'Dá para pegar ele'
por: Saul Leblon
Um juiz estala os dedos, a ordem se propaga pelo dispositivo midiático conservador.
A ordem é disseminada por um colunista especializado na arte dos ganidos demarcatórios.
‘(O juiz) acha que dá para pegar ele’, uiva entre espasmos de ansiedade e sofreguidão.
A mensagem ganha diferentes versões no dispositivo midiático.
Contra Getúlio, Juscelino e Jango era Lacerda principalmente quem dava a cadência das senhas golpistas.
Lacerda agora é o jornalismo; os colunistas, em especial, seu autofalante mais exclamativo.
Ao ‘salve geral’ narrativas são adaptadas ao sotaque de cada público específico. Desde a mais crua, às colunas especializadas em dizer o mesmo com afetação pretensamente macroeconômica ou jurídica.
A mensagem é a mesma: ‘Dá para pegar ele’.
‘Ele’ é o troféu mais cobiçado, a cabeça a ser pendurada no espaço central da parede onde já figuram outras peças embalsamadas pelos taxidermistas a serviço da caçada ininterrupta do conservadorismo na história do país.
Mas falta a dele, uma cobiça acalentada pelos quase dez anos que remontam a 2005/ 2006.
‘Ele’?
Lula.
O metalúrgico que ascendeu ao posto de maior líder político do país desde Getúlio Vargas, e cuja morte política já foi uivada pela matilha um sem número de vezes.
De novo agora todos os latidos, mandíbulas, miras, gatilhos, patas, línguas espumosas, risos gordurosos, emboscadas e dardos convergem em sua direção.
Mas há uma novidade na sofreguidão dos latidos.
Erros cometidos em inéditos doze anos de poder do maior partido de trabalhadores da América Latina, emergiram com força do chão movediço da crise mundial, contra a qual os recursos da resistência do Estado brasileiro se esgotaram.
O problema principal não é o ajuste que sucedeu a isso.
Não é Dilma.
Seu governo, a composição, a política em curso refletem um flanco anterior mais grave que pode ser sintetizado no distanciamento orgânico entre ‘a caça’ e seu imenso entorno popular.
É esse distanciamento que o ajuste em curso espelha, ao mesmo tempo em que age para aprofunda-lo.
E é ele também que explica os ganidos em decibéis crescentes, o cheiro forte de urina demarcando o território conquistado no avanço ininterrupto do tropel.
Mas não sem dificuldade.
O ciclo iniciado em 2003 tirou algumas dezenas de milhões de brasileiros da pobreza; deu mobilidade a outros tantos milhões na pirâmide de renda.
A inclusão foi tão expressiva que sob a cortina de fogo impiedosa do monopólio midiático há quase uma década, acuado, ferido e enxovalhado noite e dia, sem espaço de resposta, Lula ainda figura como o nome que parte com 25% dos votos nas sondagens da corrida presidencial para 2018, contra 35% de Aécio Neves.
Mas a direita sabe que isso é pouco para ele reverter.
Com acesso diário à tevê hoje sonegado, ao rádio e ao debate num cenário econômico que dificilmente será pior do que o atual, os dez pontos da vantagem do tucano – segundo o Datafolha -- podem derreter em questão de dias.
Então é preciso liquidar a fatura hoje. Agora. Na janela de oportunidade entre o vácuo orgânico criado em torno da presa e a próxima temporada de imersão no oceano popular.
‘(O juiz) acha que dá para pegar ele’, telegrafa o colunista que alardeia intimidades com a caçada e objetivamente compõe o galope.
A disjuntiva ‘combate à corrupção’ versus ‘ impunidade’ serve para aspergir legalidade ao tiro ao alvo em marcha que busca a cabeça encomendada para figurar na parede dos abates ilustres de Getúlio, Jango, entre outros.
Passar a limpo a política brasileira?
Fosse essa a motivação a força-tarefa que hoje se esfalfa em caçar Lula cerraria fileiras para criar travas à presença do dinheiro grosso nas campanhas eleitorais.
Promoveria uma reforma capaz de dificultar siglas caça níqueis. Endossaria o clamor por uma democracia mais aberta à participação da população, ora resumida ao comparecimento esporádico às urnas.
Não, não é esse o objetivo.
