É fato que o balanço divulgado em 22 de abril registrou prejuízo de R$ 21,587 bilhões no ano passado. Porém, também é fato o impressionante volume de investimentos, de R$ 680 bilhões, feitos pela empresa de 2006, ano da descoberta do petróleo na camada Pré-sal, até 2014. Com tudo o que se diz sobre a Petrobras, ela mantém a capacidade de financiar seus investimentos com a geração operacional de caixa e de captar no mercado internacional e doméstico.
Ainda assim, o cenário de crise alimenta argumentos dos que estão sempre de prontidão para defender a privatização da empresa. E também daqueles que pregam o fim do modelo de partilha, em vigor desde 2010 para a exploração do Pré-sal, o qual garante uma parte muito mais expressiva das riquezas do petróleo para a União.
A mudança desse regime, que faz da Petrobras operadora única de todos os blocos e com participação mínima de 30% nas atividades de exploração e produção do Pré-sal, abriria espaço à entrada de novos competidores estrangeiros. Ao lado do fim da regra do conteúdo local, que estimula a indústria nacional, essa alteração é defendida por projetos de políticos do PSDB, DEM e PMDB, apresentados na Câmara e no Senado. Um deles é Projeto de Lei 131, do senador José Serra (PSDB-SP), que foi apresentado em março deste ano e já obteve parecer favorável na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ).
Não é exagero dizer que, como já afirmou a presidente Dilma Rousseff, a Petrobras sofre “ataques especulativos” vindos de todas as direções e que há muito interesse em jogo quando se propõe para o Pré-sal o modelo de concessão. Este é o regime em vigor hoje para as atividades na camada do Pós-sal, que envolvem maior risco exploratório, e pelo qual o petróleo se torna propriedade exclusiva da empresa concessionária, após os pagamentos feitos à União.
Vale a pena tentar entender o que está por trás dessas tentativas de mudar a natureza da Petrobras e dos seus contratos, à luz da geopolítica do petróleo.
Disputa global
Boa parte da dinâmica política global se constrói a partir de disputas por recursos naturais e fontes de energia. Hoje, apesar da crescente participação das energias renováveis, os combustíveis fósseis – petróleo, carvão mineral e gás natural – ainda representam 81% da matriz energética mundial (dados de 2011 da Agência Internacional de Energia – AIE). Continuam, portanto, no centro das disputas geopolíticas internacionais.
Assim, não se pode deixar de olhar para essa crise da Petrobras – a real e a tratada com lente de aumento por quem tem interesse de ver a empresa perder poder – sem considerar os grandes acontecimentos no campo do setor de óleo e gás no Brasil nos últimos anos e o crescimento da importância econômica do País, agora um “emergente”, na América do Sul e no mundo.
A descoberta do Pré-sal levou o País a se tornar um dos grandes produtores mundiais. Há estimativas de que os reservatórios passem de 60 bilhões de barris. E a produtividade segue em ritmo excelente: segundo a Petrobras, desde 2010, a média anual de produção diária do Pré-sal cresceu mais de 12 vezes, batendo em 11 de maio o recorde de 800 mil barris por dia de petróleo equivalente (petróleo e gás natural).
Como afirmou à Reuters o executivo-chefe da Shell, Ben van Beurden, “temos de olhar para o Brasil pelo potencial que existe. No momento, essa é talvez a área do mundo mais excitante para a indústria (de óleo e gás)”.
Aos olhos do mundo, não só o Brasil se revelou rico em petróleo, como passou a ser uma potência econômica regional que substituiu um alinhamento submisso por uma atuação mais soberana. Desde 2003, a política externa mudou, houve uma aposta estratégica nas relações de integração regional e na cooperação Sul-Sul.
Segundo estudo publicado pelo Centro de Altos Estudos “A projeção do Brasil na América do Sul e na África Subsaariana e o controle da Bacia do Atlântico Sul” (cap. 1 de “Dimensões estratégicas do desenvolvimento brasileiro – Brasil, América Latina e África: convergências geopolíticas e estratégias de integração (vol.3)”;), o Brasil atualmente é o ator regional mais importante no tabuleiro geopolítico da América do Sul, com presença expressiva também na América Central e no Caribe.
