do Uol notícias Coluna do Noam Chomsky
E dificilmente é preciso mais do que um dia em Gaza para sentir como é tentar sobreviver na maior prisão a céu aberto do mundo, onde cerca de 1,5 milhão de pessoas, em uma faixa de terra de aproximadamente 360 quilômetros quadrados, são submetidas a terror aleatório e punição arbitrária, sem nenhum propósito a não ser humilhar e degradar.
Essa crueldade visa assegurar que as esperanças palestinas por um futuro decente sejam esmagadas, e que o apoio global esmagador por um acordo diplomático que conceda direitos humanos básicos seja anulado. A liderança política israelense ilustrou dramaticamente esse compromisso nos últimos dias, alertando que “enlouquecerá” caso os direitos palestinos recebam até mesmo um reconhecimento limitado pela ONU.
Ataques aéreos atingem faixa de Gaza
Foto 10 de 13 - 24.out.2012 - Soldado israelense analisa danos em carro danificado por foguete disparado por militantes palestinos da Faixa de Gaza. Esta é a segunda rodada de ataques aéreos em dois dias na região Mais Jack Guez/AFP
Essa ameaça de “enlouquecer (“nishtagea”) –isto é, lançar uma resposta dura– é profundamente enraizada, remontando os governos trabalhistas dos anos 50, juntamente com o “Complexo de Sansão” relacionado: Se formos frustrados, nós derrubaremos as paredes do Templo à nossa volta.
Trinta anos atrás, líderes políticos israelenses, incluindo alguns “falcões”, apresentaram ao primeiro-ministro Menachem Begin um relatório chocante sobre como os colonos na Cisjordânia cometiam regularmente “atos terroristas” contra os árabes dali, com total impunidade.
Enojado, o proeminente analista político-militar Yoram Peri escreveu que a tarefa do exército israelense, ao que parecia, não era defender o Estado, mas sim “demolir os direitos de pessoas inocentes só porque são araboushim (um epíteto racial rude) vivendo em territórios que nos foram prometidos por Deus”.
Os moradores de Gaza foram vítimas de uma punição particularmente cruel. Há 30 anos, em seu livro de memórias “The Third Way”, Raja Shehadeh, um advogado, descreveu a tarefa impossível de tentar proteger os direitos humanos fundamentais dentro de um sistema legal projetado para assegurar o fracasso, e sua experiência pessoal como um “samid”, “um inabalável”, que assistiu sua casa ser transformada em uma prisão por uma ocupação brutal sem poder fazer nada, mas que de algum modo “suportava”.
De lá para cá, a situação se tornou muito pior. O Acordo de Oslo, celebrado com muita pompa em 1993, determinava que Gaza e a Cisjordânia são uma única entidade territorial. Naquela época, os Estados Unidos e Israel já tinham iniciado seu programa para separar Gaza e a Cisjordânia, para bloquear um acordo diplomático e punir os araboushim em ambos os territórios.
A punição aos moradores de Gaza se tornou ainda mais severa em janeiro de 2006, quando eles cometeram um grande crime: eles votaram “errado” na primeira eleição livre no mundo árabe, elegendo o Hamas.
Exibindo seu “anseio pela democracia”, os Estados Unidos e Israel, apoiados pela tímida União Europeia, impuseram imediatamente um sítio brutal, juntamente com ataques militares. Os Estados Unidos recorreram ao seu procedimento operacional padrão quando uma população desobediente elege o governo errado: eles prepararam um golpe militar para restaurar a ordem.
Os moradores de Gaza cometeram um crime ainda maior um ano depois, ao impedirem a tentativa de golpe, levando a uma forte escalada do sítio e dos ataques. Eles culminaram no final de 2008 e início de 2009, com a Operação Chumbo Fundido, um dos usos mais covardes e perversos de força militar na memória recente: uma população civil indefesa, presa, foi submetida a um ataque impiedoso por um dos sistemas militares mais avançados do mundo, que emprega armas americanas e é protegido pela diplomacia americana.
É claro, havia pretextos – sempre há. O habitual, apregoado quando necessário, é a “segurança”: neste caso, contra os foguetes caseiros de Gaza.
Em 2008, uma trégua foi estabelecida entre Israel e o Hamas. Nenhum foguete do Hamas foi disparado até que Israel rompeu a trégua sob cobertura da eleição americana em 4 de novembro, invadindo Gaza sem nenhum motivo e matando meia dúzia de membros do Hamas.
O governo israelense foi aconselhado por suas mais altas autoridades de inteligência que a trégua poderia ser renovada por meio do alívio do bloqueio criminoso e com o fim dos ataques militares. Mas o governo de Ehud Olmert –supostamente uma “pomba”– rejeitou essas opções, recorrendo à sua imensa vantagem na violência: a Operação Chumbo Fundido.