A reforma de Cunha, talhada à sua imagem e semelhança, sacramenta a causa do apodrecimento da política e afastar o eleitor das decisões por intervalos maiores.
Ah, mas Lula fez lobby por empresas brasileiras...
Sim. E nisso o senador Roberto Requião foi definitivo enquanto os senadores do PT balbuciavam evasivas:
‘Criticam o Lula por trabalhar a favor de empresas brasileiras; elogiam o Serra por querer entregar nosso petróleo a empresas estrangeiras’, fuzilou, tiro seco e letal, o bravo parlamentar.
O país precisa de uma macroeconomia mais consistente?
Por certo.
Mas qual?
A dos sábios tucanos, reunidos no departamento econômico do Itaú, o BC do PSDB? Ou aquela recauchutada na Casa das Garças, com os mesmos ingredientes de sempre. Desregulação do mercado de trabalho e livre comércio, em linguagem acadêmica. Ou para ser um tanto mais direto: arrocho e entreguismo.
'O trade-off é mais liberalismo em troca de mais redistribuição', preferem os senhores elegantes de gravata italiana.
Pergunte-lhes onde foi que isso aconteceu?
Na Espanha? Na Grécia? Em Portugal? Nos EUA? Ou na Inglaterra, onde a gororoba é aplicada desde Thatcher (Blair incluso), e 250 mil foram às ruas no último sábado contra cortes em programas sociais promovidos pelo engomadinho Cameron (37% dos votos em escrutínio com abstenção de 40%)?
Menos Estado em troca de mais distribuição?
Então por que o motor da economia mundial engazopou e não pega nem com o tranco de liquidez de trilhões de dólares despejados pelo Fed e, agora, pelo tardio BCE?
Trinta anos que não se faz outra coisa a não ser desregular mercados urbi et orbi, e as grandes corporações mundiais estão sentadas em trilhões de dólares de liquidez.
Não investem.
Quem diz é a OCDE, não propriamente um organismo bolchevique.
A produtividade patina e grandes corporações dos EUA já destinaram US$ 903 bilhões este ano à recompra das próprias ações ou a dividendos milionários pagos à república dos acionistas, invertendo-se a destinação majoritária do lucro que deveria expandir o investimento produtivo.
O que falta para lubrificar a engrenagem emperrada?
Falta o que o Brasil tem, mas a boa ‘ciência econômica’ aqui -- com o incentivo do bravo jornalismo econômico -- acha indispensável liquidar: mercado de massa, horizonte de demanda, distribuição de renda, de bens e de infraestrutura.
A desregulação do mercado de trabalho e a destruição do pleno emprego -- vendidas como o clorofórmio capaz de combater as impurezas da macroeconomia lulopopulista, explicam no plano mundial por que essa é a mais longa, frágil e incerta convalescença de todas as crises capitalistas, desde 1929.
O massacre da desregulação do trabalho, na fórmula consagrada de empregos desqualificados, salários baixos e atrofia sindical, foi contrabalançado pelo inchaço do crédito nas últimas décadas.
Famílias assalariadas – a exemplo de Estados desidratados pelas reduções de impostos —foram buscar no endividamento aquilo que o emprego e a receita fiscal não mais proporcionavam.
Empréstimos às famílias cresceram três vezes mais rápido que o PIB no último meio século nos países ricos, diz a OCDE.
Criou-se uma contradição nos seus próprios termos: crédito em volume cada vez maior a tomadores cada vez mais descapacitados a pagá-lo.
Daí para as sub-primes que acenderam o pavio da explosão mundial era uma questão de tempo.
Quando o balão de oxigênio creditício travou, em 2008, sobrou o deserto do real.
Um imenso areal de mão de obra subempregada, trabalhadores em tempo parcial, dezenas de milhões de famílias endividadas, outros tantos milhões de lares sem condições sequer de prover o próprio sustento.
O mundo talhado pelo cinzel neoliberal abarca hoje mais de 200 milhões de desempregados –30 milhões adicionados só nesta crise; a fome está de volta à Europa; uma em cada quatro crianças vive em meio à pobreza na Inglaterra onde Cameron acaba de cortar mais 12 bilhões de libras dos programas sociais; 46 milhões de norte-americanos só comem com ajuda do governo, mas o Congresso neoliberal desautoriza Obama a elevar o salário mínimo, agora inferior ao da era Reagan.
