quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O acerto da “política iraniana” de Lula



por Felipe Flores Pinto
 Caracterizada por comedimento e sobriedade, a diplomacia brasileira sofreu mudanças com a eleição do presidente Lula, em 2002, que decidiu imprimir nova dinâmica à atuação externa do Brasil, decidido a desafiar a ordem internacional estabelecida e a testar os limites de suas possibilidades de ação. Sua personalidade exuberante e falstaffiana [personalidade jovial, informal, pouco cerimoniosa] logo se viu refletir na política exterior de seu governo. Puseram-se em movimento iniciativas ambiciosas —integração física da América do Sul, aproximação com a África e com o mundo árabe, protagonismo na Rodada Doha, entre outras. Em 2010, o Brasil e a Turquia, ganharam notoriedade ao tentar mediar as negociações envolvendo o programa nuclear do Irã, o que resultou na “Declaração de Teerã”, proposta visando a que o Irã abrisse mão de cerca de uma tonelada de combustível nuclear (urânio levemente enriquecido) em troca de material especialmente destinado à produção de radioisótopos medicinais. O acordo terminou rejeitado pelos EUA e outros atores envolvidos nas negociações.
À direita e à esquerda, jornalistas acusaram Lula e o chanceler Celso Amorim de manchar a reputação do Brasil ao dar crédito e reforçar a legitimidade de um regime tido por muitos como execrável. Graduados diplomatas aposentados (e pelo menos um ex-chanceler) qualificaram a iniciativa de Lula como “o maior erro da história da diplomacia brasileira”. Choveram acusações de anti-americanismo, esquerdismo, terceiro-mundismo e, até, anti-semitismo. Muitas das críticas são certamente imerecidas. Argumentos que atribuem a aproximação de Lula com Irã a suposto ranço anti-americano do governo ou à alegada vaidade do presidente são absolutamente descabidos. Tive a honra de servir de 2005 a 2010 na Embaixada do Brasil em Teerã, sob três diferentes embaixadores, profissionais que jamais deixaram convicções pessoais interferirem em seu trabalho ou receberam instruções de Brasília que comprometessem interesses nacionais ou a posição moral do País em matéria de direitos humanos ou não-proliferação nuclear.
Tal simplificação ignora a perspectiva histórica. Pelo menos desde o governo Collor foram levadas a cabo iniciativas de aproximação. Em 1992, Collor — aproveitando o processo de reconstrução do país persa após o término da Guerra Irã-Iraque — decidiu lançar a maior iniciativa da história das relações Brasil-Irã em termos econômicos, quando foi realizada a III Comissão Mista Brasil-Irã. Foram assinados contratos de vários milhões de dólares, e, ao menos uma grande empreiteira brasileira chegou a realizar obras de infraestrutura no Irã. Contudo, as promissoras oportunidades, que poderiam fazer o Irã desempenhar papel comparável ao do Iraque nos anos 70 e 80 para o Brasil em termos de presença econômica brasileira no Oriente Médio, foram canceladas pelo impeachment.
Em 2000, Brasil e Irã estabeleceram mecanismo anual de consultas políticas bilaterais, encabeçado pelos Subsecretários-Gerais Políticos das respectivas Chancelarias. No mesmo ano, os Presidentes Mohammad Khatami e Fernando Henrique Cardoso se encontraram à margem da Assembléia Geral da ONU. Em 2003, a Petrobrás assinou contrato com a estatal petrolífera iraniana NIOC para a exploração de blocos “off-shore” no Golfo Pérsico.
Equívoco ou não, a atenção do mundo se voltou para o Brasil
Lugar-comum recorrente apontado é o de que o Brasil desperdiçou parte de seu prestígio ou “capital politico” internacional ao tentar intervir na condição de mediador do affair nuclear iraniano. Como sabemos desde Maquiavel, prestígio e boas ações não andam necessariamente juntos. Angaria-se prestígio por práticas que levem alguém a ser amado por outrem, ou, então, temido. A República Islâmica é notável exemplo da segunda hipótese.
É estranho que um país como o Irã — simultaneamente em grave situação econômica, combalido por décadas de embargos e isolamento, com seu sistema politico em estado de quase paralisia e com pífio poderio militar em comparação aos demais atores regionais do Oriente Médio — represente tamanha ameaça, a ponto de uma superpotência militar como Israel chegue a rotulá-lo como “ameaça existencial”.
