sábado, 19 de outubro de 2013

Sobre "regimes" e governos


The Obama regime

por Atilio Boron


É uma prática profundamente arraigada que os governos adversos à dominação americana sejam habitualmente caracterizados como "regimes", pelos grandes meios de comunicação do império, pelos intelectuais colonizados da periferia e por aqueles que o grande dramaturgo espanhol Alfonso Sastre magistralmente qualificou como "intelectuais bem pensantes". A palavra "regime" adquiriu na ciência política uma conotação profundamente negativa ainda que esta não existisse na sua formulação original. Até meados do século XX falava-se do "regime feudal", do "regime monárquico", ou do "regime democrático" para aludir a leis, instituições e tradições políticas e culturais que caracterizavam cada sistema político. Contudo com a Guerra-fria e depois com a contrarrevolução neoconservadora este vocábulo mudou completamente o seu significado. No seu uso atual a palavra é empregada para estigmatizar governos ou estados que não se ajoelham perante as ordens de Washington, que por isso mesmo os caracteriza como autoritários e, em não poucos casos, como tiranias sangrentas.

Contudo, um olhar sóbrio sobre este assunto comprovaria a existência de estados abertamente despóticos que, apesar disso, os arautos da direita e do imperialismo jamais qualificariam como "regimes". Na conjuntura atual proliferam analistas políticos e jornalistas (incluindo alguns "progressistas" um tanto ou quanto distraídos) que não encontram inconveniente em aceitar o uso da linguagem estabelecida pelo império. O governo sírio é o "regime de Bashar Al Assad"; e a mesma classificação é utilizada para falar dos países bolivarianos. Na Venezuela o que existe é um "regime chavista"; no Equador é o "regime de Correia" e a Bolívia está submetida aos caprichos do "regime de Evo Morales". O fato de se terem desenvolvido nesses três países instituições e formas de protagonismo popular e funcionamento democrático, superiores aos existentes nos Estados Unidos e na maioria dos países capitalistas desenvolvidos é olimpicamente ignorado. Como não são amigos dos Estados Unidos o seu sistema político é classificado como "regime".

O duplo critério que se aplica nestes casos fica em evidência quando se observa que as infames monarquias petrolíferas do golfo, muito mais despóticas e brutais do que o "regime sírio", nunca são estigmatizadas com a palavrinha em questão. Fala-se por exemplo, do governo de Abdullah bin Abdul Aziz mas nunca do "regime saudita", apesar de este país não ter sequer um parlamento mas sim uma "Assembleia Consultiva" cujos membros são escolhidos pelo monarca entre os seus parentes e amigos; de os partidos políticos estarem expressamente proibidos e de o poder ser exercido por uma dinastia que se perpetua há décadas no poder. Exatamente o mesmo sucede com o Qatar a quem nem por rebate de consciência ao New York Times ou aos media hegemônicos da América Latina e do Caribe ocorre tratarem-nos por "regime saudita" ou "regime qatari". A Síria, ao contrário, é um "regime" – apesar de ser um estado laico no qual até há bem pouco tempo conviviam diversas religiões, onde existem partidos políticos legalmente reconhecidos e um congresso com representação da oposição. Mas nada lhe tira a alcunha de "regime". Por outras palavras, um governo amigo, aliado ou cliente dos Estados Unidos, por mais violador que seja dos direitos humanos, nunca será caracterizado como um "regime" pelo aparato propagandístico do sistema. Por outro lado os governos do Irã, Cuba, Venezuela, Bolívia, Nicarágua, Equador e outros mais são invariavelmente caracterizados dessa maneira. [1]

Para comprovar rotundamente a tergiversação ideológica subjacente a esta caracterização dos sistemas políticos basta recordar a forma como os publicitários da direita caracterizam o governo dos Estados Unidos, considerando-o o "non plus ultra" da realização democrática. Isto apesar de o antigo presidente Jimmy Carter dizer que o seu país "não tem uma democracia que funcione". O que há é um estado policial muito habilmente dissimulado, que exerce uma vigilância permanente e ilegal sobre os seus próprios cidadãos, e cujo feito mais importante que realizou nos últimos trinta anos foi permitir que apenas 1% da população enriqueça como nunca até aqui, à custa do estancamento dos rendimentos recebidos por 90% da população. Na mesma linha crítica da "democracia" estado-unidense (na realidade uma cínica plutocracia) encontra-se a tese do grande filósofo Sheldon Wolin, que caracterizou o regime político imperante no seu país como "um totalitarismo invertido". Segundo ele, "o totalitarismo invertido… é um fenômeno…que representa fundamentalmente a maturidade política do poder corporativo e a desmobilização política da cidadania". Por outras palavras, a consolidação da dominação burguesa nas mãos dos oligopólios, por um lado, e a desmobilização política das massas, devido à apatia política, abandono e mesmo desdém pela vida pública, e a fuga individual no sentido de um consumismo insano sustentado pelo endividamento galopante, por outro. O resultado: um "regime" totalitário de novo tipo. Um democracia "peculiar", em suma, sem cidadãos nem instituições, e na qual o peso esmagador do "establishment" esvazia de todo conteúdo o discurso e as instituições democráticas, convertidas por isso num esgar sem gosto nem graça, e absolutamente incapaz de garantir a soberania popular. Ou seja, de tornar realidade a velha fórmula de Abraham Lincoln quando definiu a democracia como "o governo do povo, pelo povo e para o povo".

