Resumo:
O objetivo deste artigo é propor uma breve revisão da idéia de “Estado mínimo” e
também mostrar que ela, que subsidia ideologicamente o projeto neoliberal, é
uma noção abstrata que não explica o que acontece com o capitalismo em sua
fase atual.
Introdução: o resgate das idéias liberais
Para Anderson (1995: 9), O Caminho da Servidão (1946), de Friedrich
Hayek, escrito em 1944, marca o nascimento do neoliberalismo na Europa e
na América do Norte. Neste texto, Hayek firma-se contra o planejamento
econômico coletivista do Estado, predominante, segundo o autor, nas
sociedades alemã e italiana, além das sociedades socialistas, no período que
antecedia e durante o próprio transcurso da Segunda Guerra Mundial.
Resgatando o liberalismo utilitarista de John Stuart Mill, Hayek defende o
que chama de “Regime da Lei”, como limite para a intervenção do governo
na sociedade.Sob esse regime, “o governo limita-se a fixar regras
determinando as condições em que podem ser usados os recursos disponíveis
∗ Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Economia Política da PUC-SP e
membro do NEILS.
e deixando aos indivíduos a decisão sobre os fins a que esse serão aplicados”
(Hayek, 1946: 116). Este “Regime” sustenta-se em uma estrutura permanente
de leis, às quais o governo vincula suas ações por meio de normas anunciadas
antecipadamente e que permitem aos indivíduos preverem com um razoável
grau de acerto, a forma como as autoridades se comportarão em cada
circunstância. Dentro desse “referencial” cada um pode realizar seu próprio
planejamento.
Por outro lado, o chamado planejamento econômico coletivista
pressupõe o governo dirigindo diretamente o emprego dos meios de
produção para fins específicos, o que inviabiliza a criação de regras formas de
caráter geral que apenas referendam as ações individuais. “Quando o governo
tem de resolver quantos porcos é necessário criar, quantos ônibus cumpre
pôr em circulação, (...) ou a que preço devem ser vendidos os sapatos, essas
decisões não podem ser deduzidas de princípios formais nem estabelecidas
com antecipação para longo períodos. Dependem inevitavelmente das
circunstâncias ocasionais, e ao tomar tais decisões será sempre necessário
balançar os interesses de várias pessoas e grupos. No final serão as opiniões
de alguém que resolverão quais são os interesses predominantes” (Hayek,
1946: 118).
Avançando no tempo, pouco mais de trinta anos após O Caminho da
Servisão, um grupo de cidadãos privados da Europa, E.U.A e Japão,
encomendam um trabalho com a finalidade de avaliar os problemas de
governabilidade que essas sociedades estavam enfrentando sob o regime da
democracia representativa. Michel Crozier, Samuel P. Huntington e Joji
Watanuki elaboraram textos analisando as situações específicas de seus países
ou região, que deram origem à publicação do relatório The crisis of democracy
(1975).
O contexto histórico anunciava o fim de uma fase expansionista do ciclo
capitalista iniciada no pós-guerra. Dentro do paradigma elaborado por
Kondratieff, completavam-se os trinta anos da fase ascendente, à que deveria
sobrevir, pelo mesmo paradigma, também cerca de trinta anos de estagnação
e crise. Com certeza a obra e Hayek não ocupou maior espaço no debate da
Economia Política nesse período, porque o sucesso do intervencionismo
keynesiano desnorteou o “sendero” liberal.
Mas, a partir de meados dos anos setenta estavam dadas as condições
para o resgate das idéias liberais, se não como um ideal esposado com fervor,
pelo menos como suporte a uma vital empreitada: recuperar o ânimo do
capitalismo via dinamização da economia de mercado (Anderson, 1995: 15).
Tem-se de fato um ponto de inflexão, quer do ponto de vista do andamento
do processo de acumulação do capital, quer do ponto de vista do debate
sobre a crise sobre as perspectivas do capitalismo.
The crisis of democracy surge como um referencial para a conduta neoliberal.
À exceção do caso do Japão, onde,àquela altura dos acontecimentos era
possível fazer ume leitura que captasse uma relativa estabilidade democrática
(graças a aspectos culturais e organizacionais específicos daquela sociedade
capitalista), sobre a democracia dos Estados Unidos e sobre as democracias
da Europa Ocidental, as conclusões não eram muito animadoras.
