Via Adital
Comitê da Verdade, Memória e Justiça do Amazonas
Coordenadores: Egydio Schwade e Wilson C. Braga Reis
1º Relatório do Comitê Estadual da Verdade.
O genocídio do povo Waimiri-Atroari
Manaus, 2012
1. POR QUE KAMÑA MATOU KIÑA?
Por que kamña matou kiña?(1) Apiemieke?(2) (Por quê?). Esta foi a pergunta mais frequente que os Waimiri-Atroari fizeram aos seus professores, Egydio e Doroti Schwade, que desenvolveram o primeiro processo de alfabetização em sua língua materna na aldeia Yawará –Sul de Roraima– entre fevereiro de 1985 e dezembro de 1986. A pergunta exige uma resposta da sociedade nacional. Mas como chegar à verdade sobre este crime cometido durante a construção da BR-174 pela Ditadura Militar e em períodos posteriores se uma das empresas que participaram diretamente do desaparecimento dos índios comanda hoje a política indigenista na área?(3,4,5).
No momento em que a sociedade anima o Governo na busca dos desaparecidos políticos da Ditadura Militar e dos crimes cometidos contra a sociedade, não podemos esquecer os mais duramente atingidos durante este período, nesta região amazônica, os indígenas. O que ocorreu aos Cinta Larga e Suruí, na região dos Rios Aripuanã e Rooswelt, entre Rondônia e Mato Grosso; aos Krenhakarore do rio Peixoto de Azevedo, na rodovia Cuiabá-Santarém (conhecidos como Índios Gigantes); aos Kanê ou Beiços-de-Pau do Rio Arinos no Mato Grosso; aos Avá-Canoeiro em Goiás; Parakanã e Arara no Pará e a outros em função dos projetos políticos e econômicos da Ditadura. Também não devem ser esquecidos crimes cometidos contra povos indígenas que, embora desencadeados desde antes do governo militar, se acirraram durante o mesmo devido a negligencia, acobertamento e incentivos fiscais concedidos a latifundiários interessados na morte dos índios. É o caso das "correrias”, expedições de matança de índios que ocorreram até o final da década de 1970, especialmente no sul do Amazonas e no Acre. Entre os povos mais duramente atacados em "correrias” citam-se os Kaxinawa e os Madiha no Acre e os Juma no Sul do Amazonas. Muitos dos episódios de "correrias” tiveram a participação direta de agentes públicos(6).
Oferecemos aqui documentação sobre o que ocorreu aos Kiñá ou Waimiri-Atroari, povo que habitava até 1967 a região entre Manaus (AM) e Caracaraí (RR), ou seja, do vale do rio Urubu rumo Norte, passando pelos rios Uatumã, Curiuaú, Camanaú, Alalaú e adentrando Roraima até os rios Jauapery e Anauá, em direção à Guiana. Alguns desses documentos apontam também para o genocídio do grupo Piriutiti, na mesma região, que merece uma investigação mais específica.
A respeito do massacre dos Waimiri-Atroari pelos militares, apesar de tão recente e tão próximo a Manaus (entre 100 e 350 quilômetros), a opinião pública tem menos informações e descrições do ocorrido que dos massacres acontecidos aos mesmos índios há 150 anos. Isso porque, apesar da farta documentação existente, que comprova o exercício de uma política genocida, instalou-se junto ao povo Wamiri-Atroari um programa de controle da informação que mantém afastados os indigenistas, cientistas e jornalistas independentes, ou seja, sem vinculação com os interesses empresariais instalados no território indígena.
Ao mesmo tempo em que encaminhamos à Comissão Nacional da Verdade, Memória e Justiça esses documentos sobre as táticas de guerra, instrumentos utilizados e a ocultação dos acontecimentos no processo sistemático de extermínio do povo Waimiri-Atroari para a expropriação do seu território e dos recursos naturais ali existentes, solicitamos providências para que este processo de morte e ocultação de crimes seja superado, afastando da direção da política indigenista as empresas e os responsáveis pelo massacre ocorrido e a todos os funcionários que ao tempo da Ditadura Militar tiveram alguma participação ou presença nas ações da FUNAI e do Exército na área. Só assim se poderá criar as condições para iniciar um novo diálogo entre os Waimiri-Atroari e a sociedade nacional(7).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
"Os Waimiri-Atroari tombaram no silêncio da mata e foram sutilmente enterrados e esquecidos no espaço e no tempo” (Apoena Meirelles)(304).
Não restam dúvidas de que o Governo Militar, utilizando-se de aparatos bélicos e em favor de interesses privados, cometeu o genocídio dos Waimiri-Atroari. Sem um contato, sem aviso prévio, da noite para o dia apareceram enormes máquinas destruindo o seu precioso patrimônio, de muita biodiversidade, do qual se consideravam administradores. Território defendido por eles até as últimas consequências. "Os velhos achavam que kamña colocaria toda a nossa floresta de raízes para cima”, diziam os sobreviventes. E poderiam eles pensar outra coisa?
As estimativas demográficas do Povo Waimiri-Atroari entre as décadas de 1960 e 1970 indicam que mais de 2.000 pessoas morreram durante a construção da BR-174, a maioria assassinada. Além dos índios sobreviventes, elementos do Comando Militar da Amazônia e da FUNAI sabem os detalhes desta tragédia humana. A crueldade que levou ao desaparecimento dessas milhares de pessoas nos vales dos Rios Urubú, Alalaú, Uatumã, Curiuaú, Camanaú e Jauaperí até o Baixo Rio Negro é especialmente grave porque ameaçou a existência de um povo, os Kiña, e há indícios de que levou ao completo aniquilamento de pelo menos um outro, os Piriutiti.
