“Companheiros trabalhadores, eu não vou renunciar. Colocado nesta transição histórica, pagarei com minha vida a lealdade do povo e digo que tenho a certeza de que a semente que entregamos à consciência digna de milhões de chilenos não poderá ser negada porque não se detêm os processos sociais nem com o crime, nem com a força. A história é nossa e a fazem os povos. (...) Neste momento decisivo o único que posso dizer a vocês é que aprendam a lição. O capital estrangeiro, o imperialismo, criou o clima para que as forças armadas rompessem sua tradição. (...) Trabalhadores de Chile, tenho certeza que mais cedo que tarde se abriram novamente as grandes alamedas por onde passarão os homens livres para construir uma sociedade melhor. Viva Chile, viva o povo, viva os trabalhadores...”
Mauro Iasi analisa o legado revolucionário da experiência chilena, no Blog da Boitempo: “Chile e a experiência do poder popular” – http://wp.me/pB9tZ-1UL
Chile e a experiência do Poder Popular
“Porque esta vez no si trata
De cambiar un presidente
Será el pueblo que construya
Un Chile bien diferente”
De cambiar un presidente
Será el pueblo que construya
Un Chile bien diferente”
Falando-nos
sobre as características da revolução proletária, Marx disse certa vez
que nossas revoluções “encontram-se em constante autocrítica, (…)
retornam ao que aparentemente conseguiram realizar, para recomeçar tudo
de novo, (…) parecem jogar seu adversário por terra somente para que ele
sugue dela novas forças e se reerga diante delas em proporções ainda
mais gigantescas” (O 18 de brumário de Luís Bonaparte,
p.30). De fato não se aprende com o passado a não ser o que deveríamos
ter feito no passado. O que importa no estudo de nossa experiência de
classe pregressa é descobrir os caminhos por onde passou o futuro em
construção, os impasses e erros que nos distanciaram de nossa meta,
para, assim, olhar para frente com mais segurança. Nossa revolução não
tira sua poesia do passado, mas do futuro, como também disse o velho
mestre, pois se antes a frase vazia das revoluções burguesas iam além do
conteúdo, agora é o conteúdo proletário que não cabe na fraseologia
vazia do ideário burguês.
O que a revolução chilena nos ensina neste olhar para o futuro?
Ao lado de
características comuns a todos os povos da América Latina – tais como a
dependência em relação aos interesses externos, a economia
agro-exportadora, o domínio das oligarquias reacionárias, a concentração
de terras – existiam no Chile alguns fatores que davam certa
singularidade a sua formação social. Entre eles, uma história política
que acabou por constituir uma estabilidade ordenada constitucionalmente e
a presença de forças armadas inspiradas por anseios nacionais e
progressistas, chegando mesmo a apoiar uma República Socialista que se
manteve no poder por 12 dias em 1932.
Ainda que
tal fato não tenha impedido episódios de reacionarismo e repressão (como
a Lei de Defesa da Democracia, conhecida como “lei maldita” de 1948) as
eleições foram diretas desde 1924 e acompanharam um lento, mas
crescente, amadurecimento de uma alternativa popular e socialista.
Em 1951
socialistas e comunistas se unificam em uma Frente do Povo e lançam
Salvador Allende que obtêm 6% dos votos perdendo para o general Ibañez
Del Campo. Em 1957 o Partido Socialista (PS) define uma linha de Frente
de Trabalhadores e abre caminho para a unidade com o Partido Comunista
(PC). A direita e as classes médias, temerosas com o crescimento da
esquerda, contra-atacam com a formação do Partido Democrata Cristão
(PDC).
Em 1958 o
PDC derrota Allende por uma diferença de 35 mil votos e alguns anos
depois irá defender uma alternativa que não seria “nem socialista, nem
capitalista” prometendo uma “revolução sem sangue”. Em 1964 o candidato
do PDC, Eduardo Frei (56%), derrota Salvador Allende (39%) em uma
eleição na qual a CIA despejou U$425 mil. Naquela oportunidade 0,7% dos
proprietários controlavam 61,6% das terras chilenas e o imperialismo
monopolizava todos os setores chaves da economia, a começar pela
mineração. O desemprego era de 300 mil e a inflação corroia os salários.
Isabel Parra cantava:
“Linda se ve la patria señor turista,
Pero no le han mostrado las callampitas.
Mientras gastan millones en un momento,
De hambre se muere gente que es un portento.
Mucho dinero en parques municipales
Y la miseria es grande en los hospitales.
Al medio de alameda de las delicias,
Chile limita al centro de la injusticia.”
