ISIS é um exército extremista nascido nos campos de refugiados nas fronteiras entre Síria-Turquia e Síria-Jordânia, que foi financiado pela OTAN e pelo Ocidente para lutar contra o governo (secular) de Bashar al-Assad, na Síria.
Tais implantes radicais servem a vários objetivos. O Ocidente os usar para lutar suas guerras contra inimigos — países que ainda estão no caminho da completa dominação do mundo pelo Império. Depois, mais tarde, quando estes exércitos extremistas “fogem completamente do controle” (como sempre acontece), eles servem como espantalhos para justificar a “Guerra contra o Terror” ou, como o ISIS em Mosul, como desculpa para reengajamento de tropas ocidentais no Iraque.
Notícias sobre grupos radicais muçulmanos são constantemente divulgadas na primeira página de jornais, em capas de revistas ou mostradas nos monitores de TV, para lembrar às pessoas “como o mundo é perigoso”, “como o engajamento do Ocidente é importante” e, consequentemente, como é importante a vigilância, como são indispensáveis as medidas de segurança, assim como os tremendos orçamentos de defesa e as guerras contra estados bandidos.
Nas últimas cinco décadas, cerca de 10 milhões de muçulmanos foram assassinados porque seus países não serviram ao Império, não serviram suficientemente ou eram obstáculos no caminho.
As vítimas foram indonésios, iraquianos, argelinos, afegãos, paquistaneses, iranianos, iemenitas, libaneses, egípcios e cidadãos do Mali, da Somália, do Bahrein e outros.
O Ocidente identificou os monstros mais horríveis, jogou bilhões de dólares, deu armas e treinamento a eles e os soltou por aí.
Os países que promovem o terrorismo, Arábia Saudita e Qatar, são aliados dos mais próximos do Ocidente e nunca foram punidos por exportar o horror para todo o mundo muçulmano.
Movimentos sociais, como o Hezbollah, que está engajado em combate mortal contra o ISIS — mas que também galvanizou o Líbano em sua luta contra a invasão de Israel — estão na lista de “terroristas” compilada pelo Ocidente. Isso explica muito, se alguém se dispuser a prestar atenção.
Olhando a partir do Oriente Médio, parece que o Ocidente, como durante as cruzadas, visa a destruição absoluta dos países e da cultura muçulmanos.
Quando à religião islâmica, o Império aceita apenas as formas amigáveis — aquelas que aceitam o capitalismo extremista e a dominação global pelo Ocidente.
O único tipo tolerável de islã é aquele manufaturado pelo próprio Ocidente e seus aliados do Golfo — desenhado para lutar contra o progresso e a justiça sociais: aquele que devora seu próprio povo.
*É novelista, cineasta e jornalista investigativo.
http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/andre-vltchek-como-o-ocidente-esta-manufaturando-o-terrorismo-islamico.html

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

O que é o Estado Islâmico

Abu Bakr al-Baghdadi, autoproclamado califa do Estado Islâmico
Abu Bakr al-Baghdadi, autoproclamado califa do Estado Islâmico

Por Graeme Wood

De onde veio e quais são as suas intenções? A simplicidade destas perguntas pode ser enganadora e poucos líderes ocidentais parecem saber as respostas. Em Dezembro, o New York Times publicou declarações confidenciais do major Michael K. Nagata, o comandante de Operações Especiais dos Estados Unidos no Médio Oriente, em que este admitia que não conseguia perceber o autoproclamado Estado Islâmico (EI). “Não conseguimos derrotar a ideia [por trás do movimento]”, disse. “Nem sequer conseguimos perceber a ideia.” No último ano, o Presidente Barack Obama tem-se referido ao Estado Islâmico ora como “não islâmico”, ora como “a equipa de novatos” da Al-Qaeda, comentários que revelam a confusão sobre o grupo e que podem ter contribuído para erros de estratégia grosseiros.

O EI conquistou Mossul, no Iraque, em junho passado, e já exerce poder sobre uma área maior do que o Reino Unido. Desde maio de 2010 que Abu Bakr al-Baghdadi é o seu líder, mas até o verão passado, a última vez que tinha sido filmado fora sob cativeiro americano em Camp Bucca durante a ocupação do Iraque, onde aparecia numas imagens granuladas. Então, a 5 de julho do ano passado, durante o Ramadam, subiu ao púlpito da Grande Mesquita de al-Nuri, em Mossul, para um sermão em que se autodeclarava o primeiro califa ao fim de várias gerações — fazendo um up grade na resolução da sua imagem, que passou de granulada a alta definição, e da sua posição de guerrilheiro fugido das autoridades a comandante de todos os muçulmanos. O afluxo de jihadistas que se seguiu, vindo de todo o mundo, foi inédito em ritmo e quantidade, e ainda não parou.

De certa forma, a nossa ignorância sobre o Estado Islâmico é compreensível: é um reino obscuro e poucos foram até lá e regressaram. Baghdadi só falou para as câmeras uma vez, mas o seu discurso e os incontáveis vídeos de propaganda e encíclicas do EI estão acessíveis na Internet, e os apoiantes do califado têm feito tudo o que está ao seu alcance para dar a conhecer o seu projeto. Podemos concluir que o EI rejeita que a paz seja uma questão de princípio; que deseja um genocídio; que as suas posições o tornam constitucionalmente incapaz de certas mudanças, mesmo que estas garantam a sua sobrevivência; e que se considera o agente — e ator principal — do fim do mundo, que está iminente.
O Estado Islâmico, também conhecido como Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS), segue uma variante específica do islam, cuja crença no Dia do Juízo Final tem importância na sua estratégia e poderá ajudar o Ocidente a conhecer melhor o inimigo e prever o seu comportamento. A sua subida ao poder é menos parecida com o triunfo da Irmandade Muçulmana no Egito (um grupo que os líderes do EI consideram apóstata) do que com a realidade alternativa distópica que [os líderes de seitas americanas] David Koresh ou Jim Jones quiseram criar para governar não apenas umas centenas de pessoas, mas oito milhões.
Não temos sabido compreender a natureza do Estado Islâmico. Primeiro, tendemos a ver o jihadismo como monolítico e a aplicar a lógica da Al-Qaeda a uma organização que, sem dúvida, a ofuscou. Os apoiantes do Estado Islâmico com quem falei ainda se referem a Osama bin Laden como “xeque Osama”, um título honorífico. Mas o jihadismo evoluiu desde a época áurea da Al-Qaeda, entre 1998 e 2003, e muitos jihadistas desprezam as prioridades do grupo e a sua atual liderança.
Bin Laden encarava o seu terrorismo como o prólogo de um califado que não contava ver realizado durante o seu tempo de vida. A sua organização era flexível e operava como uma rede geograficamente dispersa de células autônomas. Pelo contrário, o Estado Islâmico precisa de território para se legitimar e de uma estrutura hierarquizada que o governe. (A sua burocracia divide-se nos ramos civil e militar, e o seu território em províncias.)
A segunda razão pela qual não o compreendemos tem que ver com uma campanha bem intencionada mas desonesta que nega ao EI a sua natureza religiosa medieval. Peter Bergen, que em 1997 fez a primeira entrevista a Bin Laden, intitulou o seu primeiro livro de Holy War, Inc., em parte por reconhecer Bin Laden como uma figura do mundo secular moderno. Bin Laden corporatizava o terror e fez dele um franchising. Exigia concessões políticas específicas, tal como a retirada das forças americanas da Arábia Saudita. Os seus soldados rasos moviam-se com confiança no mundo moderno. Na véspera de morrer, Mohamed Atta [um dos atacantes do 11 de Setembro] fez compras no Walmart e jantou na Pizza Hut.

É uma tentação fazer encaixar no Estado Islâmico a observação de que os jihadistas são pessoas seculares modernas, com preocupações políticas modernas, vestidas com disfarces religiosos medievais. Na realidade, muito daquilo que o grupo faz parece ilógico, a não ser que seja analisado à luz do seu empenho sincero e cuidadosamente arquitetado em transportar a civilização para um ambiente do século VII e da crença de que será o portador do apocalipse.
Os porta-vozes mais articulados dessa intenção são os próprios responsáveis e apoiantes do Estado Islâmico. Falam com gozo dos “modernos”. Em conversas, insistem que não irão — nem podem — afastar-se dos conceitos de governação integrados no islam pelo profeta Maomé e os seus primeiros seguidores. Falam frequentemente em código e com alusões que parecem estranhas ou antiquadas a não-muçulmanos e que se referem a tradições e textos específicos do islam dos primórdios.
Para dar um exemplo: em setembro, o xeque Abu Muhammad al-Adnani, o principal porta-voz do Estado Islâmico, apelou aos muçulmanos dos países ocidentais, como a França e o Canadá, a encontrarem um infiel e “esmagarem a sua cabeça com uma pedra”, envenenarem-no, atropelarem-no com um carro ou “destruírem as suas colheitas”. Aos ouvidos ocidentais, os castigos de pendor bíblico — o apedrejamento e a destruição de colheitas — justapõem-se estranhamente ao seu incitamento mais modernizado de homicídio com um veículo. (E como se pretendesse mostrar que pode aterrorizar usando apenas o imaginário, Adnani chamou o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, “ancião não circuncidado”.)
Mas Adnani não estava a dizer apenas inutilidades. O seu discurso estava entrelaçado de fundamentos jurídicos e teológicos, e o seu apelo à destruição de colheitas ecoa ordens de Maomé para que se deixasse os poços de água e as colheitas dos inimigos em paz — a não ser que os exércitos do islam se encontrassem numa posição defensiva, e nesse caso os muçulmanos nas terras dos kuffar, ou infiéis, deveriam ser impiedosos e envenenar à vontade.