SegundoCrozier (Crozier et alii, 1975: cap. II), os países desenvolvidos
apresentam uma significativa complexificação do tecido social, acentuando o
problema do controle social sobre o indivíduo. As reivindicações dos
cidadãos criam contradições, na medida em que as pressões por medidas que
venham a resolver seus problemas criam também maior necessidade de
controle social, o que é rejeitado pela hierarquia dos valores prevalecentes. O
crescimento econômico, apesar do ganho material obtido, exacerbou as
tensões, em razão das expectativas criadas e de uma conseqüente
desagregação por força de mudanças aceleras.
Do ponto de vista cultural, ainda segundo Crozier, as instituições
tradicionais entraram em colapso, também devido aos efeitos desagregadores
das mudanças, repercutindo num crescimento da liberdade de escolha do
indivíduo, típico de uma situação em que tudo parece possível. Essa visão de
que o crescimento econômico vivenciado pelo capitalismo no pós-guerra, sob
o regime da democracia representativa, conduziu a um comprometedor
estágio de ingovernabilidade, pode ser resumida na seguinte frase de
Huntington: “a vitalidade da democracia nos Estados Unidos nos anos
sessenta produziu um incremento substancial na atividade governamental e
um substancial decréscimo na autoridade governamental” (Crozier et alii,
1975: 64).
A concepção do “Estado mínimo”
Embora em diferentes contextos históricos, O Caminho da Servidão e The
crisis of democracy ensejam um objetivo comum: resgatar a concepção de Estado
que caracterizou o pensamento liberal dos séculos XVIII e XIX e que
ressurge no cenário atual encarnada em uma emblemática expressão – Estado
mínimo.
No mesmo vagalhão de The crisis..., em 1974, Robert Nozick define
peremptoriamente: “Minhas conclusões principais sobre o Estado são que
um Estado mínimo (grifo do autor), limitado às estreitas funções de proteção
contra a violência, o roubo e a fraude, ao cumprimento de contratos, etc., se
justifica; que qualquer Estado mais abrangente violaria o direito das pessoas
de não serem obrigadas a fazer certas coisas e, portanto, não se justifica; que
o Estado mínimo é inspirador, assim como correto” (Nozick, 1990: 7).
A intenção maior deste trabalho é evidenciar que a versão contemporânea
do Estado liberal clássico não passa de um mito, uma falsa representação da
realidade. Ainda que tal concepção pudesse portar o status de um ideal à
época de Adam Smith ou de John Stuart Mill, a história do desenvolvimento
capitalista lançou um sopro de “lobo mau” sobre o castelo de cartas
construído sobre os alicerces do jusnaturalismo1 e do utilitarismo2.
Para Norberto Bobbio, o pressuposto filosófico do Estado liberal é
“doutrina dos direitos do Homem elaborada pela escola do direito natural (ou
justnaturalismo)” (Bobbio, 1998: 11). Segundo essa doutrina, o Estado liberal
é visto como um Estado limitado, estando seus limites estabelecidos em dois
níveis: limites quanto aos poderes e limites quanto às funções. O Estado de
direito é a noção que corresponde à limitação dos poderes. O Estado
mínimo, segundo Bobbio, é a noção corrente para representar o limite das
funções do Estado dentro da perspectiva da doutrina liberal.
A concepção de Adam Smith sobre o Estado funda-se, como, de resto,
sua obra de Economia Política, na doutrina jusnaturalista. John Stuart Mill
destaca-se como um liberal vinculado ao utilitarismo. Vale recuperar alguns
traços essenciais do pensamento daqueles autores sobre a concepção de
Estado.
Smith atribui funções clássicas ao Estado,d e acordo com o
desenvolvimento histórico, a partir do estágio social primitivo da caça,
passando pelo pastoreio até atingir o período de desenvolvimento das
manufaruras3. Nas sociedades de caçadores, o homem cumpre inclusive as
funções de guerreiro, dispensando o Estado de despesas com a guerra. Com
o desenvolvimento social, evolui a divisão social do trabalho e no estágio de
manufaturas, trabalhadores do campo ou das oficinas, para serem
preservados em suas funções, contam com as despesas do Estado para
financiar os que militam na área da defesa social.
No limite da atuação do Estado, Smith prevê três intervenções clássicas:
financiar, através de gastos, a força militar para proteger a sociedade contra a
1 “O jusnaturalismo é uma doutrina segundo a qual existe e poder ser conhecido um
direito natural (jus naturale), ou seja, um sistema de normas e conduta
intersubjetiva, diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado (direito
positivo)” (Bobbio et alii, 1992).