Respostas à pergunta: "Apiemieke kamiña kiña bakapa?” Precisam ser dadas aos Kiña e conhecidas pela sociedade nacional para que os crimes contras os povos indígenas, os crimes de genocídio, cessem no Brasil e fiquem apenas como parte sombria de nossa história.
Neste documento procuramos apenas iniciar a busca dos esclarecimentos que toda a sociedade nacional tem o direito de saber. Esperamos que tenha continuidade e que faça aflorar a memória reprimida e ainda oculta desse povo. E como consequência não se instale um novo poder opressor a partir do dinheiro. Mas que possam viver daqui para frente em seu território seguro e que seus filhos e filhas possam crescer sem traumas e sem a violência que seus pais e avós sofreram.
Muitos sobreviventes Waimiri-Atroari, hoje pais de família, viveram durante seus primeiros anos de vida na floresta, fora da maloca. Alguns nasceram na floresta, fora de suas casas, porque esta foi queimada ou bombardeada. Sobreviveram no aconchego de suas mães angustiadas, verdadeiras heroínas, escondidas sustentando dias e semanas seus filhos na mata, onde procuravam abrigo e alimento longe de seus maridos, como sobreviventes dos massacres.
Para minimizar os traumas dessa tragédia esse povo precisa de justiça histórica e da criação de um novo ambiente de relacionamento humano, demonstrando com toda a sinceridade e carinho que os acontecimentos, as injustiças, a tragédia vivida por eles, não são essência da sociedade nacional. Esta, em sua maior parte, repudiou e repudia tal brutalidade e pensa como eles sobre a vida: um bem-viver harmonioso e alegre.
A verdade é que o povo Kiña caiu "nas mãos de assaltantes” (Lc.10.30). A experiência vivida por esse povo nos ilustra o que os povos indígenas da Amazônia, atingidos por rodovias e grandes empreendimentos do governo e/ou privados, sofreram. Não podemos esquecer que esses acontecimentos fazem parte de toda a política repressiva adotada não só contra os índios, mas também contra todas as pessoas que se opunham aos projetos do governo militar. A presença da Aeronáutica e do Exercito na repressão aos Kiña e „declarações de guerra‟ explícitas fazem parte do autoritarismo que não temia nenhum julgamento da História. O que sucedeu nas florestas do povo Kiña foi possivelmente o que causou maior número de vítimas em terras brasileiras no período da Ditadura Militar.
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Leia o documento na íntegra.
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Notas referentes às partes publicadas acima:
(1) A palavra "Kamña” é utilizada para identificar os não indígenas e "Kiña” quer dizer "a gente”, "a nossa gente”, ou seja, o povo Waimiri-Atroari. A pergunta aparece constantemente nos Desenhos Kiña, feitos pelos estudantes da Escola Yawara no período, entre 1985 e 1986. [Arquivo da Casa da Cultura do Urubuí. ANEXOS, secção I: Desenhos Kiña - Documentos de 1 a 19. Veja em especial anexos 1, 7, 9 e 11]
(2) SCHWADE, Egydio e SCHWADE, Doroti Alice M. Carta para Zoraide Goulart dos Santos. FUNAI. Presidente Figueiredo, 14 de dezembro de 1986. (O fonema [ñ] grafado como ñ do espanhol foi uma escolha dos índios feita dentro do processo de alfabetização pelo método Paulo Freire. Linguistas brasileiros, inclusive o linguista da FUNAI, aprovaram a decisão dos índios. O casal de professores norte-americanos que a FUNAI nomeou para substituir Egydio e Doroti Schwade interferiram mudando a grafia. Aqui preferimos manter a grafia original, ou seja, a decisão dos índios).
(3) SILVA, Márcio. Taxa de crescimento da população Waimiri-Atroari cai nos últimos quatro anos. UNICAMP. Cidade Universitária, 10 de setembro de 1991.
(4) BAINES, Stephen G. Território dos Waimiri-Atroari e o indigenismo Empresarial. Série Antropologia 138. Universidade de Brasília, 1993.
(5) PROGRAMA WAIMIRI-ATROARI/FUNAI-ELETRONORTE. Ações Mitigadoras da Eletronorte pelos Impactos Provocados pela Inundação nas Terras dos Waimiri-Atroari. Em:www.waimiriatroari.org.br
(6) LUCENA, Eliana. Funai ainda desagrada missões. In. JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO. São Paulo, 27 de abril de 1975.
(7) SCHWADE, Egydio. 2000 Waimiri-Atroari desaparecidos durante a Ditadura Militar. (Uma síntese dos acontecimentos, em seis artigos publicados no Blog Casa da Cultura do Urubuí: www.urubui.blogspot.com.br.
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(303) SOUSA, Antonia Ludernilda Menezes de. Educação e Trabalho como Fatores de Transformações Políticas e Sociais na Sociedade Waimiri – Atroari entre 1970-2000. Dissertação de Mestrado PPGE/UFAM. Manaus, 2009.
(304) JORNAL O ESTADO DE SAO PAULO. Apoena denucia ameaça ao índio. Integração, hoje, é retrocesso. São Paulo. 26 de outubro de 1975.
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