Por isso a OCDE lamenta o onanismo de um capital que se autossatisfaz ejaculando com a recompra das próprias ações e distribuindo lucros celibatários a acionistas e diretores rentistas.
É essa a eficiência estratégica que se persegue? Um capitalismo que patina no próprio esperma, apartado da reprodução, alijado de ferramentas de Estado e de poder social para reconduzi-lo às finalidades sociais do desenvolvimento?
Os dados na mesa são claros.
Não há muito tempo para agir, nem são tantas as opções assim.
Há até algum consenso entre o mercadistas sensatos e a visão progressista.
Ambos concordam que o país vive o esgotamento de uma dinâmica econômica.
Há razoável convergência em relação ao motor que deve puxar o novo período: o investimento produtivo, um impulso industrializante liderado pelo pré-sal; os grandes projetos de infraestrutura.
Termina o espaço dos consensos.
O conservadorismo avalia que o legado recente é incompatível com o futuro desejado. Para nascer o ‘novo’ é preciso destruir o ‘velho’.
Parece schumpeteriano, é udenista puro.
A supremacia financeira deve purgar todo e qualquer vestígio de interesse nacional, público e social no manejo da economia.
O alvo da caçada, Lula, embolou tudo na última década.
Fortemente ancorada na ampliação do mercado de massa, a economia avançou apoiada em ingredientes daquilo que a emissão conservadora denomina ‘Custo Brasil’.
Um exemplo das dificuldades a retardar o avanço da matilha nessa frente?
A formalização da mão de obra.
Hoje ela encarece sobremaneira o lacto purga das demissões em massa, atrasando a purificação do metabolismo econômico.
O PSDB deixou o país com uma taxa de informalidade do emprego de 43,6%.
No ano passado esse percentual era de 29,5%.
Para demitir um operário com registro em carteira é preciso pagar todos os direitos legados por Vargas.
Eles foram limados parcialmente pela ditadura, mas fortalecidos na prática pelo ciclo de pleno emprego propiciado em 12 anos de governos do PT (que pegou o país com um desemprego tucano superior a 9%, quase 10% em 2003; cortou isso à metade).
É disfuncional. Custa caro faxinar a folha de pagamentos pós-PT.
Pior: ao recontratar, enfrenta-se o piquete de uma década de investimento para democratizar a educação.
Foram oito milhões de vagas do Pronatec e 1,6 milhão de vagas do Prouni e do Fies.
O avanço educacional barra o retrocesso significativo nas relações de trabalho: o jovem qualificado recusa a informalidade e o salário arrochado.
É preciso pendurar a cabeça do responsável por isso na parede; impedi-lo de retornar à Presidência ou o mercado não completará o longo ciclo de detox neoliberal requerido.
‘(O juiz) acha que dá par apegar ele’.
Essa é a determinação serviçal da Lava Jato, cuja mão de obra não se inibe em paralisar o país para entregar o serviço.
A paralisia do sistema econômico, na verdade, é um plus que acompanha o pacote e ajudar a acuar a caça.
O resto é farofa ética expressa no inimputável conforto desfrutado pelas lambanças do PSDB.
Romper o cerco dessa determinação canina exige coragem política de negociar o futuro do país com quem ainda quer conversar sobre soluções coletivas -- até para tornar compreensível e tolerável as restrições do presente, que são reais.
Ou o campo progressista se une e mexe no tabuleiro do xadrez com as peças dispostas a permanecer no jogo democrático, e de lance em lance altera a rigidez das demais, ou ele próprio será tomado pela rigidez cadavérica que vai tomando conta do metabolismo econômico.
Lula criou um novo personagem histórico: o mercado de massa ancorado no pleno emprego formalizado.
Os novos protagonistas formam hoje a maioria da sociedade.
Mas ainda não constituem um protagonista histórico capaz de assumir o comando do desenvolvimento e do país, o que explica o seu distanciamento em relação à caçada em curso.
É um pouco esse paradoxo que espeta no governo a angustiante dubiedade de um refém de si mesmo.
Cria, também, a angustiante dissociação entre o gesto e o seu efeito.
Entre o apelo e o seu desdobramento.
Nesta 2ª feira, Lula, ‘a caça’, evocou a necessidade de uma revolução no PT, ‘para salvar nosso projeto, não a nossa pele’.