Basicamente, trata-se de uma questão de prestígio acumulado pela República Islâmica. Ao longo de suas três décadas de existência, o regime de Teerã aplica uma lógica de “guerra assimétrica” à sua política externa, agravando problemas regionais já existentes de maneira a manter seus rivais estratégicos de mãos atadas, compensando, assim, seus limitados recursos de poder militar e também angariando temível prestígio com isso. Manipulando magistralmente a “cortina de fumaça” proporcionada pelo fundamentalismo islâmico, a elite política iraniana foi capaz de projetar externamente a imagem de um regime fanático, impiedoso e feroz, certamente na tentativa de mascarar seu reduzido poder nacional real. No jogo de pôquer do sistema internacional, poucos conseguem jogar blefando com uma “mão fraca” como os iranianos.
Não importa se Brasil e Turquia erraram ou não. Ambos países fizeram algo que impressionou, enfureceu, aborreceu ou maravilhou as demais nações — e isso reverteu em enorme prestígio.
Ficam evidentes as deficiências do regime global de paz e segurança
Se após quase dez anos um regime internacional se vê absolutamente incapaz de lidar com o “dossiê” nuclear iraniano, fazendo avanços insignificantes e oferecendo perspectivas futuras pouco encorajadoras, há grande chance de que algo esteja profundamente errado com esse regime. Essa percepção se fortalece ao verificarmos que dois outsiders, Brasil e Turquia, foram capazes de realizações significativas onde outros falharam (ou sequer tentaram).
Haverá sempre espaço para o duvidoso argumento de que Brasil e Turquia foram ludibriados pela República Islâmica, como parte de enganoso processo destinado somente a ganhar tempo. Implícita a este argumento é a visão de que países como Brasil e Turquia devem deixar este assunto para os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, mais a Alemanha, países supostamente mais “qualificados” e aptos a se engajarem nessas negociações (“saiam do ‘playground’ e dêem lugar para os meninos mais crescidos!”). Quase sempre o argumento funda-se em duas premissas altamente questionáveis:
1) A República Islâmica é um regime intrinsecamente maléfico e insano, circunstância que leva o Irã a agir invariavelmente imbuído de má-fé e o impede de agir como um integrante civilizado em meio ao concerto das nações;
2) A condução dos assuntos mais importantes da agenda internacional devem ser reservados exclusivamente aos “meninos crescidos”, membros permanentes do Conselho de Segurança, pois dispõem de mais experiência e sabem o que é o melhor para os demais.
No sistema internacional atual, vige regra não-escrita que confere uma espécie de privilégio aos P-5 sobre os temas de suprema importância relacionados à paz e segurança internacionais, ainda considerados nos dias de hoje “chasse gardée” dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança — prática costumeira refletindo estado de coisas ultrapassado, insustentável no longo prazo. O fracasso em lidar com o programa nuclear iraniano é sintoma da falência do sistema de governança global. Se o regime internacional de paz e segurança não permitir a países como Brasil e Turquia exercerem papéis na ordem internacional compatíveis com suas capacidades e aspirações nacionais, jamais será capaz de solucionar crises como o “dossiê” nuclear iraniano.
O Brasil se colocou em posição de maior poder
Nos telegramas da Embaixada americana em Brasília vazados pelo WikiLeaks enviados entre 2005 e 2009, achamos várias afirmações de diplomatas francamente críticas da política externa brasileira para Oriente Médio: “As posições pouco felizes do Brasil e seus pronunciamentos imprecisos em relação ao Oriente Médio turva as águas para a política e os interesses dos Estados Unidos no Oriente Médio.”, ou “Os lugares-comuns repletos de clichês repetidos pelos funcionários brasileiros são uma indicação de falta de compreensão sobre o Oriente Médio, o que é problemático para um governo que se propõe a ter envolvimento naquela região”. Destaco a que faz referência a viagem do Chanceler Amorim em 2005: “A viagem de Amorim criou confusão e enviou sinais ambíguos, além de evidenciar o perigo de um “grupo de apoio de retaguarda” [referência a proposta brasileira no contexto do processo de paz Israel-Palestina] inadvertidamente se tornar um “grupo de sabotagem da retaguarda”. Evidentemente, a última afirmação foi proferida antes do momento em que Lula resolveu iniciar sua aproximação, mas acredito que reflete perfeitamente o sentimento geral do Departamento de Estado em relação ao Brasil e sua “política iraniana”, imediatamente após a Declaração de Teerã.