A realidade é que o Estado Islâmico é islâmico. Muito islâmico. Sim, tem atraído psicopatas e pessoas à procura de aventura, saídos sobretudo das populações marginalizadas do Oriente Médio e da Europa. Mas a religião pregada pelos seus mais fervorosos seguidores vem de uma interpretação coerente do islam.
Praticamente todas as grandes decisões e leis promulgadas pelo Estado Islâmico aderem ao que chama — na sua imprensa e nas suas declarações, nos seus painéis informativos, matrículas, material de escritório e moedas —  “metodologia profética”, o que significa seguir rigorosamente a profecia e o exemplo de Maomé. Os muçulmanos podem rejeitar o Estado Islâmico; quase todos fazem-no. Mas fingir que não é verdadeiramente um grupo religioso e milenar, com uma teologia que tem de ser compreendida para ser combatida, já levou os Estados Unidos a subestimá-lo e a apoiar esquemas tontos para o debelar. Temos de entender a genealogia intelectual do Estado Islâmico se queremos uma resposta que não o fortaleça ainda mais mas que o ajude a auto-imular-se pelo seu próprio excesso de zelo.
I. Devoção

Em novembro, o Estado Islâmico publicou um vídeo tipo info-comercial a ligar as suas origens a Bin Laden. Reconheceu Abu Mussab al-Zarqawi, o líder brutal da Al-Qaeda no Iraque entre 2003 até à sua morte, em 2006, como um progenitor mais direto, seguido sequencialmente por outros líderes guerrilheiros antes de chegar a Baghdadi, o califa. Uma omissão assinalável: o sucessor de Bin Laden, Ayman al-Zawahiri, o cirurgião oftalmológico egípcio que atualmente lidera a Al-Qaeda. Zawahiri não jurou obediência a Baghdadi e é cada vez mais odiado pelos seus colegas jihadistas. Para o seu isolamento, não ajuda a sua falta de carisma; nos vídeos parece sempre estar aborrecido. Mas a separação entre a Al-Qaeda e o Estado Islâmico há muito que vem sendo fabricada e ajuda, pelo menos em parte, a explicar os excessos sanguinários do EI.
estado islamico territorio

O companheiro de isolamento de Zawahiri é um religioso jordaniano chamado Abu Muhammad al-Maqdisi, de 55 anos, que será o arquiteto intelectual da Al-Qaeda e que é o mais importante jihadista desconhecido do público americano. Maqdisi e o EI estão de acordo na maior parte das questões doutrinárias. Ambos se identificam com a ala jihadista de um ramo do sunismo chamado salafismo, do árabe al salaf al salih, os “fundadores devotos”. Ou seja, o próprio Maomé e os seus primeiros seguidores, que os salafistas honram e seguem como modelo de todo e qualquer comportamento, incluindo a guerra, as vestes, a vida familiar, até os cuidados com os dentes.

Maqdisi ensinou Zarqawi, que partiu para a guerra no Iraque com os seus conselhos em mente. Mas, com o tempo, Zarqawi excedeu o fanatismo do seu mestre e foi criticado por ele. Isto devido ao seu gosto por espetáculos sanguinários — e, do ponto de vista doutrinário, o seu ódio aos outros muçulmanos, a ponto de os excomungar e matar. No islam, a prática do takfir, ou excomunhão, é teologicamente perigosa. “Se um homem diz ao seu irmão ‘és um infiel’, então um deles está certo”, diz o profeta. Se o acusador estiver errado, ele próprio cometeu apostasia ao fazer uma falsa acusação. O castigo da apostasia é a morte. Zarqawi alargou sem temor o tipo de comportamentos que tornam os muçulmanos infiéis.

Maqdisi escreveu ao seu antigo discípulo dizendo-lhe que precisava de ser mais cauteloso e “não fazer proclamações cegas de takfir”, ou “proclamar as pessoas como apóstatas devido aos seus pecados”. A diferença entre um apóstata e um pecador pode parecer sutil, mas é um ponto fundamental da divergência entre a Al-Qaeda e o Estado Islâmico.

Negar a santidade do Corão ou as profecias de Maomé é claramente uma apostasia. Mas Zarqawi e os seus companheiros consideram que muitas outras ações podem afastar um muçulmano do islam. Estas incluem, em alguns casos, vender álcool ou drogas, usar roupas ocidentais ou rapar a barba, votar em eleições — mesmo se for num candidato muçulmano — ou ser-se laxista na acusação de apostasia. Ser xiita, como são a maioria dos árabes iraquianos, também encaixa nos critérios, porque o Estado Islâmico encara o xiismo como uma inovação e inovar no Corão é negar a sua perfeição inicial. (O Estado Islâmico defende que algumas práticas comuns dos xiitas, como a adoração em alguns túmulos de imãs e a autoflagelação pública, não têm base no Corão nem no exemplo do profeta.) Isto significa que cerca de 200 milhões de xiitas estão marcados para morrer. Tal como os chefes de Estado de todos os países muçulmanos, que elevaram as leis feitas pelos homens acima da sharia, concorrendo ao cargo ou aprovando leis que não foram feitas por Deus.