Nada.
Em diferentes momentos da história recente, mas sobretudo após a morte traumática do candidato do PSB à presidência, Eduardo Campos, em agosto do ano passado, o projeto progressista esteve emparedado, a ponto de muitos darem o jogo como perdido.
No final de agosto, o aluvião conservador era tão denso que expoentes do colunismo conservador degustavam precocemente a derrota irreversível do ‘lulopetismo’.
Em duas frases, Lula esquadrejou a areia movediça então e identificou um pedaço de chão firme onde instalar a alavanca da reação (bem sucedida, como se sabe): ‘Temos que demarcar o campo de classe dessa disputa: é preciso levar a política à campanha’.
Se tivesse incorporado à evocação o debate de ajustes pontuais na economia, o eleitor provavelmente entenderia –desde que isso se fizesse acompanhar de salvaguardas, prazos e contrapartidas.
Um pouco o que o Syriza busca agora na Grécia para não ser cuspido do euro, nem lixiviar ainda mais uma sociedade escalpelada.
Errou o PT ao não fazê-lo.
Erra em dobro agora, ao insistir em terceirizar um ajuste necessário, mas que só resultará em reordenação progressista do desenvolvimento se for pactuado com os que precisam genuinamente apostar na democracia social brasileira.
Os riscos intrínsecos a uma decisão de renegociar o pacto do desenvolvimento não são maiores do que o caminho adotado agora.
A aposta na indulgência dos mercados levou o governo a uma ponte sem pilares que desembocou em um labirinto de areia movediça.
Em certa medida, é como se o PT desconfiasse da capacidade de engajamento do protagonista político que ajudou a revelar.
O criador escapou à criatura.
Ou dito de forma mais racional: é viável enfrentar as contradições de um ciclo de desenvolvimento como o atual, sem estreitar os canais de organização e comunicação com a principal força capaz de sustentar a continuidade do processo?
A matilha late cada vez mais perto.
Contra a voracidade excitada pela silhueta da presa há resposta.
Talvez a única resposta nas horas que correm.
A unidade de ação do campo progressista e a determinação política inabalável de não escamotear a colisão de interesses em jogo. ‘Trata-se de salvar um projeto, não cargos’. A ver.
A ordem é disseminada por um colunista especializado na arte dos ganidos demarcatórios.
‘(O juiz) acha que dá para pegar ele’, uiva entre espasmos de ansiedade e sofreguidão.
A mensagem ganha diferentes versões no dispositivo midiático.
Contra Getúlio, Juscelino e Jango era Lacerda principalmente quem dava a cadência das senhas golpistas.
Lacerda agora é o jornalismo; os colunistas, em especial, seu autofalante mais exclamativo.
Ao ‘salve geral’ narrativas são adaptadas ao sotaque de cada público específico. Desde a mais crua, às colunas especializadas em dizer o mesmo com afetação pretensamente macroeconômica ou jurídica.
A mensagem é a mesma: ‘Dá para pegar ele’.
‘Ele’ é o troféu mais cobiçado, a cabeça a ser pendurada no espaço central da parede onde já figuram outras peças embalsamadas pelos taxidermistas a serviço da caçada ininterrupta do conservadorismo na história do país.
Mas falta a dele, uma cobiça acalentada pelos quase dez anos que remontam a 2005/ 2006.
‘Ele’?
Lula.
O metalúrgico que ascendeu ao posto de maior líder político do país desde Getúlio Vargas, e cuja morte política já foi uivada pela matilha um sem número de vezes.
De novo agora todos os latidos, mandíbulas, miras, gatilhos, patas, línguas espumosas, risos gordurosos, emboscadas e dardos convergem em sua direção.
Mas há uma novidade na sofreguidão dos latidos.
Erros cometidos em inéditos doze anos de poder do maior partido de trabalhadores da América Latina, emergiram com força do chão movediço da crise mundial, contra a qual os recursos da resistência do Estado brasileiro se esgotaram.
O problema principal não é o ajuste que sucedeu a isso.
Não é Dilma.
Seu governo, a composição, a política em curso refletem um flanco anterior mais grave que pode ser sintetizado no distanciamento orgânico entre ‘a caça’ e seu imenso entorno popular.
É esse distanciamento que o ajuste em curso espelha, ao mesmo tempo em que age para aprofunda-lo.