Raji Sourani, natural de Gaza e um defensor dos direitos humanos respeitado internacionalmente, analisou o padrão de ataque da Operação Chumbo Fundido. O bombardeio era concentrado no norte, visando civis indefesos nas áreas mais densamente povoadas, sem nenhuma razão militar possível. A meta, sugere Sourani, talvez fosse empurrar a população intimidada para o sul, para perto da fronteira egípcia. Mas os samidin permaneceram no lugar.
Outra meta poderia ser empurrá-los para além da fronteira. Desde o início da colonização sionista foi argumentado que os árabes não tinham motivo real para estarem na Palestina: eles poderiam ser felizes em qualquer outro lugar e deveriam partir –educadamente “transferidos”, como sugeriram as “pombas”.
Isso certamente é motivo de preocupação para o Egito, e talvez o motivo para o país não abrir sua fronteira livremente para os civis, nem mesmo para os suprimentos desesperadamente necessários.
Sourani e outras fontes com conhecimento observaram que a disciplina dos samidin esconde um barril de pólvora que pode explodir a qualquer momento, inesperadamente, como a primeira Intifada em Gaza em 1987, após anos de repressão.
Uma impressão necessariamente superficial após passar vários dias em Gaza é admiração, não apenas pela capacidade de seus moradores de prosseguir com suas vidas, mas também com a vibração e vitalidade dos jovens, particularmente na universidade, onde participei de uma conferência internacional.
Mas é possível detectar sinais de que a pressão pode estar se tornando insuportável. Relatos indicam que há uma crescente frustração entre os jovens –um reconhecimento de que sob a ocupação americana-israelense o futuro não lhes reserva nada.
Gaza tem a aparência de um país de Terceiro Mundo, com bolsões de riqueza cercados por pobreza abjeta. Mas não é subdesenvolvida. Em vez disso, ela é “desdesenvolvida”, e de modo sistemático, tomando emprestado o termo cunhado por Sara Roy, a principal especialista acadêmica em Gaza.
A faixa de Gaza poderia ter se tornado uma região mediterrânea próspera, com rica agricultura e uma florescente indústria pesqueira, praias maravilhosas e, como foi descoberto há uma década, com boas perspectivas de amplas fontes de gás natural dentro de suas águas territoriais. Por coincidência ou não, foi quando Israel intensificou seu bloqueio naval. As perspectivas favoráveis foram abortadas em 1948, quando a faixa teve de absorver a enxurrada de refugiados palestinos que fugiam em terror ou foram expulsos à força do que se tornaria Israel –em alguns casos meses depois do cessar-fogo formal. As conquistas de Israel em 1967 e suas consequências desferiram golpes adicionais, com os crimes terríveis prosseguindo até hoje.
Os sinais são fáceis de ver, mesmo em uma breve visita. Sentado em um hotel próximo do litoral, é possível ouvir o fogo de metralhadora das canhoneiras israelenses expulsando os pescadores das águas territoriais de Gaza e de volta para terra, os forçando a pescarem em águas altamente poluídas por causa da recusa americana e israelense de permitir a reconstrução dos sistemas de tratamento de esgoto e de energia que eles destruíram.
O Acordo de Oslo continha planos para duas usinas de dessalinização, uma necessidade nessa região árida. Uma, uma instalação avançada, foi construída: em Israel. A segunda é em Khan Yunis, no sul de Gaza. O engenheiro encarregado em KhanYunis explicou que a usina foi projetada para que não possa usar água do mar, mas sim dependa de águas subterrâneas, um processo mais barato que degrada ainda mais o aquífero limitado, garantindo problemas severos no futuro.
A oferta de água ainda assim é severamente limitada. A Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (Unrwa, na sigla em inglês), que cuida dos refugiados, mas não dos demais moradores de Gaza, divulgou recentemente um relatório alertando que os danos ao aquífero podem em breve se tornar “irreversíveis”, e que sem uma ação rápida, Gaza pode deixar de ser um local habitável em 2020.
Israel permite a entrada de concreto para projetos da Unrwa, mas não para os moradores de Gaza envolvidos nos grandes esforços de reconstrução. O equipamento pesado limitado permanece em grande parte ocioso, já que Israel não permite materiais para reparo.
Tudo isso faz parte do programa geral que Dov Weisglass, um conselheiro do primeiro-ministro Olmert, descreveu depois que os palestinos não seguiram as ordens nas eleições de 2006: “A ideia”, ele disse, “é submeter os palestinos a uma dieta, mas não deixá-los morrer de fome”.