Seguindo a doutrina takfiri, o Estado Islâmico compromete-se a purificar o mundo matando um número elevado de pessoas. A falta de objetividade das notícias vindas do seu território torna desconhecida a verdadeira extensão da chacina, mas os comentários feitos nas redes sociais na região sugerem que as execuções individuais acontecem mais ou menos continuamente, e as execuções em massa são separadas por poucas semanas. Os “apóstatas” muçulmanos são as vítimas mais comuns. Isentos das execuções sumárias estão os cristãos que não resistirem ao novo governo. Baghdadi permite-lhes viver, desde que paguem uma taxa especial, conhecida como jizya, e reconheçam a sua subjugação. A autoridade corânica para esta prática não é questionada.
As guerras religiosas na Europa já acabaram há séculos e desde então que os homens deixaram de morrer em larga escala devido a obscuras disputas teológicas. Daí talvez a incredulidade e a negação com que os ocidentais receberam as notícias das práticas e da teologia do Estado Islâmico. Muitos recusam-se a acreditar que este grupo é tão religioso como diz ser, ou tão antiquado e apocalíptico como as suas ações sugerem.
O ceticismo é compreensível. No passado, os ocidentais que acusavam os muçulmanos de seguir cegamente as escrituras antigas eram criticados por acadêmicos — nomeadamente o falecido Edward Said — que afirmavam que chamar antiquados aos muçulmanos era geralmente apenas mais uma maneira de os denegrir. Em vez disso, defendiam estes acadêmicos, olhe-se para as condições em que estas ideologias se formam — má governação, mudanças de costumes, a humilhação de viver em terras que apenas são valorizadas pelo seu petróleo.
Sem o reconhecimento destes fatores, nenhuma explicação para o crescimento do Estado Islâmico ficará completa. Mas se nos focarmos apenas neles e excluirmos a ideologia estamos a incorrer noutro tipo de desvio ocidental: o de que se a ideologia religiosa não quer dizer muito em Washington ou Berlim, seguramente será igualmente irrelevante em Raqqa ou Mossul. Quando um carrasco com uma máscara diz Allahu Akbar enquanto decapita um apóstata, às vezes fá-lo por razões religiosas.
Muitas organizações religiosas muçulmanas não radicais foram ao ponto de dizer que o Estado Islâmico é, na verdade, não islâmico. Claro que é reconfortante saber que a vasta maioria dos muçulmanos não tem qualquer interesse em substituir os filmes de Hollywood por execuções públicas como entretenimento noturno. Mas, como diz o acadêmico de Princeton Bernard Haykel, o grande especialista na teologia do grupo, os muçulmanos que dizem que o Estado Islâmico não é islâmico estão “envergonhados e a ser politicamente corretos, com uma perspectiva cor-de-rosa da sua própria religião”, que negligencia “o que histórica e juridicamente a sua religião exigiu”. Muitas das negações da natureza religiosa do Estado Islâmico, afirma ele, estão enraizadas numa “tradição cristã de um disparatado diálogo inter-religioso”.
Todos os acadêmicos a quem fiz perguntas sobre o EI me mandaram falar com Haykel. Na voz que sai da sua barbicha mefistofélica há um ligeiro sotaque estrangeiro de uma localização indefinida.
Segundo Haykel, as fileiras do Estado Islâmico estão profundamente impregnadas de fervor religioso. Há citações do Corão por toda a parte. “Mesmo os soldados rasos veiculam estas coisas constantemente”, diz Haykel. “Olham para as câmeras e repetem as suas doutrinas básicas como uma fórmula, e fazem-no a toda a hora.” Encara a afirmação de que o Estado Islâmico distorceu os textos do islam como uma coisa ridícula, apenas justificada por uma enorme ignorância. “As pessoas querem absolver o islam”, comenta. “É aquele mantra ‘o islam é uma religião de paz’. Como se houvesse uma coisa como ‘o islam’! É aquilo que os muçulmanos fazem e a forma como interpretam os seus textos.” Esses textos são partilhados por todos os muçulmanos sunitas, não apenas pelo Estado Islâmico. “E estes tipos têm tanta legitimidade como quaisquer outros.”
Todos os muçulmanos reconhecem que as primeiras conquistas de Maomé não foram limpas e que as leis da guerra transmitidas no Corão e nas narrativas sobre a governação do profeta foram calibradas para encaixar numa época turbulenta e violenta. Pelas estimativas de Haykel, os combatentes do EI retrocederam ao islam inicial e estão a reproduzir fielmente as suas regras de guerra. Este comportamento inclui uma série de práticas que os muçulmanos modernos tendencialmente se recusam a admitir que são parte integrante dos textos sagrados. “A escravatura, a crucificação e as decapitações não são uma coisa que uns amalucados [jihadistas] escolheram seletivamente no meio de uma tradição medieval”, comenta. Os combatentes do EI “mergulharam numa tradição medieval e estão a querer trazê-la inteira para a atualidade”.
O Corão refere especificamente que a crucificação é um dos poucos castigos permitidos aos inimigos do islam. A taxa aos cristãos encontra um apoio claro no Surah al-Tawbah, o nono capítulo do Corão, que encoraja os muçulmanos a combater os cristãos e judeus “até que estes paguem a jizya com uma submissão voluntária, e se sintam eles próprios subjugados”. O profeta, que todos os muçulmanos consideram exemplar, impôs estas regras e possuía escravos.
Os líderes do Estado Islâmico consideram ser seu estrito dever copiar Maomé e reavivaram tradições que há centenas de anos estavam adormecidas. “O que é espantoso neles não é só o seu literalismo, mas também a seriedade com que leem estes textos”, diz Haykel. “Há uma seriedade obsessiva e constante que os muçulmanos normalmente não têm.”
Até o aparecimento do Estado Islâmico, nenhum grupo nos últimos séculos tentara uma fidelidade tão radical ao modelo profético para além dos wahhabitas da Arábia do século XVIII. Conquistaram a maior parte do que é agora a Arábia Saudita, e as suas práticas estritas sobreviveram ali numa versão diluída da sharia. Mas Haykel aponta para uma distinção importante entre os grupos: “Os wahhabitas não eram exuberantes na sua violência.” Estavam rodeados de muçulmanos e conquistaram terras que já eram islâmicas. “O ISIS, pelo contrário, está realmente a querer reavivar o período inicial.” Os primeiros muçulmanos estavam rodeados de não muçulmanos, e o Estado Islâmico, devido às suas tendências takfiri, considera-se na mesma situação.

Se a Al-Qaeda quis recuperar a escravatura, nunca o disse. E porque haveria de querer? O silêncio sobre a escravatura reflete provavelmente um pensamento estratégico, com a necessidade de atrair a simpatia popular: quando o EI começou a escravizar pessoas, até alguns dos seus apoiantes se retraíram. Ainda assim, o califado continuou a abraçar a escravatura e a crucificação sem se desculpabilizar. “Vamos conquistar a vossa Roma, quebrar os vossos crucifixos e escravizar as vossas mulheres”, prometeu Adnani, o porta-voz, numa das suas ameaças periódicas ao Ocidente. “Se não o fizermos a tempo, então os nossos filhos e netos o farão e venderão os vossos filhos como escravos no mercado de escravos.”
Em Outubro, a Dabiq, a revista do EI, publicou A Ressuscitação da Escravatura Antes da Hora, um artigo que questionava se os yazidis (membros de uma seita antiga curdófona que foi buscar alguns elementos ao islam e que foi atacada por forças do EI no Norte do Iraque) são muçulmanos seculares, e portanto marcados para a morte, ou meros pagãos e por isso prontos para serem escravizados. Um grupo de estudo de acadêmicos do EI reuniu-se, sob ordens do governo, para resolver a questão. Se são pagãos, escreveu o autor anônimo do artigo, “as mulheres e crianças yazidi, [devem ser] divididas de acordo com a sharia entre os que combatem pelo Estado Islâmico que participaram nas operações de Sinjar [no Norte do Iraque]… Escravizar as famílias dos kuffar [infiéis] e tomar as suas mulheres como concubinas é um dos aspectos determinados pela sharia e, se alguém o negar ou gracejar, estará a negar ou gracejar dos versículos do Corão e das palavras do profeta… e por isso a ser apóstata do islão”.

II. Território

Calcula-se que dezenas de milhares de muçulmanos estrangeiros terão emigrado para o Estado Islâmico. Houve recrutamentos a partir de França, Reino Unido, Bélgica, Alemanha, Holanda, Austrália, Indonésia, Estados Unidos e outros locais importantes. Muitos foram para lutar e muitos tencionam morrer.
Peter R. Neumann, professor no King’s College em Londres, disse-me que as comunicações online têm sido essenciais para espalhar a propaganda e garantir que os recém-chegados sabem em que acreditar. O recrutamento feito pela Internet também tem alargado a demografia da comunidade de jihadistas, permitindo que muçulmanas conservadoras — fisicamente isoladas nas suas casas — cheguem a recrutas, se radicalizem e arranjem transporte para a Síria. Apelando a ambos os gêneros, o EI espera construir uma sociedade completa.
ESTADO ISLAMICO

Em novembro, fui à Austrália para me encontrar com Musa Cerantonio, um homem de 30 anos que Neumann e outros investigadores identificaram como uma das mais importantes “autoridades espirituais emergentes” na condução de estrangeiros ao Estado Islâmico. Durante três anos era tele-envagelista na Iqraa TV do Cairo, mas saiu depois de a estação ter objetado aos seus apelos frequentes à criação de um califado. Agora prega no Facebook e no Twitter.
Cerantonio — um homem grande e amigável com uma atitude livresca — diz que empalidece perante os vídeos das decapitações. Odeia ver a violência, ainda que os apoiantes do Estado Islâmico sejam obrigados a apoiá-la. (E, o que é controverso entre jihadistas, repudia os bombardeamentos suicidas, na medida em que Deus proíbe o suicídio; difere do EI também em mais alguns pontos.) Tem o tipo de barba que usam alguns fãs mais crescidos do Senhor dos Anéis e a sua obsessão com o apocaliptismo islâmico soa familiar. Parece estar a viver um drama que visto de fora, sob a perspectiva de um estrangeiro, se assemelha a um romance de fantasia medieval, só que com sangue a sério.