Pero no le han mostrado las callampitas.
Mientras gastan millones en un momento,
De hambre se muere gente que es un portento.
Mucho dinero en parques municipales
Y la miseria es grande en los hospitales.
Al medio de alameda de las delicias,
Chile limita al centro de la injusticia.”
Eduardo Frei
edita três leis sobre reforma agrária bastante moderadas. Os partidos
populares (entre eles, o MIR, que havia sido fundado em 1965) e a CUT
passam a organizar os camponeses e chegam a uma greve geral camponesa
marcada por intensa mobilização e confrontos entre 1967 e 1969. Estas
mobilizações serão violentamente reprimidas pelo governo do PDC. Como
outras vezes ocorreu em nosso sofrido continente, a revolução sem sangue
virou sangue sem revolução.
Estes
acontecimentos aceleraram a formação da Unidade Popular, formada pelo
PC, pelo PS e por outros setores como o Partido Radical, a Ação Popular
Independente e um racha do PDC chamado Movimento de Ação Popular (MAPU).
A maior divergência que se expressava neste momento entre as forças de
esquerda era sobre a possibilidade de uma vitória eleitoral e sua
relação com a estratégia socialista. Os comunistas colocavam a meta
socialista como algo a ser alcançado em um horizonte longínquo, enquanto
os socialistas defendiam que uma vitória eleitoral poderia ser o início
da construção socialista.
Apresentaram
um programa que refletia esta tensão. Propunha-se a nacionalização da
economia, aprofundar a reforma agrária, retomar o crescimento econômico,
ampliar a oferta de emprego e provocar uma melhora significativa na
qualidade de vida das camadas populares.
Em 1970, em
uma eleição disputadíssima, Salvador Allende venceu com 36,5% ao
candidato do Partido Conservador, Jorge Alessandri (35%) e Rodomiro
Tomic do PDC (27,8%). A diferença foi de 39 mil votos e, por não ter
alcançado a maioria absoluta, o candidato socialista deveria ser
confirmado pelo Congresso, de maioria conservadora.
A CIA tinha
outras alternativas e acalmou os conservadores. Como ficou demonstrado
por um bilhete de um agente chamado Helms que descrevia um plano de nome
TracII, o departamento de Estado Norte Americano apostava em uma
complexa operação de desestabilização.
Em setembro de 1970 o povo trabalhador tomou as ruas e festejou pacificamente sua vitória.
“Porque desta vez no se trata
de cambiar un presidente
será el pueblo que construya
un Chile ben diferente”
de cambiar un presidente
será el pueblo que construya
un Chile ben diferente”
Desta vez
não se tratava de trocar um presidente, seria o povo chileno, organizado
e politizado, que estava disposto a construir um Chile bem diferente.
Uma cultura popular explodia com uma radicalidade que, como dizia Victor
Jara, não era apenas música de protesto, mas música popular que nascia
da identidade compartilhada com o povo e suas lutas. E se a esquerda
abraçou o povo e seus anseios, o povo abraçou as bandeiras da esquerda e
o socialismo tornou-se um fenômeno de massa. O Partido Comunista, por
iniciativa e trabalho do próprio Jara, chegou a organizar vários
conjuntos musicais, entre eles o Quilapayun e o Inti-Illimani.
O presidente
eleito cumpriu o programa pelo qual se elegeu: nacionalizou a mineração
(responsável por 80% da receita do país e que antes era monopolizado
pela Anaconda, Kennecolt, Serro Co. e outras), estatizou o sistema
financeiro e colocou normas de controle sobre os monopólios industriais e
as empresas de telecomunicações, entre elas a poderosa ITT. Assumindo o
governo, mais do que simplesmente o posto, a Unidade Popular tinha
ferramentas para dirigir a economia, ainda que nos marcos do
capitalismo.
O resultado
já no primeiro ano foi surpreendente. O desemprego caiu pela metade, os
salários subiram entre 35% e 60%, o setor industrial cresceu 12% e o PIB
8,3%, a reforma agrária é imediatamente estendida a 30% das terras, e
apesar destas heresias, inflação declinou (coisa que certos economistas
ilustres de hoje teriam grande dificuldade de explicar, não é?). O povo
cantava: “venceremos, venceremos… a miséria sabemos vencer”.