E é ele também que explica os ganidos em decibéis crescentes, o cheiro forte de urina demarcando o território conquistado no avanço ininterrupto do tropel.
Mas não sem dificuldade.
O ciclo iniciado em 2003 tirou algumas dezenas de milhões de brasileiros da pobreza; deu mobilidade a outros tantos milhões na pirâmide de renda.
A inclusão foi tão expressiva que sob a cortina de fogo impiedosa do monopólio midiático há quase uma década, acuado, ferido e enxovalhado noite e dia, sem espaço de resposta, Lula ainda figura como o nome que parte com 25% dos votos nas sondagens da corrida presidencial para 2018, contra 35% de Aécio Neves.
Mas a direita sabe que isso é pouco para ele reverter.
Com acesso diário à tevê hoje sonegado, ao rádio e ao debate num cenário econômico que dificilmente será pior do que o atual, os dez pontos da vantagem do tucano – segundo o Datafolha -- podem derreter em questão de dias.
Então é preciso liquidar a fatura hoje. Agora. Na janela de oportunidade entre o vácuo orgânico criado em torno da presa e a próxima temporada de imersão no oceano popular.
‘(O juiz) acha que dá para pegar ele’, telegrafa o colunista que alardeia intimidades com a caçada e objetivamente compõe o galope.
A disjuntiva ‘combate à corrupção’ versus ‘ impunidade’ serve para aspergir legalidade ao tiro ao alvo em marcha que busca a cabeça encomendada para figurar na parede dos abates ilustres de Getúlio, Jango, entre outros.
Passar a limpo a política brasileira?
Fosse essa a motivação a força-tarefa que hoje se esfalfa em caçar Lula cerraria fileiras para criar travas à presença do dinheiro grosso nas campanhas eleitorais.
Promoveria uma reforma capaz de dificultar siglas caça níqueis. Endossaria o clamor por uma democracia mais aberta à participação da população, ora resumida ao comparecimento esporádico às urnas.
Não, não é esse o objetivo.
A reforma de Cunha, talhada à sua imagem e semelhança, sacramenta a causa do apodrecimento da política e afastar o eleitor das decisões por intervalos maiores.
Ah, mas Lula fez lobby por empresas brasileiras...
Sim. E nisso o senador Roberto Requião foi definitivo enquanto os senadores do PT balbuciavam evasivas:
‘Criticam o Lula por trabalhar a favor de empresas brasileiras; elogiam o Serra por querer entregar nosso petróleo a empresas estrangeiras’, fuzilou, tiro seco e letal, o bravo parlamentar.
O país precisa de uma macroeconomia mais consistente?
Por certo.
Mas qual?
A dos sábios tucanos, reunidos no departamento econômico do Itaú, o BC do PSDB? Ou aquela recauchutada na Casa das Garças, com os mesmos ingredientes de sempre. Desregulação do mercado de trabalho e livre comércio, em linguagem acadêmica. Ou para ser um tanto mais direto: arrocho e entreguismo.
'O trade-off é mais liberalismo em troca de mais redistribuição', preferem os senhores elegantes de gravata italiana.
Pergunte-lhes onde foi que isso aconteceu?
Na Espanha? Na Grécia? Em Portugal? Nos EUA? Ou na Inglaterra, onde a gororoba é aplicada desde Thatcher (Blair incluso), e 250 mil foram às ruas no último sábado contra cortes em programas sociais promovidos pelo engomadinho Cameron (37% dos votos em escrutínio com abstenção de 40%)?
Menos Estado em troca de mais distribuição?
Então por que o motor da economia mundial engazopou e não pega nem com o tranco de liquidez de trilhões de dólares despejados pelo Fed e, agora, pelo tardio BCE?
Trinta anos que não se faz outra coisa a não ser desregular mercados urbi et orbi, e as grandes corporações mundiais estão sentadas em trilhões de dólares de liquidez.
Não investem.
Quem diz é a OCDE, não propriamente um organismo bolchevique.
A produtividade patina e grandes corporações dos EUA já destinaram US$ 903 bilhões este ano à recompra das próprias ações ou a dividendos milionários pagos à república dos acionistas, invertendo-se a destinação majoritária do lucro que deveria expandir o investimento produtivo.
O que falta para lubrificar a engrenagem emperrada?