Em junho passado, Cerantonio e a mulher tentaram emigrar — não disse para onde (“é ilegal ir para a Síria”, afirmou cautelosamente) — mas foram apanhados no caminho, nas Filipinas, e deportados para a Austrália, que criminalizou as tentativas de aderir ou viajar para o Estado Islâmico e por isso lhe confiscou o passaporte. Está preso em Melbourne, onde é conhecido das autoridades locais. Se for apanhado a facilitar a movimentação de indivíduos para o EI, será preso. Mas para já continua em liberdade — um ideólogo que tecnicamente não está filiado mas que ainda assim, para os outros jihadistas, fala com autoridade sobre a doutrina do Estado Islâmico.
Encontramo-nos para almoçar em Footscray, um subúrbio densamente povoado e multicultural de Melbourne, onde está a sede do Lonely Planet, a editora de guias de viagens. Cerantonio cresceu ali numa família meio irlandesa, meio italiana, da Calábria. Numa rua normal encontramos restaurantes africanos, lojas vietnamitas e jovens árabes a andar de uniforme salafista: barba comprida, camisa longa e calças pelo meio da canela.
Cerantonio explica a alegria que sentiu quando Bahgdadi foi declarado califa, a 29 de Junho — e a súbita atração magnética que a Mesopotâmia começou a exercer sobre ele e os seus amigos. “Estava num hotel [nas Filipinas] e vi a declaração pela televisão”, conta. “E fiquei simplesmente pasmado, do tipo: ‘O que é que estou a fazer fechado neste maldito quarto?’”
O último califado foi o Império Otomano, que conheceu o seu apogeu no século XVI e que depois entrou num longo declínio, até o fundador da República da Turquia, Mustafa Kemal Atatürk, acabar com ele de vez, em 1924. Mas Cerantonio, como muitos apoiantes do Estado Islâmico, não reconhece legitimidade a esse califado, porque não instaurou totalmente e lei islâmica, que exige apedrejamentos e escravatura e amputações, e porque os califas não descendiam diretamente da tribo do profeta, a Quraysh.
Baghdadi falou detalhadamente da importância do califado no seu sermão em Mossul. Disse que para reavivar a instituição do califado — que há mil anos que não existia, exceto de nome — era uma obrigação. Ele e os seus fiéis foram “céleres a declarar o califado e a colocar um imã” na sua chefia, diz. “Isto é um dever dos muçulmanos — um dever que durante séculos se perdeu… Os muçulmanos pecam ao perdê-lo e devem sempre procurar restabelecê-lo.” Como Bin Laden antes dele, Baghdadi fala com floreados, com referências frequentes às escrituras e com controle sobre a retórica clássica. Ao contrário de Bin Laden, e desses falsos califas do Império Otomano, ele é Quraysh.
O califado, diz-me Cerantonio, não é apenas uma entidade política, mas também um veículo de salvação. A propaganda do EI noticia regularmente as declarações de baya’a (fidelidade) vindas de grupos jihadistas de todo o mundo muçulmano. Cerantonio cita um ditado do profeta: morrer sem prestar fidelidade é morrer jahil (ignorante) e por isso morrer “da morte da descrença”. Os muçulmanos (e também, neste caso, os cristãos) imaginam negociações entre Deus e as almas dos que morrem sem conhecer a verdadeira religião — não são obviamente salvas nem definitivamente condenadas. Da mesma forma, diz Cerantonio, um muçulmano que reconhece um Deus omnipotente e que reza, mas que morre sem jurar fidelidade a um califa legítimo e descurando as obrigações desse juramento, não tem uma vida totalmente islâmica. Refiro que isto significa que a grande maioria dos muçulmanos ao longo da história, e todos os que morreram entre 1924 e 2014, tiveram uma morte de descrença. Cerantonio assentiu com firmeza. “Vou ao ponto de dizer que o islam foi restabelecido” pelo califado.

Pergunto-lhe sobre o seu próprio baya’a e ele rapidamente me corrige: “Eu não disse que iria jurar fidelidade.” Segundo a lei australiana, recorda-me ele, é ilegal prestar baya’a ao Estado Islâmico. “Mas concordo que Baghdadi preenche os critérios”, continua. “Eu vou pestanejar para si, e você depreende o que quiser.”

Ser califa implica cumprir uma série de condições impostas pela lei islâmica — ser adulto de ascendência quraysh; ter legitimidade moral e integridade física e mental; e ter amr, ou autoridade. Este último critério, diz Cerantonio, é o mais difícil de cumprir e requer que o califa tenha território no qual possa exercer a lei islâmica. O EI de Baghdadi conseguiu isso muito antes de 29 de Junho, diz Cerantonio, e assim que o fez, um convertido ocidental que faz parte da hierarquia — descreve-o como “uma espécie de líder” — começou a murmurar sobre a obrigação religiosa de declarar um califado. Ele e outros falaram discretamente para os que estavam no poder, dizendo-lhes que adiar isso por mais tempo seria pecaminoso.

Cerantonio diz que apareceu uma facção preparada para combater o grupo de Baghdadi caso este adiasse ainda mais. Prepararam uma carta para vários membros poderosos do ISIS dando conta do seu desagrado pelo falhanço de nomear um califa, mas foram apaziguados por Adnani, o porta-voz, que partilhou com eles um segredo: que o califado já tinha sido declarado, muito antes do anúncio público. Eles tinham o seu califa legítimo e nessa altura só havia uma opção: “Se ele é legítimo, é preciso dar-lhe o baya’a”, afirma Cerantonio.

Depois do sermão de julho de Baghdadi, uma série de jihadistas começaram a chegar diariamente à Síria com uma motivação renovada. Jürgen Todenhöfer, um autor alemão e antigo político que visitou o Estado Islâmico em Dezembro, deu conta da chegada de cem combatentes num centro de recrutamento na fronteira turca em apenas dois dias. O seu relato, entre outros, sugere uma afluência constante de estrangeiros, prontos para desistir de tudo na sua terra por um vislumbre do paraíso no pior sítio do mundo.
Em Londres, uma semana antes do meu almoço com Cerantonio, encontrei-me com três antigos membros de um grupo islamista chamado Al Muhajiroun (Os Emigrantes): Anjem Choudary, Abu Baraa e Abdul Muhid. Todos manifestaram o seu desejo de emigrar para o Estado Islâmico, tal como já tinham feito muitos dos seus colegas, mas as autoridades confiscaram os seus passaportes. Como Cerantonio, encaram o califado como o único governo legítimo da Terra, embora nenhum tenha confessado ter já jurado obediência. A principal razão pela qual quiseram encontrar-se comigo foi para me explicar aquilo que o EI defende e como as suas políticas refletem a lei de Deus.

Choudary, de 48 anos, é o antigo líder do grupo. Aparece frequentemente nas notícias por cabo, porque é uma das poucas pessoas que os produtores podem agendar para uma entrevista e que defenderá o EI a vociferar até que o microfone seja cortado. No Reino Unido, tem fama de ser um opinativo desagradável, mas ele e os seus discípulos acreditam sinceramente no Estado Islâmico e, em assuntos de doutrina, falam com a mesma voz. Choudary e os outros destacam-se nos feeds dos residentes do EI no Twitter, e Abu Baraa mantém um canal no YouTube para responder a perguntas sobre a sharia.

Desde setembro que as autoridades têm investigado os três homens suspeitos de apoiar o terrorismo. Por causa desta investigação, tiveram de se encontrar comigo em separado: a comunicação entre eles violaria os termos da sua liberdade condicional. Mas falar com eles foi como falar com uma única pessoa, com máscaras diferentes. Choudary foi ter a uma loja de doces no subúrbio de Ilford, no Leste de Londres. Estava bem vestido, com uma túnica azul que lhe chegava praticamente aos tornozelos, e bebericava um Red Bull enquanto falava.
Antes do califado, “talvez 85% da sharia estava ausente das nossas vidas”, diz-me. “Estas leis estavam suspensas até termos o khilafa” — um califado — “e agora temos um.” Sem um califado, por exemplo, vigilantes individuais não são obrigados a amputar as mãos dos ladrões que apanham em flagrante. Mas criando-o, esta lei, tal como um gigantesco corpo de outra jurisprudência, despertará subitamente. Em teoria, todos os muçulmanos são obrigados a emigrar para o país onde o califa está a aplicar estas leis. Um dos estudantes premiados de Choudary, um convertido do hinduísmo chamado Abu Rumaysah, fugiu da polícia e levou a sua família, de cinco pessoas, de Londres para a Síria, em novembro. No dia em que me encontrei com Choudary, Abu Rumaysah tinha posto no Twitter uma fotografia de si próprio com uma kalashnikov num braço e o seu filho recém-nascido no outro. Hashtag: #GenerationKhilafah.

O califa é obrigado a implementar a sharia. Qualquer desvio levará aqueles que lhe juraram fidelidade a informá-lo em privado do seu erro e, em casos extremos, caso ele persista, a excomungá-lo e substituí-lo. (“Fui contagiado com esta grande questão, contagiado com esta responsabilidade e é uma responsabilidade pesada”, disse Baghdadi no seu sermão.) Em troca, o califa exige obediência — e aqueles que insistem em apoiar governos não muçulmanos, depois de serem avisados e educados sobre o seu pecado, são considerados apóstatas.

Choudary afirma que a sharia tem sido mal compreendida por ser aplicada apenas parcialmente por regimes como a Arábia Saudita, apesar de decapitar assassinos e cortar as mãos a ladrões. “O problema”, explica, “é que quando lugares como a Arábia Saudita apenas aplicam o código penal, e não providenciam a justiça econômica e social da sharia — o pacote completo —, estão apenas a gerar ódio contra a sharia.” O pacote completo, diz, incluiria habitação gratuita, alimentação e roupas para todos, sendo que qualquer pessoa que quiser enriquecer através do trabalho pode, evidentemente, fazê-lo.

Abdul Muhdi, de 32 anos, segue a mesma linha. Chega ao restaurante local onde marcamos encontro vestido como um mujahedin (combatente) puro: barba desalinhada, boné afegão, uma carteira pendurada na roupa presa ao que parece ser um coldre. Quando nos sentamos, mostra-se desejoso de falar sobre o apoio social. O Estado Islâmico pode ter castigos de estilo medieval para crimes morais (chicotadas por embriaguez ou fornicação, apedrejamento para adultério), mas o seu programa de assistência social é, no mínimo em alguns aspectos, progressista. A assistência social é gratuita, declara. (“Não é também gratuita no Reino Unido?”, pergunto-lhe. “Na realidade não”, responde. “Alguns aspectos não estão cobertos, como a visão.”) Esta assistência social não é uma política escolhida pelo EI, adianta. É uma política obrigatória inerente à lei de Deus.

