segunda-feira, 3 de setembro de 2012

ENGELS: A ORIGEM DA FAMILIA, DA PROPRIEDADE PRIVADA E DO ESTADO



A origem da família, da propriedade privada e do Estado 

– Friedrich Engels – 


Resumo do livro por Luciana Marcassa 
Doutoranda em Educação pela UNICAMP/ 
Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia e Educação - PAIDÉIA 
Professora da Universidade Federal de Goiás 
lu.marcassa@uol.com.br





Publicada em Zurique, em 1884, “A origem da família, da propriedade privada e do
Estado” de Friedrich Engels é uma obra prima em matéria de Teoria da História,
especialmente em relação à história antiga e à história das sociedades primitivas.
Coerente com o método que lhe dá suporte, isto é, o materialismo histórico, que
criara juntamente com Marx, Engels inaugura, já no século XIX, um debate sobre
a história da família que ainda hoje se faz atual.  De acordo com a concepção
materialista, a produção e reprodução da vida imediata (tanto dos meios de
existência, como do homem mesmo) são fatores decisivos da história. Esta é a
premissa que o autor reconhece e valoriza nos estudos do antropólogo norteamericano Lewis H. Morgan sobre os laços de parentesco entre as tribos
indígenas então localizadas no Estado de Nova York, cujas descobertas, segundo
Engels, permitiram restabelecer os traços essenciais do fundamento pré-histórico
da história escrita, e ainda visualizar, através da gens iroquesa, organizada de
acordo com o direito materno, a forma primitiva que originou as gens posteriores,
baseadas no direito paterno, encontradas entre os povos civilizados da
Antiguidade, como os gregos, romanos, celtas e germanos.
A Sociedade Antiga, título da obra de Morgan, figura então como referência central
das reflexões desenvolvidas por Engels no livro que ora apresento, cujo ponto de
partida é o pressuposto de que “a ordem social em que vivem os homens de
determinada época ou determinado país está condicionada por duas espécies de
produção: pelo grau de desenvolvimento do trabalho, de um lado, e da família, de
outro” (Engels, s/d, p.08).

O princípio materialista contido na obra de Morgan, segundo Engels, é o que
fundamenta a compreensão de que as fases de desenvolvimento humano
acompanham os progressos obtidos na produção dos meios de existência, ou
seja, as épocas de progresso no desenvolvimento da humanidade coincidem com a ampliação das fontes de existência. Este é o princípio que permite a Morgan
estabelecer e classificar, pioneiramente, os estágios pré-históricos de cultura, que
são basicamente três: 1) Estado Selvagem: período em que predomina a
apropriação de produtos da natureza, prontos para ser utilizados, sendo as
produções artificiais do homem destinadas a facilitar essa apropriação; 2)
Barbárie: período em que aparecem a criação de gado e a agricultura, com o início
do incremento da produção, a partir da natureza, pelo trabalho humano; 3)
Civilização: período que se inicia com a fundição do minério de ferro e a invenção
da escrita alfabética, em que o homem amplia e complexifica a elaboração dos
produtos naturais, período da indústria propriamente dita e da arte. A
apresentação e descrição destas fases correspondem  ao Capítulo I do livro,
intitulado “Estágios Pré-Históricos de Cultura”.