Falta o que o Brasil tem, mas a boa ‘ciência econômica’ aqui -- com o incentivo do bravo jornalismo econômico -- acha indispensável liquidar: mercado de massa, horizonte de demanda, distribuição de renda, de bens e de infraestrutura.
A desregulação do mercado de trabalho e a destruição do pleno emprego -- vendidas como o clorofórmio capaz de combater as impurezas da macroeconomia lulopopulista, explicam no plano mundial por que essa é a mais longa, frágil e incerta convalescença de todas as crises capitalistas, desde 1929.
O massacre da desregulação do trabalho, na fórmula consagrada de empregos desqualificados, salários baixos e atrofia sindical, foi contrabalançado pelo inchaço do crédito nas últimas décadas.
Famílias assalariadas – a exemplo de Estados desidratados pelas reduções de impostos —foram buscar no endividamento aquilo que o emprego e a receita fiscal não mais proporcionavam.
Empréstimos às famílias cresceram três vezes mais rápido que o PIB no último meio século nos países ricos, diz a OCDE.
Criou-se uma contradição nos seus próprios termos: crédito em volume cada vez maior a tomadores cada vez mais descapacitados a pagá-lo.
Daí para as sub-primes que acenderam o pavio da explosão mundial era uma questão de tempo.
Quando o balão de oxigênio creditício travou, em 2008, sobrou o deserto do real.
Um imenso areal de mão de obra subempregada, trabalhadores em tempo parcial, dezenas de milhões de famílias endividadas, outros tantos milhões de lares sem condições sequer de prover o próprio sustento.
O mundo talhado pelo cinzel neoliberal abarca hoje mais de 200 milhões de desempregados –30 milhões adicionados só nesta crise; a fome está de volta à Europa; uma em cada quatro crianças vive em meio à pobreza na Inglaterra onde Cameron acaba de cortar mais 12 bilhões de libras dos programas sociais; 46 milhões de norte-americanos só comem com ajuda do governo, mas o Congresso neoliberal desautoriza Obama a elevar o salário mínimo, agora inferior ao da era Reagan.
Por isso a OCDE lamenta o onanismo de um capital que se autossatisfaz ejaculando com a recompra das próprias ações e distribuindo lucros celibatários a acionistas e diretores rentistas.
É essa a eficiência estratégica que se persegue? Um capitalismo que patina no próprio esperma, apartado da reprodução, alijado de ferramentas de Estado e de poder social para reconduzi-lo às finalidades sociais do desenvolvimento?
Os dados na mesa são claros.
Não há muito tempo para agir, nem são tantas as opções assim.
Há até algum consenso entre o mercadistas sensatos e a visão progressista.
Ambos concordam que o país vive o esgotamento de uma dinâmica econômica.
Há razoável convergência em relação ao motor que deve puxar o novo período: o investimento produtivo, um impulso industrializante liderado pelo pré-sal; os grandes projetos de infraestrutura.
Termina o espaço dos consensos.
O conservadorismo avalia que o legado recente é incompatível com o futuro desejado. Para nascer o ‘novo’ é preciso destruir o ‘velho’.
Parece schumpeteriano, é udenista puro.
A supremacia financeira deve purgar todo e qualquer vestígio de interesse nacional, público e social no manejo da economia.
O alvo da caçada, Lula, embolou tudo na última década.
Fortemente ancorada na ampliação do mercado de massa, a economia avançou apoiada em ingredientes daquilo que a emissão conservadora denomina ‘Custo Brasil’.
Um exemplo das dificuldades a retardar o avanço da matilha nessa frente?
A formalização da mão de obra.
Hoje ela encarece sobremaneira o lacto purga das demissões em massa, atrasando a purificação do metabolismo econômico.
O PSDB deixou o país com uma taxa de informalidade do emprego de 43,6%.
No ano passado esse percentual era de 29,5%.
Para demitir um operário com registro em carteira é preciso pagar todos os direitos legados por Vargas.
Eles foram limados parcialmente pela ditadura, mas fortalecidos na prática pelo ciclo de pleno emprego propiciado em 12 anos de governos do PT (que pegou o país com um desemprego tucano superior a 9%, quase 10% em 2003; cortou isso à metade).
É disfuncional. Custa caro faxinar a folha de pagamentos pós-PT.