III. O Apocalipse

Todos os muçulmanos reconhecem que Deus é o único que sabe o futuro. Mas também concordam que nos ofereceu um vislumbre, no Corão e nas palavras do profeta. O Estado Islâmico difere de praticamente todas as outras correntes atuais do movimento jihadista ao acreditar que o futuro está traçado nas escrituras divinas e é a sua personagem central. É aqui que o EI se distingue claramente dos seus antecessores, e é mais claro quanto à natureza religiosa da sua missão.
Em traços gerais, a Al-Qaeda comporta-se como um movimento político clandestino, tendo sempre em vista objetivos globais — a expulsão dos não muçulmanos da península Arábica, a abolição do Estado de Israel, o fim ao apoio às ditaduras nas terras muçulmanas. O EI tem a sua quota-parte de preocupações mundanas (incluindo, nas terras onde governa, recolher o lixo e manter a água a correr), mas o Fim dos Tempos é o leitmotiv da sua propaganda. Bin Laden raramente mencionou o apocalipse e quando o fez deu a entender que quando chegasse esse momento de castigo divino ele estaria morto há muito tempo. “Bin Laden e Zawahiri são de famílias sunitas da elite que olhavam com sobranceria para este tipo de especulação e achavam que era uma coisa do povo”, diz Will McCants do Brookings Institution e que está a escrever um livro sobre o pensamento apocalíptico do EI.

Durante os últimos anos da ocupação americana do Iraque, os fundadores do EI viam, pelo contrário, sinais do fim dos tempos por toda a parte. Anteciparam que, no prazo de um ano, chegaria o Mahdi, uma figura messiânica que levaria os muçulmanos à vitória antes do fim do mundo. McCants diz que uma responsável islamista importante foi ter com Bin Laden em 2008 para o avisar de que o grupo estava a ser liderado por homens que “falavam a toda a hora do Mahdi e que tomavam decisões estratégicas” baseadas na data em que eles pensavam que o Mahdi iria chegar. “A Al-Qaeda teve de escrever-lhes a dizer: ‘Parem com isso’.”
Para alguns verdadeiros crentes — o tipo de crentes que anseia por batalhas épicas do bem contra o mal —, as visões de banhos de sangue do apocalipse preenchem necessidades psicológicas profundas. De todos os apoiantes do EI que conheci, Cerantonio, o australiano, era aquele que mostrava mais interesse no apocalipse e de como seriam os dias que restavam ao EI — e ao mundo. Uma parte dessa previsão é nova para ele e ainda não tem o estatuto de doutrina. Mas outra parte baseia-se em fontes sunitas mainstream e aparecem em toda a propaganda do EI. Esta inclui a crença de que haverá apenas 12 califas legítimos e que Baghdadi é o oitavo; que os exércitos de Roma se juntarão para combater contra os exércitos do islam no Norte da Síria; e que o último confronto do islam com um anti-Messias será em Jerusalém depois de uma nova conquista islâmica.

O EI atribuiu uma grande importância à cidade síria de Dabiq, perto de Alepo. Deu o seu nome à sua revista de propaganda e celebrou intensamente quando (a grande custo) conquistou os planaltos sem valor estratégico de Dabiq. O profeta terá dito que será aqui que os exércitos de Roma irão acampar. Os exércitos do islam encontrar-se-ão com eles, e Dabiq será a Waterloo de Roma, ou a sua Antietam [a batalha mais sangrenta da guerra civil americana].
“Dabiq é basicamente uma zona de cultivo agrícola”, twittou recentemente um apoiante do EI. “Conseguimos imaginar grandes batalhas ali.” A propaganda do EI fala com ansiedade deste acontecimento e dá a entender que ele chegará em breve. A revista cita Zarqawi: “A fagulha foi acesa aqui no Iraque e a sua chama continuará a intensificar-se… até incendiar os exércitos dos cruzados em Dabiq.” Um vídeo recente mostra imagens de filmes de guerra de Hollywood passados na época medieval — talvez porque muitas das profecias referem que os exércitos estarão montados a cavalo e a carregar armas antigas.
Agora que tomou Dabiq, o EI espera a chegada do exército inimigo ali, cuja derrota vai iniciar a contagem decrescente para o apocalipse. Os media ocidentais deixam escapar frequentemente as referências a Dabiq feitas nos vídeos do EI e focam-se em vez disso nas cenas vívidas das decapitações. “Aqui estamos nós a enterrar o primeiro cruzado americano em Dabiq, esperando ansiosamente que chegue o resto dos vossos exércitos”, dizia um carrasco de máscara num vídeo publicado em novembro, onde se mostrava a cabeça decapitada de Peter (Abdul Rahman) Kassig, o assistente humanitário que estava sequestrado há mais de um ano. Durante os confrontos no Iraque em dezembro, depois de mujahedin terem dito (talvez incorretamente) que viram soldados americanos em combate, as contas de Twitter do EI irromperam em regozijo, como anfitriões que esperam com excesso de entusiasmo os convidados para uma festa.

A narrativa profética que prevê a batalha de Dabiq refere-se ao inimigo como Roma. Quem é “Roma”, agora que o Papa não tem exército, é um assunto em debate. Cerantonio sustenta que Roma significa o Império Romano do Oriente, que tinha a sua capital naquela que agora é Istambul. Devemos pensar em Roma como a República da Turquia — a mesma república que acabou com o último califado, há 90 anos. Outras fontes do EI sugerem que Roma pode significar qualquer exército de infiéis e que os americanos encaixam perfeitamente nessa designação.
Depois desta batalha de Dabiq, diz Cerantonio, o califado irá expandir-se e tomar Istambul. Há quem acredite que depois cobrirá a Terra inteira, mas Cerantonio sugere que esta vaga possa nunca passar para além do Bósforo. Um anti-Messias, conhecido na literatura pós-apocalíptica como Dajjal, virá da região de Khorasan, no Leste do Irã, e matará muitos combatentes do califado, até ficarem apenas cinco mil, encurralados em Jerusalém. E no momento em que Dajjal estiver prestes a acabar com eles, Jesus — o segundo profeta mais venerado no islam — voltará à Terra, expulsará Dajjal e conduzirá os muçulmanos à vitória.
estado islâmico - jovens

“Só Deus sabe” se os exércitos do EI serão avisados, diz Cerantonio. Mas ele tem esperança que sim. “O profeta disse que um dos sinais da chegada iminente do Final dos Tempos é que as pessoas deixam de falar do Final dos Tempos durante um tempo”, diz. “Se for agora às mesquitas, verá que os pregadores estão calados sobre este assunto.” Sob este prisma, os reveses do EI não têm qualquer significado, uma vez que de qualquer forma Deus tinha contemplado a sua quase destruição. O Estado islâmico tem os seus melhores e piores dias pela frente.
IV. O combate

O purismo ideológico do Estado Islâmico tem uma virtude: permite-nos prever algumas das suas ações. Osama bin Laden raramente foi previsível. Terminou a sua primeira entrevista televisiva de forma encriptada. Peter Arnett, da CNN, perguntou-lhe: “Quais são os seus planos para o futuro?” e Bin Laden respondeu: “Irá vê-los e ouvir falar deles nos media, se Deus quiser.” Pelo contrário, o EI fala abertamente dos seus planos — não de todos, mas o suficiente para que, se ouvirmos com atenção, se possa deduzir como projeta governar e expandir-se.

Em Londres, Choudary e os seus discípulos fizeram descrições detalhadas de como o EI deve conduzir a sua política externa, agora que é um califado. Já assumiu aquilo a que a lei islâmica chama “jihad ofensiva”, a expansão forçada para países governados por não muçulmanos. “Estamos só a defender-nos”, afirma Choudary; sem um califado, a jihad ofensiva é apenas um conceito inaplicável. Mas fazer a guerra para expandir o califado é um dever fundamental do califa.

Choudary refere que as leis da guerra segundo as quais o EI se rege são de misericórdia e não de brutalidade. Diz que o Estado tem a obrigação de aterrorizar os seus inimigos — uma ordem sagrada para lhes pregar sustos de morte com decapitações e crucificações e escravatura de mulheres e crianças — porque fazê-lo acelera a vitória e evita o conflito prolongado.
O seu colega Abu Baraa explica que a lei islâmica apenas permite tratados de paz temporários, não mais duradouros do que uma década. Da mesma forma, aceitar uma fronteira é um anátema, tal como disse o profeta e é ecoado pelos vídeos de propaganda. Se o califa consente um tratado de paz prolongado ou uma fronteira permanente, estará a errar. Os tratados de paz temporários são renováveis, mas poderão não ser aplicados a todos os inimigos de uma só vez: o califa tem de lançar a jihad pelo menos uma vez por ano. Não pode descansar, ou estará a pecar.
Uma das comparações com o Estado Islâmico são os khmer vermelhos, que mataram cerca de um terço da população do Cambodja. Mas o Khmer Vermelho ocupou o assento do Cambodja na ONU. “Isso não é permitido”, comenta Abu Baraa. “Enviar um embaixador para a ONU é reconhecer uma outra autoridade que não Deus.” Este tipo de diplomacia é shirk, ou politeísmo, argumenta, e seria justificação para declarar o califa herege e substituí-lo. Mesmo o apoio ao califado por via democrática, através de eleições, por exemplo, seria shirk.