Em resultado desta gigantesca operação de falsificação da linguagem, o estado norte-americano é concebido como uma "administração", ou seja, uma organização que em função de regras e normas claramente estabelecidas gere a coisa pública com transparência, imparcialidade e apego ao mandato da lei. Na realidade, como afirma Noam Chomsky, nada disso é verdade. Os Estados Unidos são um "estado canalha" que viola como nenhum outro a legalidade internacional bem como alguns dos mais importantes direitos e leis do seu próprio país. Assim o demonstram, no caso interno, as revelações sobre a espionagem que a NSA e outras agências têm feito contra o próprio povo americano, já para não falar de atropelos ainda piores como os que se produzem diariamente na prisão de Guantanamo, ou a persistente ferida aberta do racismo. Proponho por isso que se abra uma nova frente da luta ideológica e se comece a falar sobre o "regime de Obama", ou do "regime da Casa Branca" cada vez que tenhamos de nos referir ao governo dos Estados Unidos. Será um acto de justiça que melhora a capacidade de análise, e contribui para higienizar a linguagem política, emporcalhada e abastarda pela indústria cultural do império e a sua inesgotável fábrica de mentiras.

Notas
[1] Convém recordar que esta dualidade de critérios morais tem uma longa história nos Estados Unidos. È célebre a piada que narra a resposta do presidente Franklin D. Roosevelt perante alguns membros do partido democrata horrorizados pelas brutais políticas repressivas de Anastazio Somoza na Nicarágua. FDR limitou-se a escutá-los e rematou: "sim é um filho da puta. Mas é o "nosso" filho da puta". O mesmo poderia dizer-se dos monarcas da Arábia Saudita ou do Qatar, entre outros. Acontece que Bashar Al Assad não é o seu filho da puta. Daí a caracterização do seu governo como "regime". 

sábado, 5 de outubro de 2013

Você sabe quem foi Babeuf?



François Noël Babeuf

Mais conhecido como Gracchus Babeuf foi um revolucionário da Revolução Francesa, criador do movimento chamado “A República dos Iguais”, que preconizava, entre outras coisas, que o Estado  “...se apossaria do recém-nascido, cuidaria de seus primeiros momentos de vida, garantiria o leite e zelaria por sua mãe, e o colocaria na maison nationale, na qual ele adquiriria a virtude e o esclarecimento de um verdadeiro cidadão”. Assim, a educação seria igual para todos. Todos os indivíduos fisicamente capazes trabalhariam, e as tarefas desagradáveis ou árduas seriam responsabilidade de todos, através do revezamento. O governo supriria as necessidades básicas da existência, e o povo faria suas refeições em mesas comunitárias. O governo controlaria todo o comércio exterior e tudo que fosse impresso.

No seu Manifesto dos Iguais afirmava que a Natureza conferira a cada homem o direito igual de desfrutar de tudo que é bom, e que o objetivo da sociedade era defender esse direito; que a Natureza impusera a cada homem o dever de trabalhar, e quem dele se esquivara era um criminoso; que numa “sociedade verdadeira” não haveria ricos nem pobres; que o objetivo da Revolução fora acabar com todas as desigualdades e estabelecer o bem-estar de todos; que a Revolução, portanto, não estava terminada...