A tensão
cresce no campo, o MIR e o MAPU organizam o Movimento Revolucionário
Camponês, cada criança tem direito a um litro de leite, os proprietários
de terra sabotam a colheita, os operários se organizam em cordões
industriais, 300 mil cabeças de gado são contrabandeadas para a
Argentina, 96% do crédito bancário está na mão do governo, 10 mil litros
de leite jogados no rio e as senhoras da classe média, aquelas que
moravam “en las casitas del barrio alto”, fazem passeatas porque
as crianças gastaram o leite e o preço dos cosméticos subiu. Os
trabalhadores cantam: “não nos moverão, e aquele que não creia que faça a
prova, unidos em sindicatos, não nos moverão, construindo o socialismo,
não nos moverão”!!
O
imperialismo joga. Manobra para baixar o preço do cobre, sabota as
minas, o Exibank suspende o crédito internacional, os jornais burgueses,
entre eles o maior – El Mercúrio – faz o trabalho de
desinformação. A dívida passa de 2,5 bilhões em 1970 para 4 bilhões em
1973. As reservas de 350 milhões tornam-se um déficit de 400 milhões. Os
empresários fecham as fábricas em um lockout em 1972 e os
caminhoneiros, financiados pela CIA, paralisam os transportes
rodoviários. Os trabalhadores nos cordões ocupam as fabricas e se armam.
E cantam: “levántate e mira a tus manos, para crescer estreita-las a tus hermanos”.
Allende diz:
“comprometi-me a agir dentro das leis e da constituição e ninguém me
fará abandonar este caminho”. No parlamento os conservadores, aqueles a
quem o povo chamava carinhosamente de “múmias”, exigem a aplicação da
lei do desarmamento. E Angel Parra cantava: “me gusta la democracia en neste hermoso país, pois permite a negros e blancos admirar los monumentos… soy democrata, tecnocrata, plutocrata y hipócrita”!
A inflação
volta a subir e passa de 22% em 1971 para 163,4% em 1972 e chega a 325%
em 1973. Os monetaristas de Chicago podiam festejar sua profecia
autorrealizável. John Marc Cone diz: “vamos lançar o Chile num
verdadeiro caos econômico”. O governo reage aos boicotes e cria as
Juntas de Abastecimento e Preços e os Comandos Comunais. O Ministro da
Defesa, General Prats, fiel ao governo da Unidade Popular, comunica ao
presidente que setores das forças armadas planejam interromper o
processo constitucional e se dispõe a prender os líderes. O comando das
forças armadas considera este ato uma ingerência e exige o afastamento
de Prats. Assume o ministério o General Augusto Pinochet. O povo canta: “no nos moveran… nin con un golpe de estado, no nos moveran”!
No dia 29 de
junho os tanques fazem seu ensaio no Tankazo e cercam o palácio. Dia 11
de setembro eles voltariam acompanhados de aviões que bombardeiam La
Moneda, o palácio presidencial. Operários, estudantes e camponeses
cantam: “traicionar a la pátria jamás”. A marinha faz manobras
conjuntas com as tropas norte-americanas em Valparaiso. Fidel, em sua
visita ao Chile, deu de presente a Allende uma metralhadora e oferece os
serviços de um de seus principais generais e assessor militar, general
Uchoa. Allende está isolado em La Moneda, o povo… desarmado. Os soldados
e oficiais fieis ao governo socialista são fuzilados nos quartéis. A
constituição está rasgada e o congresso canta: “soy democrata, tecnocrata, plutocrata… hipócrita”.
O presidente
Allende falou em sua posse em 1970: “isto que hoje germina é uma larga
jornada, eu só peguei em minhas mãos a tocha que acenderam todos aqueles
que antes de mim lutaram ao lado e pelo povo, este triunfo devemos
oferecer em homenagem aos que caíram nas lutas sociais e regaram com seu
sangue a fértil semente da revolução chilena que vamos realizar”. Mas a
semente exigia ainda mais sangue.
Em 11 de setembro de 1973 o presidente falará pela última vez ao povo:
“Companheiros
trabalhadores, eu não vou renunciar. Colocado nesta transição
histórica, pagarei com minha vida a lealdade do povo e digo que tenho a
certeza de que a semente que entregamos à consciência digna de milhões
de chilenos não poderá ser negada porque não se detêm os processos
sociais nem com o crime, nem com a força. A história é nossa e a fazem
os povos (…) Neste momento decisivo o único que posso dizer a vocês é
que aprendam a lição.
O capital estrangeiro, o imperialismo, criou o clima para que as forças
armadas rompessem sua tradição (…) Trabalhadores de Chile, tenho
certeza que mais cedo que tarde se abriram novamente as grandes alamedas
por onde passarão os homens livres para construir uma sociedade melhor.