É difícil dizer quão prejudicado o EI será pelo seu radicalismo. O sistema internacional moderno, nascido em 1648 do tratado de paz de Vestefália, assenta na vontade de cada Estado em reconhecer fronteiras, por muito que estejam relutantes. Para o EI, esse reconhecimento é ideologicamente suicida. Outros grupos islâmicos, como a Irmandade Muçulmana e o Hamas, sucumbiram aos princípios da democracia e à possibilidade de um convite para a comunidade das nações, completado com um assento na ONU. A negociação e a cedência também funcionaram, algumas vezes, com os taliban. (Sob o regime taliban, o Afeganistão trocou embaixadores com a Arábia Saudita, Paquistão e os Emirados Árabes Unidos, um gesto que invalidou a autoridade dos taliban aos olhos do Estado Islâmico.) Para o ISIS, estas não são opções, mas atos de apostasia.

Os Estados Unidos e os seus aliados reagiram ao Estado Islâmico com atraso e aparente estupefacção. As ambições e a estratégia eram evidentes nos primeiros discursos e nas pistas deixadas nas redes sociais já desde 2011, quando era apenas um dos muitos grupos terroristas na Síria e no Iraque e ainda não tinha cometido atrocidades em massa. Adnani, o porta-voz, disse então aos seguidores do grupo que a ambição era “restaurar o califado islâmico” e evocou o apocalipse, afirmando: “Só restam alguns dias.” Baghdadi já se tinha apresentado como “comandante dos fiéis”, um título normalmente reservado aos califas, em 2011. Em abril de 2013, Adnani declarou que o movimento estava “pronto para redesenhar o mundo segundo a metodologia profética do califado”. Em agosto de 2013, afirmou: “O nosso objetivo é criar um estado islâmico que não reconheça fronteiras, segundo a metodologia profética.” Nessa altura, o grupo tinha já tomado Raqqa, uma capital provincial da Síria de cerca de 500 mil pessoas, e estava a atrair números significativos de combatentes estrangeiros que tinham ouvido a sua mensagem.
Se tivéssemos identificado mais cedo as intenções do EI e percebido que o vazio no Iraque e na Síria lhe daria amplo espaço para as concretizar, teríamos no mínimo forçado o Iraque a fortalecer a sua fronteira com a Síria e feito acordos preventivamente com os seus líderes sunitas. Isso teria no mínimo evitado o efeito da propaganda eletrizante criado pela declaração de um califado logo a seguir à conquista da segunda cidade iraquiana. Mas, há pouco mais de um ano, Obama declarou à revista New Yorker que considerava o ISIS o parceiro mais fraco da Al-Qaeda. “Não basta uma equipe juvenil vestir o equipamento dos Lakers para se tornar um Kobe Bryant”, disse o Presidente.

A nossa incapacidade de perceber a diferença entre o EI e a Al-Qaeda, e as diferenças essenciais entre os dois, levou a decisões perigosas. No outono passado, para dar só um exemplo, o Governo americano aprovou um plano desesperado para salvar a vida a Peter Kassig. O plano facilitava — e até exigia — a interação entre algumas das figuras fundadoras do EI e da Al-Qaeda, e dificilmente poderia ter sido mais debilmente improvisado.
Nele sugeria-se a aproximação de Abu Muhammad al-Maqdisi, mentor de Zarqawi e um nobre da Al-Qaeda, a Turki al-Binali, o principal ideólogo do EI e antigo aluno de Maqdisi, apesar de estarem afastados devido às críticas de Maqdisi ao Estado Islâmico. Maqdisi já tinha apelado ao EI por clemência para Alan Henning, o britânico que entrou na Síria para prestar ajuda a crianças. Em dezembro, o The Guardian noticiou que o Governo americano, através de um intermediário, pedira a Maqdisi que intercedesse por Kassig junto do EI.

Maqdisi vivia então livremente na Jordânia, mas tinha ficado proibido de comunicar com terroristas no estrangeiro e estava a ser vigiado de perto. Depois de a Jordânia ter dado autorização aos EUA para apresentar Maqdisi a Binali, Maqdisi comprou um telefone com dinheiro americano e foi autorizado a comunicar com o seu antigo aluno durante alguns dias, até o Governo jordaniano acabar com as conversas e as usar como pretexto para o prender. Uns dias depois, a cabeça decapitada de Kassig aparecia num vídeo da Dabiq.
Maqdisi é frequentemente gozado no Twitter pelos fãs do EI, e a Al-Qaeda é também mal vista por se recusar a reconhecer o califado. Cole Bunzel, um acadêmico que estuda a ideologia do Estado Islâmico, leu a opinião de Maqdisi sobre a situação de Henning e achou que ela iria acelerar a sua morte, tal como a de outros reféns. “Se eu estivesse preso pelo Estado Islâmico e Maqdisi dissesse que eu não deveria ser morto, diria adeus à vida”, diz-me Bunzel.
A morte de Kassig foi trágica, mas o êxito do plano teria sido uma tragédia ainda maior. Uma reconciliação entre Maqdisi e Binali teria começado a sarar a principal discórdia entre as duas maiores organizações jihadistas do mundo. É possível que o governo apenas quisesse atrair Binali para obter informação secreta ou para ser assassinado. (Várias tentativas para que o FBI comentasse falharam.) Ainda assim, a decisão de juntar os dois maiores antagonistas dos Estados Unidos revela uma surpreendente falta de senso.
Envergonhados pela nossa indiferença inicial, estamos agora a conhecer o Estado Islâmico através dos combates no Curdistão e no Iraque, com ataques aéreos regulares. Essa estratégia não desalojou o Estado Islâmico de nenhum dos seus territórios principais, apesar de ter evitado ataques diretos a Bagdad e Erbil massacrando xiitas e curdos.
Alguns observadores pediram uma resposta mais forte, incluindo algumas das vozes previsíveis da direita intervencionista (Max Boot, Frederick Kagan), que apelaram ao envio de dezenas de milhares de soldados americanos. Não se deve afastar demasiado depressa este cenário: uma organização genocida está à porta de casa das suas vítimas e diariamente comete atrocidades no território que já controla.
Uma das formas de quebrar o feitiço do EI nos seus seguidores seria superá-lo militarmente e ocupar as partes da Síria e do Iraque que estão agora sob domínio do califado. A Al-Qaeda não pode ser erradicada porque consegue sobreviver, como uma barata, ficando na clandestinidade. O Estado Islâmico não. Se perder o poder nos seus territórios na Síria e no Iraque, deixará de ser um califado. Os califados não podem existir como movimentos clandestinos, porque necessitam da autoridade territorial: acabe-se com o território que comandam e todos os votos de obediência deixam de estar em vigor. Claro que alguns freelancers poderão continuar a apelar ao combate contra o Ocidente e a decapitar inimigos. Mas o valor propagandístico do califado desapareceria e com ele o alegado dever religioso de imigrar para o servir. Se os EUA invadissem, a obsessão do EI pela batalha de Dabiq faz depreender que seria necessário enviar vastos recursos para lá, como se fosse uma batalha convencional. Se o Estado investisse fortemente em Dabiq e depois a perdesse, poderia nunca mais recuperar.

Mas os riscos de uma escalada são enormes. O maior defensor de uma invasão americana é o próprio Estado Islâmico. Os vídeos provocatórios, nos quais um carrasco de máscara negra se dirige ao Presidente Obama pelo nome, destinam-se claramente a arrastar os Estados Unidos para a guerra. Uma invasão seria uma enorme vitória da propaganda para os jihadistas em todo o mundo: independentemente de terem dado a baya’a ao califa, todos acreditam que os EUA querem lançar uma cruzada moderna e matar os muçulmanos. Mais uma invasão e ocupação confirmariam essas suspeitas e aumentariam o recrutamento. Se acrescentarmos a incompetência dos esforços anteriores enquanto ocupantes, temos razões para estar relutantes. O crescimento do ISIS, afinal, só se verificou porque a ocupação anterior abriu espaço para Zarqawi e os seus fiéis. Quem sabe quais seriam as consequências de outro trabalho mal feito?