No Capítulo II, “A Família”, Engels procura, com base nos estudos de Morgan
sobre os iroqueses, além de identificar o momento no estágio evolutivo e as
condições que permitiram a transformação do macaco em homem, caracterizar os
sistemas de parentesco e formas de matrimônio que levaram à formação da
família, descrevendo as suas fases, bem como os modelos criados ao longo do
processo de desenvolvimento humano. A invenção do incesto é o passo decisivo
na organização da família propriamente dita, mas como, neste estágio primitivo, as
relações carnais eram reguladas por uma promiscuidade tolerante ao comércio
sexual entre pais e filhos e entre pessoas de diferentes gerações, não havendo
ainda as interdições e barreiras impostas pela cultura, nem relações de
matrimônio ou descendência organizadas de acordo com sistemas de parentesco
culturalmente definidos, não é possível falar em família nesse período.
De acordo com Morgan, aos três estágios pré históricos de cultura correspondem,
por sua vez, três modelos de família: Na Família Consangüínea, que é expressão
do primeiro progresso na constituição da família, na medida em que excluem os
pais e os filhos de relações sexuais recíprocas, os grupos conjugais classificam-se
por gerações, ou seja, irmãos e irmãs são, necessariamente, marido e mulher,
revelando que a reprodução da família se dava através de relações carnais
mútuas e endógenas. O segundo progresso corresponde à Família Panaluana, da
qual são excluídas as relações carnais entre irmãos e irmãs, criando a categoria
dos sobrinhos e sobrinhas, primos e primas, manifestando-se como um tipo de
matrimônio por grupos em como um tipo de matrimônio por grupos em
comunidades comunistas. É a partir deste modelo de comunidades comunistas. É
a partir deste modelo de família que são instituídas as gens, ou seja, um “circulo
fechado de parentes consangüíneos por linha feminina, que não se podem casar
uns com os outros” (p.36), consolidando-se por meio de instituições comuns, de
ordem social e religiosa, que o distingue das outras gens da mesma tribo. Com a
ampliação das proibições em relação ao casamento, tornam-se cada vez mais
impossíveis as uniões por grupos, que foram substituídas impossíveis as uniões
por grupos, que foram substituídas pela Família Sindiásmica, com a qual já se observa o matrimônio por pares, embora a poligamia e a infidelidade permaneçam
como um direito dos homens. Das mulheres exigi-se agora rigorosa fidelidade,
sendo o adultério cruelmente castigado. Entretanto, ainda se considera a linhagem
feminina, o que garante o direito materno em caso de dissolução do vínculo
conjugal. De acordo com Engels, a família sindiásmica é o estágio evolutivo que
permitirá o desenvolvimento da Família Monogâmica.
Até o surgimento da família sindiásmica, predomina  a economia doméstica
comunista, na qual há preponderância da mulher dentro da gens, não obstante já
existisse a divisão sexual do trabalho como primeira forma de divisão do trabalho.
Entretanto, quanto mais as relações perdiam seu caráter primitivo por força do
desenvolvimento das condições econômicas, tanto mais opressivas as relações se
tornaram para as mulheres, já que elas deviam ansiar pelo matrimônio com um só
homem, renunciando às disposições derivadas do matrimônio por grupos, o que
ao homem nunca foi verdadeiramente proibido. Assim, da mesma forma que o
matrimônio por grupos é característica do estado selvagem, a família sindiásmica
é da barbárie e a monogamia da civilização. Mas foi preciso que as mulheres
efetuassem a passagem ao casamento sindiásmico para que os homens
introduzissem a estrita monogamia, com efeito, somente para as mulheres. E isso
foi possível por que no matrimônio sindiásmico, além da verdadeira mãe, passa a
existir a figura do verdadeiro pai, que torna-se o proprietário, não só da sua força
de trabalho, mas dos meios de produção e dos escravos. E à medida que a
posição do homem ganha mais importância em função do aumento das riquezas,
tal vantagem passa a interferir na ordem da herança e da hereditariedade,
provocando a abolição do direito materno em substituição à filiação masculina e
ao direito hereditário paterno.

 A expressão “família” foi inventada pelos romanos  para designar um novo
organismo social, cujo chefe mantinha sob seu poder a mulher, os filhos e certo
número de escravos, com o pátrio poder romano e o direito de vida e morte sob
todos eles. O primeiro efeito do poder exclusivo dos homens no interior da família,
já entre os povos civilizados, é o patriarcado, uma forma de família que assinala a
passagem do matrimônio sindiásmico à monogamia. Já  a família monogâmica,
que nasce no período de transição entre a fase média e superior da barbárie, é
expressão da “grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo” (p.48)
e coincide com o triunfo da civilização nascente. Baseia-se no predomínio do
homem, o qual tem como finalidade procriar filhos cuja paternidade seja
indiscutível; exige-se essa paternidade porque os filhos, na qualidade de herdeiros
diretos, entrarão na posse dos bens de seu pai. Os  laços conjugais são agora
muito mais sólidos, cabendo somente ao homem rompê-los, a quem igualmente
se concede o direito à infidelidade. Quanto à mulher, exige-se que guarde uma
castidade e fidelidade conjugal rigorosa, todavia,  para o homem não representa
mais que a mãe de seus filhos. A monogamia aparece na história sob a forma de
escravização de um sexo pelo outro, como a proclamação de um conflito entre os
sexos. Para Engels (p.54-55).

A primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o
homem e a mulher para a procriação dos filhos [...] O primeiro antagonismo de
classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre homem e mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a
opressão do sexo feminino pelo masculino. A monogamia foi um grande progresso
histórico, mas, ao mesmo tempo, iniciou, juntamente com a escravidão e as
riquezas privadas, aquele período, que dura te nossos dias, no qual cada
progresso é simultaneamente um retrocesso relativo, e o bem-estar e o
desenvolvimento de uns se verificam às custas da dor e da repressão de outros. É
a forma celular da sociedade civilizada [...].A monogamia, portanto, de modo
algum é fruto do amor sexual individual e não se baseia em condições naturais,
mas econômicas, isto é, o triunfo da propriedade privada sobre a propriedade
comum primitiva. Tanto que a antiga liberdade sexual praticada em outros
momentos históricos não deixou de existir com o matrimônio sindiásmico e nem
com a monogamia. É o que Morgan chama de heterismo, relações extraconjugais
dos homens com mulheres não casadas, relações que florescem sob as mais
variadas formas durante todo o período da civilização, transformando-se, aos
poucos, em aberta prostituição. Além do heterismo e da prostituição, outro
desdobramento da monogamia é o adultério, demonstração de que o progresso
manifestado nessa sucessão de matrimônios, cuja expressão máxima é a
monogamia, consiste no fato de que se foi tirando, cada vez mais, das mulheres, a
liberdade sexual do matrimônio por grupos. Se a monogamia nasceu da
concentração de riquezas nas mesmas mãos, as do homem, e do desejo de
transmitir essas riquezas por herança, aos filhos desse homem, simbolizando, na
relação conjugal, a propriedade privada, quando os meios de produção passarem
a ser propriedade comum, a família individual deixará de ser a unidade econômica
da sociedade e, conseqüentemente, o fim da propriedade privada coincidirá com a
libertação o fim da propriedade privada coincidirá  com a libertação sexual da
mulher.

Deste modo, para Engels, “o matrimônio, pois, só se realizará com toda a
liberdade quando, suprimidas a produção capitalista e as condições de
propriedade criadas por ela, forem removidas todas as considerações econômicas
acessórias que ainda exercem uma influência tão poderosa na escolha dos
esposos. Então, o matrimônio já não terá outra causa determinante que não a
inclinação recíproca” (p.67).