2 O utilitarismo, que viria a ser a base da teoria do valor assumida pela “escola
neoclássica” no último quarto do século XIX, como “teoria do valor-utilidade”, pensava
o indivíduo sendo guiado pelos sentidos, buscando maximizar sua felicidade através de
um processo de escolha entre as experiências que geram prazer e as que geram
sofrimento. Esse entendimento, que configurou um sistema de ética social em
sucessão ao jusnaturalismo está vinculado aos nomes de Jeremy Bentham e James
Mill.
3 Sobre a análise de Smith a respeito do papel do Estado no capitalismo, veja-se Smith
(1983: Livro Quinto, capítulo I).
invasão estrangeira; proteger os membros da sociedade contra a injustiça que
possa vir a ser cometida por outros membros; manter instituições e obras
públicas que proporcionam vantagens para a sociedade mas que não
oferecem uma possibilidade de lucro que compense a atividade privada.
Os principais trabalhos de John Stuart Mill revelam uma preocupação
central de explicitar e propagar os princípios do liberalismo. Mais na linha
doutrinária, podem ser citados: Sobre a Liberade (1991) e Considerações Sobre o
Governo Representativo (1981), obras publicadas em 1859 e 1861,
respectivamente. Na linha de Economia Política, destaca-se o texto Princípios
de Economia Política (1983), que data de 1848.
Para Mill, a soberania da individualidade é um fim em si mesma e o
respeito a ela deve considerar a liberdade de pensar, discutir e agir. Este
respeito estabelece o próprio limite da atuação do Estado, que vai até onde
este último pode estimular o desenvolvimento dos indivíduos. Segundo Mill,
“um Estado que amesquinha seus homens, ...ainda que para propósitos
benéficos, descobrirá que com homens pequenos nada grande se pode fazer
realmente” (Mill, 1991: 158).
As funções que cabem ao Estado realizar devem obedecer a um rígido
critério para que possam ser classificadas como tal: devem ser consideradas
necessárias. As que assim não se enquadrarem, são tidas como opcionais,
categoria em que Mill congrega uma série de intervenções clássicas, como o
protecionismo alfandegário e os subsídios para a regulação dos preços. Duas
outras restrições são ainda consideradas no sentido de limitar a ação do
Estado. A primeira delas estabelece que, em hipótese nenhuma, o Estado ou
qualquer outra pessoa deve interferir na individualidade de quem atingiu o
uso da razão. Na segunda restrição Mill chama a atenção para o fato de que o
governo já conta com uma considerável sobrecarga de atividades e qualquer
tarefa adicional causará um grande incômodo.
As possibilidades abertas à intervenção do Estado são restritas. A
primeira exceção que Mill concede diz respeito à educação e ainda assim,
ressalvando que a atividade educacional não deve ser um monopólio estatal e
quando o indivíduo adquirir um certo nível de instrução, deve libertar-se do
apoio que recebeu para alcançá-lo.
O mito do “Estado mínimo”
A crença do Smith na “mão invisível”, na capacidade auto-reguladora do
mercado, bem como a crença de Mill sobre a validade da “lei de Say”,
permitiram-lhes formulações acerca do desenvolvimento capitalista que não
rompiam com os limites do Estado Mínimo. As mesmas facilidades não
foram encontradas porThomas Robert Malthus, a partir do momento em que
o mesmo visualiza problemas de realização que deveriam ser “contornados”
pelo Estado. Numa célebre passagem, Malthus apregoa: “É dever so
governos evitar a guerra, quando possível; mas se ela é inevitável, é dever dos
governos regular as despesas de modo a produzir a menor flutuação possível
da demanda” (Malthus, 1983: 268).
O questionamento de Malthus à “lei de Say”, apesar do amplo debate que
provocou na época4, não teve a força suficiente para superá-la com uma
alternativa crítica conseqüente. Isto ocorreria com Karl Marx na segunda
metade do século XIX. Sem a intenção de resgatar o amplo debate que
envolve a crítica de Marx à Economia Política clássica, em especial aos
postulados que sustentam a “lei de Say”, Marx foi à raiz do problema
identificando, nas leis imanentes que regem o capitalismo, contradições que
atribuíam a esse regime de produção o atributo de portador da possibilidade
geral da crise.