Tendo em conta tudo o que sabemos sobre o Estado Islâmico, a melhor das opções militares será continuar a sangria lenta e a guerra por procuração. Nem os curdos nem os xiitas jamais se subjugarão nem controlarão o centro sunita da Síria e do Iraque — são odiados ali e também não têm qualquer desejo de uma aventura dessas. Mas podem impedir o Estado Islâmico de cumprir o seu desígnio de expansão. E por cada mês que falha em expandir-se fica menos parecido com o estado conquistador do profeta Maomé. Será mais um estado do Oriente Médio que não consegue trazer prosperidade ao seu povo.
O custo humanitário da existência do EI é elevado. Mas a sua ameaça para os EUA é menor do que pode sugerir o seu permanente confronto com a Al-Qaeda. O ponto central da Al-Qaeda é raro entre os grupos jihadistas por se focar no “inimigo distante” (o Ocidente); a maior parte das preocupações da maioria dos jihadistas está mais perto de casa. Isso é especialmente verdade no caso do Estado Islâmico, precisamente por causa da sua ideologia. Vê inimigos a toda a volta e, apesar de a sua liderança não querer bem aos EUA, a aplicação da sharia no califado e a expansão para os territórios contíguos são prioritários. Baghdadi afirmou-o diretamente: em novembro, declarou aos seus agentes sauditas que “lidassem com os rafidah [xiitas] primeiro… com os al-sulh depois [apoiantes sunitas da monarquia saudita]… antes dos cruzados e das suas bases”.

Os combatentes estrangeiros (e as suas mulheres e crianças) têm viajado para o califado com bilhetes só de ida: querem viver sob o domínio da sharia e muitos desejam o martírio. Recorde-se que a doutrina exige que os crentes vivam no califado se lhes for possível. Um dos vídeos menos sangrentos do ISIS mostra um grupo de jihadistas a queimar os seus passaportes franceses, britânicos e australianos. Isto seria um gesto excêntrico para alguém que pretendesse regressar para se fazer explodir no Louvre ou tornar refém mais uma loja de chocolates em Sydney.

Alguns “lobos solitários” que apoiam o EI atacaram alvos ocidentais e mais ataques surgirão. Mas a maioria são amadores frustrados, incapazes de emigrar para o califado por terem os passaportes confiscados ou outros problemas. Ainda que o EI felicite estes ataques, e fá-lo na sua propaganda, ainda não planeou nem financiou nenhum. (O ataque ao Charlie Hebdo em Paris, em janeiro, foi sobretudo uma operação da Al-Qaeda.) Durante a sua visita a Mossul, em dezembro, Jürgen Todenhöfer entrevistou um jihadista alemão e perguntou-lhe se algum dos seus camaradas tinha regressado à Europa para lançar ataques. O jihadista falou dos retornados não como soldados mas como desistentes. “O fato é que os que regressam do Estado Islâmico devem arrepender-se do seu regresso”, afirmou. “Espero que reavaliem a sua religião.”

Se for adequadamente contido, o EI fará a sua própria implosão. Nenhum país é seu aliado e a sua ideologia garante que assim continuará. A terra que controla, apesar de poder expandir-se, é praticamente desabitada e pobre. À medida que estagnar ou que for encolhendo, o argumento de que pratica a vontade de Deus e é o agente do apocalipse perderá força e poucos crentes chegarão. E quanto mais notícias de pobreza saírem para fora, mais os movimentos islamistas radicais nos outros sítios ficarão desacreditados. Ninguém tentou tanto aplicar a sharia de forma tão estrita através da violência, e é isto que acontece.

estado islâmico

Mesmo assim, é pouco provável que a morte do Estado Islâmico seja rápida e as coisas podem ainda correr muito mal: se o EI obtiver a obediência da Al-Qaeda — aumentando de uma assentada a sua base —, poderá tornar-se a pior força a que já assistimos. O fosso entre o EI e a Al-Qaeda tem crescido nos últimos meses; a edição de dezembro da Dabiq trazia um relato extenso de um desertor da Al-Qaeda que descrevia o seu grupo como corrupto e ineficaz e Zawahiri como um líder distante e desadequado. Mas devemos estar atentos a qualquer aproximação.

Sem uma catástrofe como esta, ou a ameaça de o EI tomar Erbil, uma grande invasão terrestre certamente pioraria a situação.
V. Dissuasão

Seria fácil, quase uma desculpa, dizer que o problema do Estado Islâmico é “um problema com o islam”. A religião permite muitas interpretações e os apoiantes do EI estão moralmente agarrados à que escolheram. E, contudo, denunciar pura e simplesmente o EI como anti-islâmico pode ser contraproducente, sobretudo se quem ouve a mensagem conhece os textos sagrados e vê neles justificadas muitas das práticas do califado.
Os muçulmanos podem dizer que, agora, a escravatura não é legítima e que a crucificação é reprovável na atual conjuntura histórica. Isto é, de fato, o que muitos dizem. Mas não podem condenar liminarmente a escravatura ou a crucificação sem contradizer o Corão e o exemplo do profeta. “O único terreno seguro para os que se opõem [ao EI] é clamarem que alguns textos e ensinamentos do islam perderam a validade”, diz Bernard Haykel. E isso seria abjuração.
A ideologia proposta pelo Estado Islâmico exerce uma forte influência junto de uma certa camada da população. Perante ela, as hipocrisias e inconsistências da vida pura e simplesmente desaparecem. Musa Cerantonio e os salafistas que conheci em Londres são assertivos: nenhuma das questões que lhes coloquei os deixou a gaguejar. Foram muito eloquentes no seu sermão e, se aceitarmos as suas premissas, convincentes até. Dizer que são anti-islâmicos parece-me que é estar a desafiá-los para uma discussão em que saem a ganhar. Se eles fossem somente uns maníacos fala-barato, podia vaticinar que o seu movimento implodia à medida que os seus psicopatas se fazem detonar e, um a um, caem redondos no chão.
Mas estes homens falavam com uma precisão acadêmica que só me fazia lembrar que estava perante licenciados de peso. Até gostei de estar na companhia deles, e isso deixou-me com tanto medo como tudo o resto.
Os não muçulmanos não podem dar lições aos muçulmanos sobre como devem praticar a religião. Mas, entre os muçulmanos, este não é um debate de agora. “Temos de ter padrões”, disse-me Anjem Choudary. “Qualquer um pode dizer-se muçulmano mas se acredita na homossexualidade ou em beber álcool, então não é muçulmano. Também não existem vegetarianos não praticantes.”
Há, contudo, uma outra variante do islam que oferece uma alternativa de linha dura ao EI — igualmente intransigente, mas com resultados opostos. É uma alternativa que já provou ter o seu encanto para os muitos muçulmanos amaldiçoados, ou abençoados, na ânsia psicológica de assistirem a qualquer mudança de vírgula na implementação dos textos sagrados tal como o eram nos primeiros tempos do islamismo.
Os que apoiam o EI sabem bem como deve reagir aos muçulmanos que ignoram partes do Corão: com o takfir [excomunhão] e ridicularizando-os. Mas sabem também que outros muçulmanos leem tão assiduamente o Corão como eles próprios e representam uma séria ameaça à sua ideologia.

Baghdadi é salafista. O termo salafi foi deturpado e isso deve-se, em parte, aos patifes que têm entrado na guerra com a bandeira salafista hasteada. Mas a maioria dos salafistas não é jihadista e adere a seitas que rejeitam o Estado Islâmico. Como refere Haykel, estão comprometidos em expandir o Dar al-islam, a terra do islam, ainda que, eventualmente, tenham de pôr em prática coisas monstruosas como a escravatura e a amputação — mas no futuro. As suas prioridades são a purificação pessoal e o cumprimento dos ditames religiosos. E acreditam que qualquer coisa que os desvie desse caminho — que dê origem a guerras e a distúrbios que desfaçam vidas ou impeçam a prossecução dos estudos — é proibido.
Eles vivem no meio de nós. No último outono, fui a Filadélfia visitar a mesquista de Breton Pocuis, um imã que dá pelo nome de Abdullah, de 28 anos. A sua mesquita fica na fronteira entre um bairro onde reina o crime, o Northern Liberties, e uma área gentrificada a que poderíamos chamar Dar al-Hipster, na qual até a sua barba passa despercebida.
Pocius, um polaco de Chicago educado no catolicismo, converteu-se há 15 anos. Tal como Cerantonio, também ele fala como uma alma veterana, mostrando a sua familiaridade profunda com os textos antigos e o seu compromisso com os ensinamentos, na crença de que é neles que reside a salvação ao fogo dos infernos. Quando nos encontramos num café das redondezas, ele traz consigo um trabalho acadêmico em árabe sobre o Corão e um livro de auto-ajuda para aprender japonês. Estava a preparar o seu sermão sobre as responsabilidades e obrigações da paternidade para os cerca de 150 fiéis da sua assembleia das sextas-feiras. Diz Pocius que o seu principal objetivo é encorajar os fiéis da mesquita a que conduzam as suas vidas de uma forma halal [aquilo que é permitido ou legal à luz da lei islâmica]. Mas o crescimento do EI têm-no forçado a equacionar determinadas questões políticas que à partida estariam longe da cabeça de qualquer salafista. “A maior parte das coisas que eles dizem sobre como devemos orar ou nos vestir é tal e qual o que transmito à minha masjid [mesquita]. Mas quando abordam questões sobre convulsões sociais, parecem o Che Guevara.”