Recentemente, após vários anos do esforço, a organização israelense de direitos humanos Gisha teve sucesso em obter uma ordem judicial para que o governo divulgue seus documentos detalhando os planos para a “dieta”. Jonathan Cook, um jornalista baseado em Israel, os resumiu: “As autoridades de saúde forneceram cálculos do número mínimo de calorias necessárias para os 1,5 milhão de habitantes de Gaza não ficarem desnutridos. Esses números foram então transformados em caminhões de comida que Israel supostamente permite que entrem diariamente –uma média de apenas 67 caminhões, muito menos da metade do mínimo necessário– em Gaza. Em comparação, eram mais de 400 caminhões antes do início do bloqueio”.
O resultado da dieta imposta, observa o acadêmico de Oriente Médio, Juan Cole, é que “cerca de 10% das crianças palestinas em Gaza com menos de 5 anos tiveram seu crescimento atrofiado pela desnutrição. (...) Além disso, a anemia é disseminada, afetando mais de dois terços das crianças pequenas, 58,6% das crianças em idade escolar e mais de um terço das mães grávidas”.
Sourani, o defensor de direitos humanos, observa que “o que é preciso ter em mente é que a ocupação e o cerco absoluto é um ataque contínuo à dignidade humana da população de Gaza, em particular, e de todos os palestinos, em geral. É uma degradação, humilhação, isolamento e fragmentação sistemática da população palestina”.
Essa conclusão foi confirmada por muitas outras fontes. Na “The Lancet”, uma importante revista médica, Rajaie Batniji, um médico visitante de Stanford, descreve Gaza como “uma espécie de laboratório para observar a ausência de dignidade”, uma condição que tem efeitos “devastadores” no bem-estar físico, mental e social.
“A vigilância constante do céu, a punição coletiva por meio do bloqueio e do isolamento, a invasão de lares e das comunicações, e as restrições a aqueles que tentam viajar, casar ou trabalhar tornam difícil viver uma vida digna em Gaza”, escreve Batniji. Os araboushim precisam ser ensinados a não levantarem suas cabeças.
Havia esperança de que o novo governo de Mohammed Mursi no Egito, que é menos escravizado a Israel do que a ditadura de Hosni Mubarak apoiada pelo Ocidente, poderia abrir a Travessia de Rafah, o único acesso de Gaza ao exterior que não está sujeito ao controle israelense direto. Houve uma leve abertura, mas não muito.
A jornalista Leila el Haddad escreve que a reabertura sob Mursi “é simplesmente um retorno ao status quo de anos anteriores: apenas os palestinos portando identidades de Gaza aprovadas pelos israelenses podem usar a Travessia de Rafah”. Isso exclui um grande número de palestinos, incluindo a própria família de El Haddad, onde apenas um cônjuge tem uma carteira de identidade.
Além disso, ela continua, “a travessia não leva à Cisjordânia, nem permite o transporte de bens, que são restringidos às travessias controladas pelos israelenses e estão sujeitos às proibições a materiais de construção e exportação”.
A Travessia de Rafah restrita não muda o fato de “Gaza permanecer sob forte sítio marítimo e aéreo, e permanecer fechada para capitais culturais, econômicos e acadêmicos palestinos do restante dos territórios ocupados por Israel, em violação às obrigações americanas e israelenses segundo o Acordo de Oslo”.
Os efeitos são dolorosamente evidentes. O diretor do hospital de Khan Yunis, que também é o chefe de cirurgia, descreve com fúria e paixão a falta até mesmo de medicamentos, o que deixa os médicos impotentes e os pacientes em agonia.
Uma jovem relata sobre a doença de seu pai falecido. Apesar do orgulho dele por ela ter sido a primeira mulher no campo de refugiados a obter um diploma avançado, ela diz, “ele faleceu depois de seis meses de luta contra um câncer, aos 60 anos”.
“A ocupação israelense lhe negou a permissão para receber tratamento em hospitais israelenses. Eu tive que suspender meus estudos, meu trabalho e minha vida para ficar ao lado de seu leito. Todos nós ficamos, incluindo meu irmão, o médico, e minha irmã, a farmacêutica, impotentes e sem esperança, assistindo seu sofrimento. Ele morreu durante o bloqueio desumano de Gaza em meados de 2006, com muito pouco acesso ao serviço de saúde.”
“Eu acho que a sensação de impotência e desesperança é o pior sentimento que um ser humano pode sentir. Ele mata o espírito e parte seu coração. Você pode lutar contra a ocupação, mas não pode lutar contra seu sentimento de impotência. Não dá nem mesmo para dissolver esse sentimento.”
Um visitante a Gaza não pode deixar de se sentir enojado com a obscenidade da ocupação, somada com a culpa, porque está dentro de nosso poder colocar um fim a esse sofrimento e permitir que os samidin tenham as vidas de paz e dignidade que merecem.
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