Por Roberto Amaral
“Quando se me impõe a solução de um caso jurídico ou moral, não me detenho em sondar a direção das correntes que me cercam: volto-me para dentro de mim mesmo e dou livremente a minha opinião, agrade ou desagrade a minorias ou maiorias”.
Estas palavras são de Rui Barbosa, em carta dirigida a Evaristo de Morais, o grande advogado, incitando-o a assumir a defesa de José Mendes Tavares, réu previamente condenado pelo que então se chamava de ‘opinião pública’. Trata-se, como se vê, de lição extremamente atual, quando o STF de nossos dias assume a responsabilidade de violar a Constituição brasileira sob a alegativa de estar atendendo ao ‘clamor das ruas’.
Legalizando a prisão antes de definitivamente estabelecida a culpabilidade do acusado, o STF torna-se agente de um direito criminal promotorial, penalista, punitivista, reacionário, atrasado.
Caminhando na contramão da moderna criminologia, torna-se caudatário do conservadorismo e se faz instrumento do processo em curso de regressão política que visa à construção de um Estado autoritário, promovido ideologicamente pela grande imprensa.
Só o direito do arbítrio, o direito da força que anula a força do direito, pode autorizar, como acaba de fazer o STF, a execução da pena cerceadora de liberdade enquanto ainda se duvida se o acusado é culpado ou inocente.
A prisão, nessas circunstâncias, deixa de ser o ato final de um processo condenatório para transformar-se no momento inaugural das investigações, que se abrem não para apurar fatos e responsabilidades, mas para provar a culpabilidade do acusado escolhido para ser condenado.
Nesse contexto, a
‘delação premiada’ é instrumento de barganha que a autoridade investigadora manipula a fim de obter do acusado preso não necessariamente a apuração de possível crime, mas a revelação selecionada de acusações contra quem a investigação quer condenar.
Alegar, como justificativa dessa agressão jurídica, a audiência das ruas, é, no mínimo, um escárnio.
Nas ruas de Berlim sob o nazismo multidões ensandecidas julgavam e puniam seus adversários. Turbas envenenadas pela propaganda estimulavam a perseguição aos dissidentes, condenados aos campos de concentração, independentemente de culpa, mas simplesmente por serem judeus, comunistas ou homossexuais.
No vestibular da Guerra Fria o macarthismo, sem precisar refazer a Constituição ou as leis, instalou nos EUA a perseguição política e o terror, em nome de um nacionalismo xenófobo e de um anticomunismo de indústria.
Aqui, a implantação da última ditadura, em 1964, foi precedida de maciça mobilização da opinião pública, levada a cabo pela imprensa, animadora das marchas ‘com Deus pela liberdade’.
Esse especioso ‘clamor das ruas’ é o outro lado do discurso único de uma imprensa monopolizada, unificada pelo ódio, pela vindita e pelo projeto comum de poder, aquele poder reiteradamente negado às forças conservadoras pelo processo eleitoral.
É essa imprensa, poderosíssima, que escolhe as vítimas e seus protegidos, que elege os inimigos públicos escolhendo-os entre seus adversários de classe, elege os réus e os julgadores e aos julgadores dita as penas a serem aplicadas, independentemente do aparato normativo, porque na sua aplicação é sempre possível torcer e distorcer a lei, ou criar doutrina nova, como a teoria do domínio do fato, ou refazer-se a jurisprudência, segundo o víeis de maiorias ocasionais.
Essa coalizão de direita dirige a política, dita a pauta do governo em minoria legislativa e popular para o que tem sido decisiva a oposição midiática. Essa coalizão dita o discurso oposicionista que impõe ao governo o receituário do neoliberalismo.
Essa coalizão comanda a privatização e a desnacionalização, põe de joelhos um Congresso que tem em Renan Calheiros e Eduardo Cunha, seus líderes, o melhor indicador de sua decadência e de seu descompromisso com a sociedade, a ética e o País.
De costas para os interesses das grandes massas, cuja emergência política tira-lhe o sono, a classe dominante, despida da legitimidade da soberania popular, impõe seus interesses sobre os interesses da nação e do País.