Segundo Marx, “a possibilidade geral das crises está na própria
metamorfose do capital, a separação, no tempo e no espaço, da compra e da
venda. Porém, esta nunca é causa das crises (...) Se se pergunta qual é sua
causa, se quer saber porque sua forma abstrata, a forma de sua possibilidade,
se converte de possibilidade em realidade” (Marx, 1975: 441).
A Economia Política Clássica, nas vozes de Mill, Ricardo e Jean-Baptiste
Say, enxergava a instantaneidade do circuito compra e venda com base em
uma concepção restrita de dinheiro, ao qual cabia fundamentalmente o papel
de meio de troca, ou veículo de valor. A partir do momento em que Marx
elabora uma concepção de dinheiro que emerge das relações de produção
capitalista, da necessidade intrínseca ao processo de valorização do capital de
dispor de um “equivalente geral” para sancionar a contradição entre valor de
uso e valor de troca, e sancionar a própria circulação ampliada de
mercadorias, fica evidenciada a fratura na unidade compra e venda sugerida
pelos clássicos.
A possibilidade geral da crise também é identificada por Marx, em O
Capital, por meio da análise da “lei da tendência decrescente da taxa de lucro”,
deduzida do conflito imanente entre capital e trabalho, que promove, ao
longo do processo de acumulação capitalista, uma progressiva negação do
trabalho vivo. Por decorrência, a elevação da composição orgânica do capital
impõe pressões no sentido de reduzir a taxa de lucro, estabelecendo uma
preocupação permanente do capital em defender-se dessa ameaça, sem
contudo livrar-se definitivamente do mal. Segundo o próprio Marx, “a
produção capitalista aspira constantemente a superar seus limites imanentes,
4 Os Princípios foram publicados em 1820 e suscitaram um acalorado debate entre
Malthus e David Ricardo.
mas só pode superá-los recorrendo a meios que voltam a levantam contra ela
estes mesmos limites, todavia com maior força” (Marx, 1975a II/248).
A possibilidade geral responde pelo conteúdo das crises, enquanto as
situações concretas através das quais as crises se manifestam, e são
denominadas por Marx causas reais, configuram a forma das crises.
Do ponto de vista deste artigo, a importância dessa contribuição de Marx
sustenta o argumento de que, como algo imanente, a possibilidade geral da
crise impõe uma condição de inevitabilidade à regulação capitalista. A
natureza desta regulação será determinada pela forma como a crise de
manifesta. A crise pode requerer um Estado nos moldes do intervencionismo
keynesiano voltado para a restauração do nível de demanda efetiva ou, ao
contrário, um Estado intervencionista aos moldes dos ditames neoliberais
com a portentosa missão de reanimar a economia de mercado, Em qualquer
das hipóteses, não se tem o Estado mínimo que a propaganda neoliberal de
tanto se vale para impingir uma virulenta política anti-social, considerada tão
vital para a recuperação da economia capitalista.
O objetivo de resgatar a dinâmica da economia de mercado requer um
Estado extremamente forte, ainda que suas ações causem a impressão de que
ele está se retirando da cena. Para Anderson (1995), a consecução desse
objetivo passa pela realização das seguintes metas: conter a inflação, elevar os
lucros, gerar desemprego e acentuar as desigualdades. As tarefas
compreendidas por essas metas são exemplares da amplitude da ação do
Estado: desregulamentação da economia; articulação da compromissos
perante organismos financeiros internacionais destinados a garantir a
estabilidade monetário e o pagamento da dívida externa; gestão do conflito
entre as frações capitalistas envolvidas no processo de abertura da economia.
Estas são algumas das “frentes de trabalho” de um Estado que os setores
mais conservadores da sociedade sonham ser o Estado mínimo. Todo o
esforço do Estado em desvencilhar-se de empresas pouco atraentes em
termos de rentabilidade e que muito é explorado ideologicamente por aqueles
mesmos setores, se desvanece nas mirabolantes cifras que se contabilizam na
prática de socorro ao sistema financeiro. De um lado, premiam-se os
corruptos e, de outro, salvaguarda-se o dinheiro em seu papel de equivalente
geral. O mesmo dinheiro que se interpõe no circuito compra e venda e que
está na raiz de todo esse qüiproquó.
Bibliografia
ANDERSON, Perry (1995), “Balanço do neoliberalismo”, in Pósneoliberalismo
– As Políticas sociais e o Estado democrático. São Paulo, Paz e
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