Quando Baghdadi apareceu, Pocius adoptou o slogan “Não é o meu khalifa”. “Nos tempos do profeta, muito sangue foi derramado”, diz-me, “e ele sabia que o caos seria o pior que poderia acontecer a todos, sobretudo dentro da umma [comunidade].” Por isso, diz Pocius, a atitude correta de um salafista não é semear a discórdia aderindo a facções e declarando os outros muçulmanos apóstatas. Pelo contrário, Pocius e a maioria dos salafistas acham que os muçulmanos se deveriam afastar da política. Estes salafistas reservados, como são conhecidos, concordam com o que diz o Estado Islâmico de que a única lei é a de Deus e rejeitam o voto e a criação de partidos políticos. Mas interpretam o ódio que o Corão tem ao caos e à discórdia como um pedido para que sigam o líder, seja ele qual for, incluindo os que são verdadeiros pecadores. “Diz o profeta que, enquanto o líder não ceder claramente ao kufr [descrença], lhe devemos toda a obediência”, explica-me Pocius, dizendo que os clássicos “livros de credo” alertam todos para o perigo da revolta social. Os salafistas reservados estão completamente proibidos de separar um muçulmano de outro, nomeadamente pela excomunhão em massa. Viver sem baya’a, diz Pocius, faz de uma pessoa um ignorante, ou incivilizado. Mas a baya’a não significa lealdade imediata e cega a um califado, e muito menos a Abu Bakr al-Baghdadi. De uma forma mais alargada, pode querer dizer, isso sim, lealdade a um contrato social religioso e compromisso com a comunidade muçulmana, seja ela liderada por um califa ou não.

Estes salafistas preconizam que os muçulmanos devem conduzir as suas energias para o aperfeiçoamento da vida privada, incluindo a oração, os rituais e a higiene. E, assim como os judeus ultraortodoxos debatem se no Sabath e à boa maneira kosher faz sentido rasgar papel higiénico em pedaços [uma das regras na preparação do descanso semanal do judaísmo] — e será que a moda da “roupa rasgada” também conta? —, eles passam uma enorme quantidade de tempo a avaliar se têm as calças demasiado compridas ou se as suas barbas estão bem aparadas num lado mas desgrenhadas no outro. Com toda esta exigente devoção, Deus, assim o creem, irá retribuir-lhes em força e em número, e talvez um califado possa emergir. Só então, os muçulmanos terão a sua vingança, e sim, chegarão a uma vitória gloriosa em Dabiq. Mas Pocius cita alguns teólogos modernos salafistas que asseguram que um califado não vem se não da vontade indômita de Deus.

E isso é algo com que o Estado Islâmico irá com toda a certeza concordar, acrescentando que Deus já nomeou Baghdadi. A réplica de Pocius pretende apelar à humildade. E cita Abdullah Ibn Abbas, um dos companheiros do profeta, que se sentou com dissidentes e lhes perguntou como poderiam ter o descaramento, sendo eles uma minoria, de afirmar que a maioria estava errada. A dissidência propriamente dita, assim como o derramamento de sangue e a divisão da umma, é proibida. De certa maneira, até a constituição do califado de Baghdadi contradiz todas as expectativas, diz. “É a Alá que cabe estabelecer o khilafa e envolveria consenso dos eruditos de Meca e Medina. Não foi isso que aconteceu. O EI apareceu vindo do nada.”

Mas esta é uma conversa que o EI não aceita, e os seus seguidores são sarcásticos nos tweetts sobre os salafistas reservados. Gozam chamando-lhes “salafistas da menstruação” por causa dos seus obscuros julgamentos sobre quando as mulheres estão limpas ou não, bem como sobre outros aspectos menos prioritários da vida. “Do que precisamos agora é de uma fatwa [decreto] que nos indique como é haram [proibido] andar de bicicleta em Júpiter”, twittou um deles de forma muito seca. “É nisto que os eruditos se deviam focar. Pressionar mais do que andarem a frisar a Umma.” Já Anjem Chouldary diz que não há maior pecado do que a usurpação da lei de Deus e que as posições extremistas em prol do monoteísmo não devem ser vistas como fraqueza.

Os Estados Unidos não apoiam de modo nenhum Pocius, ainda que este se apresente como alternativa de peso ao jihadismo. Tendem inclusive a desacreditá-lo. E ele é amargo e diz que a América o trata “menos do que a um cidadão”. (Alega que o governo infiltrou espiões na sua mesquita e assediou a mãe no trabalho colocando-lhes questões sobre ele ser um potencial terrorista.)
Contudo, o seu salafismo apresenta-se como antídoto ao jihadismo ao estilo de Baghdadi. Nem todos os que chegam à fé ansiosos por lutar podem escapar do jihadismo, mas para aqueles cuja principal motivação é encontrar uma versão ultraconservadora e inflexível do islam, esses têm aqui a alternativa. Não é o islam moderado, alguns vê-lo-ão mesmo como extremado. É, contudo, a versão do islão que até para as mentes mais literais não é hipócrita nem foi expurgada de forma blasfêmica dos seus inconvenientes. A hipocrisia não é pecado que as mentes mais jovens da teologia tolerem.
O melhor seria que as autoridades ocidentais parassem de lançar mais achas para a fogueira do debate teológico islâmico. O próprio Barack Obama, ao afirmar que o EI não é “islâmico”, entrou nas profundas correntezas do takfiri e derrapou — logo ele, que ironicamente é um não muçulmano filho de um muçulmano que até poderia ser considerado apóstata e agora pratica o takfir contra os muçulmanos. Os não muçulmanos que agem conforme os requisitos do takfir gracejam com os jihadistas (“Como porcos cobertos de porcaria que dão lições de higiene a outros”, twittou um deles).

Imagino que a maioria dos muçulmanos aprecie os sentimentos de Obama: o Presidente mostrou estar do lado deles e contra Baghdadi e os chauvinistas não muçulmanos que os tentam implicar nos crimes. Mas a maioria dos muçulmanos não é sujeita a juntar-se à jihad. E os que aderem veem confirmadas as suas suspeitas de que os Estados Unidos mentem sobre a religião para alcançar os seus objetivos.

E o EI lá vai cantando e rindo, trauteando energicamente — até com criatividade — dentro dos limites apertados da sua teologia. Mas fora desses limites não poderia ser mais árido ou silencioso: uma visão da vida enquanto obediência, ordem e destino. Muse Cerantonio e Anjem Choudary tanto podem estar a discutir mortes em massa e tortura diária como as virtudes do café do Vietname e de bolos demasiado açucarados. E fazem-no com aparente deleite. Parece-me, contudo, que abraçar os seus pontos de vista seria ver todos os sabores que existem neste mundo tornarem-se insípidos por comparação às atrocidades grotescas do que pode aí vir no futuro.
Até posso apreciar a companhia de um e de outro, enquanto exercício intelectual que me faz sentir tão culpado quanto me dá prazer… mas até um certo ponto. Na recensão que George Orwell fez ao Mein Kampf, em março de 1940, o escritor confessou: “Nunca consegui sentir antipatia por Hitler”; apesar dos seus objetivos abomináveis e covardes, havia qualquer coisa de pobre coitado naquele homem. “Se matava um rato que fosse, fazia-o como se de um dragão se tratasse.” Os apoiantes do EI têm uma allure muito semelhante. Acreditam estar pessoalmente envolvidos numa luta que transcende as suas vidas e que o simples fato de serem arrastados para o drama, estando no lado do bem, é um privilégio e um prazer — sobretudo se for igualmente um fardo.


O fascismo, continuava Orwell, é “psicologicamente muito mais sólido do que qualquer ideia hedonista da vida… Enquanto o socialismo, e até mesmo o capitalismo de uma forma mais relutante, tem dito às pessoas ‘dou-te a oportunidade de passares um bom bocado’, Hitler disse às pessoas “dou-vos luta, perigo e morte, e em resultado teve uma nação prostrada a seus pés”… Não devemos subestimar o encanto que possa ter ao nível das emoções. Nem, no caso do EI, o seu encanto religioso ou intelectual. Que o EI sustente como dogma o cumprimento iminente da profecia, isso ao menos transmite-nos o valor do nosso opositor. Está disposto a louvar a sua quase autodestruição mas mantém-se confiante, mesmo quando cercado, de que irá receber a graça divina se se mantiver fiel ao modelo profético. As ferramentas ideológicas podem convencer alguns dos possíveis convertidos de que a sua mensagem de grupo é falsa, e as ferramentas militares podem impor limites aos seus horrores. Mas para uma organização tão impenetrável à persuasão como é o EI, poucas medidas importarão, e a guerra pode bem vir a ser longa, ainda que não termine com o fim dos tempos.
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