A cantilena reacionária dos meios de comunicação é um de seus instrumentos de dominação, o mais eficaz quando se trata da luta ideológica. Foi assim no enfrentamento ao governo Vargas, foi assim na campanha contra Jango e o pleito das reformas de base, f
oi assim contra Lula e é assim contra Dilma. Foi assim e pelos mesmos motivos a destruição de Leonel Brizola, empreendida pelo sistema Globo.
O projeto de hoje é a institucionalização da exceção jurídico-política dentro da ordem formalmente democrática. Estamos nas primícias de uma inflexão autoritária declarada contra os interesses populares e a soberania nacional.
Daí a necessidade de destruir as organizações populares de esquerda e seus ícones, se possível desmoralizando-os moralmente diante da sociedade que sempre os respaldou.
Daí o concerto de ações. Para levar a classe-média a defender os interesses das elites, a estratégia política é a de sempre: jogar as lideranças de esquerda na vala comum da corrupção onde o capitalismo se banqueteou e se banqueteia.
Eis por que, a serviço desse poder sem peias, sem limites éticos ou legais, as estruturas estatais – os órgãos de investigação, a polícia, os ministérios públicos, as instâncias judiciais, os juízes de primeira instância e os tribunais superiores, a receita federal etc. – têm, hoje, uma só missão: provar que Luiz Inácio Lula da Silva é um político corrupto.
A desconstrução do líder popular integra o projeto que compreende a deposição da presidente, a destruição do PT e, a partir dela, a destruição e desmoralização das esquerdas brasileiras.
Assim estará aberto o caminho para a tomada do poder pela direita, pelo conservadorismo, pelo atraso, pelo fundamentalismo político, revogando ou reduzindo as conquistas sociais e derruindo a soberania nacional com a retomada do entreguismo e da onda das privatizações a serviço da desnacionalização: já agora, ante a passividade de um governo fragilizado, os mais lucrativos ativos da Petrobras (entre eles poços em atividade) são vendidos na bacia das almas e o
Senado intenta doar o pré-sal – promessa de nosso desenvolvimento autônomo – às grandes petroleiras multinacionais.
A mudança política desta feita é operada sem golpe de Estado clássico, sem apelo às armas, sem nova ordem constitucional, sem novos atos institucionais. Ao contrário, efetiva-se sob o império da mesma Constituição (mas reinterpretando-a), com o mesmo direito (mas reinventando-o) mediante ‘interpretações criadoras’ como o ‘domínio do fato’.
O Brasil é, presentemente, um experimento de tomada do poder por dentro do poder, uma tomada do governo por dentro do governo, sem apelo à violência, sem ruptura constitucional, respeitada a legalidade (reinterpretada) e dentro de seus limites formais.
Esta operação depende diretamente da fragilização da presidente Dilma, e conta com seu recuo politico. As seguidas tentativas de impeachment e a resistência do Congresso à sua política servem a esse propósito. Mas não é tudo. A direita pensa longe. Ela vislumbra 2018 e alimenta esperanças de sucesso eleitoral. Trata-se, agora, já, de inviabilizar o eventual retorno do ‘sapo barbudo’.
Por isso, sua vida está sendo violentamente invadida, exposta, num processo de humilhação a que nenhum outro homem público foi submetido até hoje. Se afinal nada for comprovado, nenhum problema, pois a pena previamente ditada já terá sido aplicada, mediante a execração pública a que está sendo submetido o ex-presidente.
Esta operação, em curso, conta com o recuo, via intimidação, do ex-presidente. Está, pois, em suas mãos o que fazer, e só lhe resta a mobilização das massas. O Lula acuado é presa dócil. Nas ruas é promessa de luta, resistência e avanço. Foi assim que em 2005 transformou uma cassação iminente na consagração eleitoral de 2006.
A escolha agora é dele: sucumbir sem glória, ou encarnar a resistência à destruição da proposta de fazer do Brasil uma nação soberana, desenvolvida e socialmente inclusiva.
http://www.jornalggn.com.br/noticia/o-impeachment-de-lula-por-roberto-amaral