Processado por sedição pelo governo do ditador Napoleão Bonaparte, em sua defesa alega que “O que está realmente em jogo, diz babeuf, não é tanto a questão de conspiração contra o governo, e sim a difusão de certas idéias julgadas subversivas pela classe dominante. O Diretório – prossegue ele – desrespeitou a soberania do povo, transformando o direito de votar e ser eleito num privilégio de certas castas. Os privilégios ressurgiram. O povo perdeu a liberdade de imprensa e a liberdade de reunião, bem como o direito de fazer petições e portar armas. Até mesmo o direito de ratificar leis foi retirado dos cidadãos e conferido a uma segunda câmara. Foi estabelecido um poder executivo que está fora do alcance do povo e não depende do controle popular. Foram esquecidas a educação e a ajuda aos necessitados. E, por fim, a Constituição de 1793, que fora aprovada por quase cinco milhões de votos que exprimiam um sentimento popular autêntico, foi substituída por uma constituição impopular, aprovada por talvez um milhão de votos duvidosos. De mesmo modo que, se fosse verdade que ele havia conspirado (e era mesmo, embora no julgamento Babeuf o negasse), teria sido uma conspiração contra uma autoridade ilegítima.

"As revoluções ocorrem quando as molas humanas da sociedade são esticadas além do que podem suportar. O povo rebela-se contra a pressão, e com razão, pois o objetivo da sociedade é o bem da maioria. Se o povo ainda se sente vítima de uma pressão excessiva, não importa o que digam os governantes, a revolução ainda não terminou. Ou, se terminou, os governantes cometeram um crime.

A felicidade, na Europa, é uma idéia nova. Porém hoje sabemos que os infelizes são o poder realmente importante do mundo; eles têm o direito de falar como os verdadeiros senhores do governo que deles se esquece...” ... “Nossas leis referentes à hereditariedade e inalienabilidade são instituições “humanicidas”. O monopólio da terra exercido por alguns indivíduos, e a posse de produtos que excedem suas necessidades, não é nada mais, nada menos, que roubo; e todas as nossas instituições civis, nossas transações comerciais normais, são atos de latrocínio, perpetuados e autorizados por leis bárbaras.

Porém vocês afirmam – prossegue Babeuf – que as minhas idéias é que fariam a sociedade voltar à barbárie. Os grandes filósofos de nosso século não pensavam assim, e é deles que sou discípulo...” Não sabem que incluíram em sua acusação a mim um trecho que citei de Rousseau, escrito em 1758? Ele falara de “homens odiosos a ponto de cobiçarem mais do que o suficiente enquanto outros homens morrem de fome”. “ ... “E Mably, o popular, o sensível, o humano, não foi ele um conspirador ainda mais contumaz? “Se seguires a cadeia de vosso vícios”, escreveu ele, “descobrirás que o primeiro elo está preso à desigualdade de riquezas”. O Manifesto dos Iguais, que jamais foi retirado da poeira da caixa em que o colocamos, mas do qual tanto se tem falado, não foi mais longe que Mably e Rousseau. E Diderot, que afirmou que, do cetro ao báculo, a humanidade era governada pelo interesse pessoal, e que o interesse pessoal derivava da propriedade, e que era inútil os filósofos discutirem sobre a melhor forma de governo possível enquanto não fossem arrancadas as raízes da propriedade em si – Diderot, que perguntou se seriam possíveis a instabilidade, as vicissitudes periódicas dos impérios, se todos os bens fossem propriedade comum, e que afirmou que todo cidadão devia tirar da comunidade o que precisasse e dar à comunidade o que pudesse, e que todo aquele que tentasse restaurar o detestável princípio da propriedade deveria ser trancafiado como inimigo da humanidade e louco perigoso! – Cidadãos, “louco perigoso” é justamente a acusação que vocês dirigem a mim por tentar instaurar a igualdade!

E Tallien e Armand de la Meuse, que agora são membros do Diretório e da legislatura – por que não estão sendo julgados também? Tallien, há poucos anos, quando editava "O amigo", do Sans-Cullotes, afirmava que “a anarquia cessaria tão logo a riqueza fosse mais bem distribuída”. E Armand de la Meuse afirmava à Convenção que “toda pessoa sincera deve admitir que igualdade política sem igualdade verdadeira é apenas uma ilusão tantalizante”, e que “o erro mais cruel dos órgãos revolucionários é não determinar os limites dos direitos de propriedade, abandonando, em consequência, o povo às especulações gananciosas dos ricos”.

Creio ser desnecessário dizer que foi guilhotinado na manhã de 27 de maio de 1797, o mesmo destino de outros 30 de seus seguidores, e muitos outros foram reduzidos à servidão ou deportados.

(“Rumo à Estação Finlândia”, Parte II – Origens do socialismo: A defesa de Babeuf, Edmund Wilson, Companhia das Letras, págs. 71-79)