Viva Chile, viva o povo, viva os trabalhadores…”
O presidente
Allende está morto. Serão mais de 30 mil mortos e milhares de presos e
desaparecidos. O Estádio Nacional se transforma em um presídio onde
serão confinados milhares de trabalhadores. Entre eles está Victor Jara
que canta desafiando seus algozes: “Venceremos, venceremos… socialista será el porvenir…”. É abatido a golpes de fuzil e suas mãos são esmagadas a coronhadas. O povo chora:
“Hijo de la rebeldía
Lo siguen veinte más veinte,
Porque regala su vida
Ellos le quieren dar muerte.
Correlé, correlé, correlá,
Por aquí, por allí, por allá,
Correlé, correlé, correlá,
Correlé que te van a matar,
Correlé, correlé, correlá”.
Lo siguen veinte más veinte,
Porque regala su vida
Ellos le quieren dar muerte.
Correlé, correlé, correlá,
Por aquí, por allí, por allá,
Correlé, correlé, correlá,
Correlé que te van a matar,
Correlé, correlé, correlá”.
Ernesto Che Guevara dizia que a maior qualidade de um revolucionário é de encontrar as táticas adequadas a cada momento
e explora-las ao máximo sendo um erro descartar qualquer tática a
princípio. Desta forma seria, ainda segundo Che, um “erro imperdoável
descartar por princípio a participação em algum processo eleitoral”, mas
alerta: “quando se fala em alcançar o poder pela via eleitoral, nossa
pergunta é sempre a mesma: se um movimento popular ocupa o governo de um
país sustentado por ampla votação popular e resolve em consequência
iniciar as grandes transformações sociais que constituem o programa pelo
qual se elegeu, não entrará imediatamente em choque com os interesses
das classes reacionárias desse país? O exército não tem sido sempre o
instrumento de opressão a serviço destas classes? Não será então lógico
imaginar que o exercito tomará partido por sua classe e entrará em
conflito com o governo eleito? Em consequência, o governo será derrubado
por meio de um golpe de estado e aí começa de novo toda a velha
história”.
Brasil, ano
2002. O candidato popular vence as eleições por ampla margem de votos.
Os mercados se acalmam, o presidente do Banco Central vigia, os salários
perderam entre 2003 e 2005 14,56% de seu valor real, os juros vão
caindo pouco a pouco, os bancos seguem privados e lucrando como nunca, a
reforma agrária patina sem sair do lugar, o judiciário nega a primeira
liminar de desapropriação, os ruralistas se armam, o presidente diz que
na marra ninguém ganha nada, criticando o MST, os militares ficam fora
da reforma da previdência, os aposentados e funcionalismo público não, o
equilíbrio monetário está salvo, a fome persiste, os superávits
primários são maiores que o combinado com o FMI, as demandas sociais
terão que ser tratadas focalizadamente. As 500 maiores empresas aumentam
seus lucros: seus ganhos saltaram de 2,9 bilhões de dólares em 2002
para 43,3 bilhões em 2006. Entre 2002 e 2009 o fundo público transferiu o
equivalente a 45% do PIB para o capital financeiro (dava para manter o
Bolsa família por 108 anos). O 1% dos mais ricos tem uma renda maior que
os 50% mais pobres. Quase 6 milhões de pessoas saíram da linha da
miséria absoluta, quando ganhavam 1 dólar por dia – agora ganham 2
dólares por dia. Entre 1990 e 2012 os 10% mais ricos saltam do controle
de 53% da riqueza nacional para 72,4%. As massas vão às ruas em 2013
contra o aumento das passagens, pela saúde e pela educação… a presidente
garante à burguesia que manterá a ordem e a responsabilidade fiscal… o
PT lança nota dizendo que sua aliança prioritária em 2014 será com o
PMDB, o perigo de golpe esta afastado para o momento… “me gusta la democracia em neste hermoso país”.
E Violeta Parra canta:
“Miren como sonríen los presidentes
cuando hacen promesas a inocentes,
miren como prometen a los sindicatos
este mundo y el otro los candidatos,
miren como redoblan los juramentos,
pero después del voto doble tormento”
cuando hacen promesas a inocentes,
miren como prometen a los sindicatos
este mundo y el otro los candidatos,
miren como redoblan los juramentos,
pero después del voto doble tormento”
* Versão modificada de texto escrito em 2003,
para esta publicação no Blog da Boitempo.
para esta publicação no Blog da Boitempo.
***
Leia também, de Mauro Iasi, Entre Che e Allende: déficit teórico e busca de uma estratégia, e Pode ser a gota d’água: enfrentar a direita avançando a luta socialista, no Blog da Boitempo.
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