Pior: ao recontratar, enfrenta-se o piquete de uma década de investimento para democratizar a educação.
Foram oito milhões de vagas do Pronatec e 1,6 milhão de vagas do Prouni e do Fies.
O avanço educacional barra o retrocesso significativo nas relações de trabalho: o jovem qualificado recusa a informalidade e o salário arrochado.
É preciso pendurar a cabeça do responsável por isso na parede; impedi-lo de retornar à Presidência ou o mercado não completará o longo ciclo de detox neoliberal requerido.
‘(O juiz) acha que dá par apegar ele’.
Essa é a determinação serviçal da Lava Jato, cuja mão de obra não se inibe em paralisar o país para entregar o serviço.
A paralisia do sistema econômico, na verdade, é um plus que acompanha o pacote e ajudar a acuar a caça.
O resto é farofa ética expressa no inimputável conforto desfrutado pelas lambanças do PSDB.
Romper o cerco dessa determinação canina exige coragem política de negociar o futuro do país com quem ainda quer conversar sobre soluções coletivas -- até para tornar compreensível e tolerável as restrições do presente, que são reais.
Ou o campo progressista se une e mexe no tabuleiro do xadrez com as peças dispostas a permanecer no jogo democrático, e de lance em lance altera a rigidez das demais, ou ele próprio será tomado pela rigidez cadavérica que vai tomando conta do metabolismo econômico.
Lula criou um novo personagem histórico: o mercado de massa ancorado no pleno emprego formalizado.
Os novos protagonistas formam hoje a maioria da sociedade.
Mas ainda não constituem um protagonista histórico capaz de assumir o comando do desenvolvimento e do país, o que explica o seu distanciamento em relação à caçada em curso.
É um pouco esse paradoxo que espeta no governo a angustiante dubiedade de um refém de si mesmo.
Cria, também, a angustiante dissociação entre o gesto e o seu efeito.
Entre o apelo e o seu desdobramento.
Nesta 2ª feira, Lula, ‘a caça’, evocou a necessidade de uma revolução no PT, ‘para salvar nosso projeto, não a nossa pele’.
Nada.
Em diferentes momentos da história recente, mas sobretudo após a morte traumática do candidato do PSB à presidência, Eduardo Campos, em agosto do ano passado, o projeto progressista esteve emparedado, a ponto de muitos darem o jogo como perdido.
No final de agosto, o aluvião conservador era tão denso que expoentes do colunismo conservador degustavam precocemente a derrota irreversível do ‘lulopetismo’.
Em duas frases, Lula esquadrejou a areia movediça então e identificou um pedaço de chão firme onde instalar a alavanca da reação (bem sucedida, como se sabe): ‘Temos que demarcar o campo de classe dessa disputa: é preciso levar a política à campanha’.
Se tivesse incorporado à evocação o debate de ajustes pontuais na economia, o eleitor provavelmente entenderia –desde que isso se fizesse acompanhar de salvaguardas, prazos e contrapartidas.
Um pouco o que o Syriza busca agora na Grécia para não ser cuspido do euro, nem lixiviar ainda mais uma sociedade escalpelada.
Errou o PT ao não fazê-lo.
Erra em dobro agora, ao insistir em terceirizar um ajuste necessário, mas que só resultará em reordenação progressista do desenvolvimento se for pactuado com os que precisam genuinamente apostar na democracia social brasileira.
Os riscos intrínsecos a uma decisão de renegociar o pacto do desenvolvimento não são maiores do que o caminho adotado agora.
A aposta na indulgência dos mercados levou o governo a uma ponte sem pilares que desembocou em um labirinto de areia movediça.
Em certa medida, é como se o PT desconfiasse da capacidade de engajamento do protagonista político que ajudou a revelar.
O criador escapou à criatura.
Ou dito de forma mais racional: é viável enfrentar as contradições de um ciclo de desenvolvimento como o atual, sem estreitar os canais de organização e comunicação com a principal força capaz de sustentar a continuidade do processo?
A matilha late cada vez mais perto.
Contra a voracidade excitada pela silhueta da presa há resposta.
Talvez a única resposta nas horas que correm.
A unidade de ação do campo progressista e a determinação política inabalável de não escamotear a colisão de interesses em jogo. ‘Trata-se de salvar um projeto, não cargos’. A ver.
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