“Do ponto de vista econômico, a diferença entre o Brasil e o resto do continente aumentou geometricamente nos últimos anos: em 2001, o produto interno bruto (PIB) brasileiro girava em torno de US$ 550.000 milhões, a preços constantes, e era inferior à soma do produto dos demais países sul-americanos, que girava em torno de US$ 640 milhões na mesma época. Dez anos depois, essa relação mudou radicalmente: o PIB brasileiro cresceu e alcançou a cifra aproximada de US$ 2.500 bilhões, em 2011, enquanto o valor do produto bruto do resto da América do Sul era de cerca de US$ 1.600 bilhão, menos de 50% do PIB brasileiro”, escrevem os autores José Luis Fiori (coordenador), Raphael Padula e Maria Claudia Vater.
De acordo com eles, o foco da política externa brasileira se deslocou na última década para a América do Sul, mas as suas diretrizes estratégicas para o século 21 envolvem presença também no Atlântico Sul, na costa ocidental da África e na Antártida.
Esse é o entorno sobre o qual o Brasil se propõe a irradiar sua liderança, e boa parte dessa decisão se deve à descoberta das reservas de petróleo do Pré-sal dentro da plataforma marítima do Brasil e no Golfo da Guiné, na costa angolana.
Mar de oportunidades
O Atlântico Sul mostrou ter importantes recursos biológicos, minerais e energéticos tanto na costa brasileira – 95% das reservas totais de petróleo do Brasil e 85% de suas reservas de gás natural estão no mar, segundo a Agência Nacional do Petróleo, a ANP – como na africana, ou mesmo na sua zona de jurisdição internacional. Também é no Atlântico Sul que se dá 90% do comércio internacional do País, lembram os autores.
Porém, o mesmo trecho marítimo é controlado pelo poder naval britânico e norte-americano. Os EUA realizam exercícios periódicos no Atlântico Sul, e logo após as descobertas do Pré-sal reativaram a IV Frota Naval, famosa por perseguir submarinos nazistas durante a Segunda Guerra. A notícia desagradou aos governos latino-americanos, embora oficialmente o propósito seja o de dedicar-se a operações de paz e missões humanitárias.
Nesse cenário, a Petrobras representa um papel de destaque. Na América do Sul, a empresa só não atua na Guiana e no Suriname. À África, ela leva sua tecnologia de prospecção e exploração em águas profundas, considerada a mais eficiente do mundo, para buscar oportunidades na costa ocidental. Está presente em Angola, Benin, Gabão, Líbia, Namíbia e Tanzânia, e tem na Nigéria, maior fornecedora do petróleo importado pelo Brasil, onde explora poços em conjunto com a estadunidense Chevron e a francesa Total, a sua principal parceira.
“Hoje já se pode falar de uma nova corrida imperialista, cujo espaço preferencial será a África”, concluem os autores do estudo.
Nessa corrida, Brasil e Petrobras têm trunfos que podem preocupar outras nações e empresas petrolíferas, como a tecnologia de águas profundas e o esforço diplomático de estreitamento de relações com os países africanos, feito pelo governo brasileiro, com bons resultados.
Além disso, o Pré-sal brasileiro, que como o da África tem óleo leve e de alta qualidade, sob o modelo de partilha confere poderes à Petrobras e maiores ganhos ao Brasil. Ainda que sem deixar de ser excelente negócio para as concessionárias, o que ficou comprovado pelo anúncio da Shell da compra da inglesa BG por US$ 70 bilhões, principalmente por causa das atividades que esta desenvolve no Pré-sal brasileiro.
Oportunidades de negócios à parte, ter controle da produção e oferta do petróleo – ou autossuficiência energética – significa independência política e poder no sistema internacional: “(…) a energia é fator fundamental para as possibilidades de desenvolvimento socioeconômico”, afirma o estudo.
Esse é um prisma novo e esclarecedor pelo qual se pode ver a crise vivida pela Petrobras, as tentativas de enfraquecê-la e os ataques ao seu modelo de partilha.
http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/06/a-crise-da-petrobras-a-luz-da-geopolitica.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários são como afagos no ego de qualquer blogueiro e funcionam como incentivo e, às vezes, como reconhecimento. São, portanto muito bem vindos, desde que revestidos de civilidade e desnudos de ofensas pessoais.Lembrando que vc é o único responsável pelo que disser aqui. Divirta-se!
As críticas, mais do que os afagos, são bem vindas.