segunda-feira, 13 de julho de 2015

O antropofágico ódio à ampla defesa, a advogados e uma democracia brazuca


Por JEAN MENEZES DE AGUIAR
Advogado e professor da pós-graduação da FGV

Uma sociedade boçal odeia muitas coisas. Odeia ampla defesa de réus e acusados; presunção de inocência de quem é suspeito de prática criminosa; garantias que são dadas a investigados por um delito.
Mas também odeia gays, prostitutas, negros, velhos, pobres. Não se preocupe, a lista do preconceito e da burrice é avassaladoramente grande.
Essas sociedades aceitam, sem qualquer remorso, linchamentos no meio da rua de suspeitos e julgamentos sumários apenas pela aparência do acusado. Por um mero indício de autoria, já tem que condenar e ponto final.
O pensamento retrógrado é assim.
A história mostra diversos países com este perfil. O Brasil viveu recente uma ditadura militar. Muitos processos judiciais eram esdrúxulos e calhordas, apenas um espartilho prostituto de seriedade excelencial para se condenar quem ‘se queria’ condenar. Em muitos casos, a acusação era mancomunada com a polícia e com o juiz. O famoso e clandestino livro ‘Brasil: nunca mais’, que não tem autor – repare-, relata mais de 700 processos judiciais de um Brasil que efetivamente não se deve tolerar novamente.
Advogados foram presos, espancados, tiveram escritórios explodidos. Uma bomba matou uma funcionária na OAB carioca. A ‘ampla defesa’ era uma guerra, vivenciada a tapa por defensores que arriscaram a própria vida. Muitos morreram.
Confirmaram-se lições que, entretanto, não são brasileiras, mas mundiais. Qualquer livro de Direito do mundo democrático reprova sociedades assim. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, no artigo XI, 1, a que o Brasil e todos esses países são regidos, impõe:  ‘Toda a pessoa acusada de um ato delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas.’
No Brasil atual há um curso curioso, para não dizer desesperador e antropofágico. Uma imprensa comercial, ávida por escândalos e heróis de plantão, passou a dar, assimetricamente, enormes espaços a investigadores, acusadores e julgadores, em um dos lados da balança. E ínfimos e burocráticos espaços a defensores, ou seja, a advogados, no lado oposto. É a imprensa julgando e preferindo. E preterindo.
A responsabilidade do jornalista, admitindo-se a hipótese de ele poder contrariar a ideologia do patrão e dizer verdades, seria imensa. Esta assimetria ‘jornalística’ com três pratos na balança de um lado – investigação, acusação e juiz-, e apenas um prato no outro lado, o advogado, começa a criar uma cultura infame numa sociedade já propensa a preconceitos.
Pôr-se o princípio constitucional da ‘ampla defesa’ em xeque, aceitando-se menosprezá-lo por meio da satanização de advogados, por exemplo, é parir um tipo obtuso de democracia. É pretender o pior dos mundos: um Estado policial [nazista], ou um Estado acusador [ditatorial]. Em termos constitucionais modernos não há estupidez maior que esses modelos de Estado.
Quando o Conselho Federal da OAB, por exemplo, provoca a cúpula fiscalizatória do Ministério Público a controlar melhor a delação premiada, por suspeita de coação, ou insta o Legislativo a não invadir questões blindadas legalmente por sigilo na relação advogado-cliente – como se quer fazer esta semana-, não está buscando proteger o advogado, mas sim a democracia, o direito de toda e qualquer pessoa de conversar com segurança e imunidade com seu advogado.
Ninguém ouve um relato possivelmente criminoso sem o ímpeto de ‘julgar’. Nem a mãe, nem um amigo. Só o advogado. Essa conquista da inviolabilidade de conversa advogado-cliente é universal. Não podem, por exemplo, parlatórios patéticos – e ilegais- de modernosas unidades policiais quererem que advogados conversem com seus clientes por meio de interfones presumivelmente censuráveis. Isto é uma piada, ilegal. Como não se pode exigir que advogados ‘contem’ o que ouviram de seus clientes.
Essas garantias não são brasileiras. São próprias de democracias. O grande risco é a sanha conservadora e autoritária oficial brasileira rangendo dentes e querendo ‘saber’ coisas diretamente pelo investigado ou por seu advogado. Que se reinstaure então o pau de arara e se rasguem as fantasias.
A jurisprudência sobre ‘ampla defesa’ do Supremo Tribunal Federal, ligando-a ao próprio conceito de democracia é de envergonhar qualquer ‘autoridade’ autoritária ou truculenta do país. Como também a segmentos tacanhos que acham bonito enaltecer as idiotices de um Estado policial ou de um Estado acusador.
Não há que se medir esforços para se enterrar o ilegal, o atrasado, o preconceituoso e o que o mundo democrático já concluiu não ser o melhor para as pessoas, as famílias e a segurança jurídica de uma sociedade. A imprensa, os intelectuais, as universidades têm um papel importante aí.
A cultura do menosprezo e ridicularização às garantias de qualquer pessoa investigada por um crime – que não tem relação com a proteção de vítimas que devem ser exemplarmente protegidas e assistidas-  é a síntese do atraso. Nem se precisa ir à Declaração Universal dos Direitos do Homem. Uma leitura ao artigo 5º da Constituição do Brasil é mais que suficiente. Ali está o que existe de mais moderno no mundo. Ainda que desavisados e não estudiosos de plantão ‘queiram’ que não seja assim.

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