Coisa curiosa — se alguém se coloca em posição de sabotar os planos mais caros da superpotência mundial, esse fato por si só tornará esse alguém poderoso. Quando você deixa de ser simples inconveniente e se torna um sério aborrecimento para o poder hegemônico, é bastante provável que você passe a ser considerado mais importante, e mais pessoas passarão a prestar atenção.
O Brasil desfrutará de melhor posição no caso de mudança do regime no Irã
Até mesmo figuras da oposição ao regime iraniano reconheceram que o acordo envolvendo a troca do urânio foi manobra positiva que poderia ter levado à melhora do cenário político do Irã. É possível que alguns iranianos tenham ficado ressentidos com Lula pelo fato de que ele, de certa forma, concedeu algum capital político a Ahmadinejad. No entanto, a grande maioria do povo do Irã vê o Brasil como um país fraterno, que jamais submeteu outros povos ao jugo do colonialismo e que compartilha diversos pontos de vista em uma série de temas da agenda internacional.
É lamentável que o Brasil seja entre os BRIC o único cuja dependência econômica e tecnológica em relação aos EUA é tão profunda que inviabiliza o estabelecimento de laços comerciais mais próximos com o Irã. Gigantes brasileiros como Petrobrás, Vale, Embraer ou Banco do Brasil se acovardam e não se atrevem a fazer negócios com o Irã, em razão de seu extensivo envolvimento com o mercado americano. Recentemente, a Petrobrás sucumbiu à pressão americana e fechou seu escritório em Teerã, suspendendo todas as suas atividades. Enquanto isso, Rússia, China, Índia e até mesmo alguns aliados europeus dos Estados Unidos encontraram maneiras de realizar seus negócios com o Irã, contornando a aplicação das sanções.
Após trinta anos de embargo econômico, com extensa frota decadente e sucateada de aeronaves, plataformas de petróleo e unidades FPSO, o Irã seria o mercado natural para empresas brasileiras como a Embraer, ou a construtora naval OSX, de Eike Batista. No dia em que as sanções contra o Irã forem levantadas, o Irã poderá facilmente se tornar no principal cliente dessas empresas, com a possibilidade de venda de vários bilhões em termos de manufatura de alto valor agregado.
Críticos assinalam que o Irã não é parceiro comercial relevante para o Brasil, afirmação absolutamente falsa que ignora uma série de fatos:
1. Até 2011, o Irã era o quinto maior cliente do agronegócio brasileiro. Na verdade, o Brasil supre quase metade das importações iranianas de alimentos. A participação brasileira no mercado iraniano de algumas commodities agrícolas como açúcar, carne bovina, frango, soja, milho e óleo vegetal é superior a 50%. O comércio de alimentos entre os dois países é certamente estratégico, especialmente para o Irã, que depende pesadamente do Brasil para assegurar sua segurança alimentar.
2. O intercâmbio comercial total (US$ 2.1 bi, em 2010) é praticamente equivalente ao volume de exportações brasileiras para o Irã, já que o volume de importações brasileiras do Irã é insignificante (cerca de US$ 5 mi). Não creio que o Brasil apresente tamanho superávit commercial (99,9%) com nenhum outro país do mundo.
3. Não fosse a subserviência das companhias brasileiras frente às diretrizes financeiras impostas por Washington, o comércio bilateral Brasil-Irã poderia facilmente alcançar cifras entre US$ 3 e 10 bi.
4. O Irã é provavelmente o maior mercado potencial no mundo nos setores de aviação civil, construção naval, mineração, serviços para indústria petrolífera e compras governamentais — não apenas para as já citadas Petrobrás, Vale, Embraer e EBX — mas também para as grandes empreiteiras Odebrecht, Camargo Correa, Andrade Gutierrez e Queiroz Galvão; outras representantes da indústria pesada (Usiminas, Gerdau, Votorantim) e empresas brasileiras na área de software e automação industrial.
No plano político, a eleição de Dilma Roussef parece ter esfriado as relações Brasil-Irã. Infere-se que isso decorre da sensibilidade que temas de direitos humanos têm para a Presidenta, em razão de sua trajetória pessoal, o que a levaria a rechaçar tentativas de aproximação da República Islâmica. No plano econômico, comércio bilateral decresce rapidamente diante da incapacidade brasileira de driblar as sanções unilaterais americanas e européias.
O desafio que se coloca é o de se formular uma política para o Irã — país que o Brasil não pode se dar ao luxo de ignorar se realmente tem aspirações a uma vaga permanente no Conselho de Segurança.

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