Nos Capítulos III, IV, V e VI, Engels trata de explicar como, através da gens se
constituiu o Estado. Para tanto, descreve, a partir das características encontradas
na gens iroquesa, o mesmo processo entre os gregos, romanos, celtas e
germanos, ou seja, entre os povos civilizados da antiguidade.
A palavra latina gens, que Morgan se utiliza para designar um grupo de
consangüíneos, significa linhagem ou descendência.  Desse modo, “gens”
caracteriza um grupo que constitui uma descendência comum e que está unido
por certas instituições sociais ou religiosas, formando uma comunidade particular.
No caso da gens iroquesa, seus membros eram todos livres, cada um obrigado a
defender a liberdade dos outros; têm os mesmos direitos e deveres pessoais e
formam, no conjunto, uma coletividade fraternal, unida por vínculos de sangue. Liberdade, igualdade e fraternidade, embora nunca formulados, são os princípios
da gens e esta é a unidade de todo um sistema social, a base da sociedade
indígena organizada. Um agrupamento de gens formava uma tribo, que se
separava das demais por vastas zonas territoriais debilitadas por contínuas
guerras. Essas tribos se aliavam a outras tribos por força de necessidade
momentânea e, em certas comarcas, as tribos aparentadas na origem e depois
separadas ligavam-se a federações, dando assim o primeiro passo no sentido da
formação de nações. Nelas não se podia haver pobres nem necessitados; além
disso, a família comunista e a gens tinham consciência das suas obrigações para
com os anciãos, os enfermos e os inválidos. Todos os conflitos ou problemas
eram resolvidos pela coletividade, a economia doméstica era feita em comum
pelas famílias e de modo comunista. A terra era propriedade da tribo e as pessoas
exerciam diretamente o poder de escolha de seus representantes militares e
religiosos. Trata-se, portanto, de uma organização  que não conhecia ainda o
antagonismo de classe, nem o Estado, uma vez que este pressupõe “um poder
público especial, distinto do conjunto dos cidadãos que o compõem” (p.78). A gens
grega já se apresenta de modo bastante diferenciado em relação à gens arcaica
dos iroqueses. O matrimônio por grupos começa a ser superado, o direito materno
cede lugar ao direito paterno e por razões de concentração da riqueza no interior
da gens, as jovens agora só podiam se casar no interior da sua própria gens. No
entanto, a gens grega conheceu uma espécie de democracia primitiva que deixará
suas marcas no desenvolvimento do Estado posterior. Seus eixos eram 1) O
conselho (bulê), autoridade máxima e permanente, primitivamente formado pelos
chefes das gens e depois por um grupo de indivíduos eleitos; 2) A assembléia do
povo (ágora), uma verdadeira assembléia geral popular, convocada pelo conselho
a decidir sobre assuntos importantes; nela, todos tinha o direito à fala; 3) O chefe
militar (basileu) que, além de suas atribuições militares, cumpria funções religiosas
e judiciais. Dessa forma, o autor observa que, na constituição grega da época
heróica, ainda estava em vigor a organização gentílica, embora com traços de
decadência, tais como: o direito paterno facilitando a acumulação de riquezas na
família, tornando esta um poder contrários à gens;  a diferenciação de riquezas
contribuindo para a formação de uma nobreza hereditária e de uma monarquia; a
escravidão cada vez mais ampla; enfim, “a riqueza passa ser valorizada e
respeitada como um bem supremo e as antigas instituições da gens são
pervertidas para justificar-se a aquisição de riquezas pelo roubo e pela violência”
(p.87). Faltava, portanto, apenas uma instituição que assegurasse as riquezas
individuais contra a tradição comunista da organização gentílica, que consagrasse
a propriedade privada e que regulasse as novas formas de aquisição; uma
instituição que não só perpetuasse a acumulação e a nascente divisão da
sociedade classes, mas também garantisse o direito  da classe possuidora em
explorar a não-possuidora e o domínio da primeira sobre a segunda - o Estado.  A instituição do Estado na antiga Atenas se deu com a transformação e
substituição parciais dos órgãos da constituição gentílica por formas de autoridade
antes não conhecidas. Constitui-se um poder público central, em Atenas, com
poderes governamentais, que passa a regular o povo, isto é, o restante das
pessoas que não ocupavam lugar no poder central, então dividido em três classes
sociais, os nobres, os agricultores e os artesãos,  sendo dado aos primeiros o
privilégio de ocupar os cargos públicos. A divisão desse povo entre privilegiados e
não-privilegiados é um fator decisivo na desintegração das antigas gens. Além
disso, a apropriação privada dos rebanhos, dos objetos de luxo e de terras,
transfigurando o produto do trabalho em mercadoria, impõe-se sobre as antigas
formas de produção e propriedade coletiva que reinavam na gens. Assim, os
novos grupos formados pela divisão do trabalho (entre cidade e campo e entre os
setores de trabalho na cidade), criam os seus órgãos de defesa, com suas
respectivas instituições e os poderes em torno delas estabelecidos. Cria-se o
Estado, contraditoriamente, uma força separada do povo e à serviço das
autoridades - podendo, inclusive, dirigir-se contra o povo - a ocupar o lugar do
“povo em armas”, que até então havia organizado a autodefesa nas gens, fratrias
e tribos. Sua função é a re-adequação da sociedade frente ao esgotamento das
formas de acumulação, numa sociedade que já vive o  antagonismo de classes,
com a dominação de uma sobre a outra. O Estado Romano, mantendo quase as
mesmas características do Estado Ateniense, traz de novo a instituição do Senado
como um conselho (conselho dos anciãos) para a gestão dos negócios públicos.
Daí que a escolha habitual dos membros mais velhos das gens contribuiu para o
surgimento de uma nobreza gentílica, os patrícios, que passam a ocupar também
os cargos públicos. O Senado tinha poderes para discutir qualquer assunto público
e elaborar leis; quem as votava, entretanto era a assembléia do povo. A noção de
representação política posta pelo exercício da democracia  republicana é
inventada pelo Estado Romano. Porém, havia ainda a  população agregada ao
território de Roma, incorporada por conquista ou imigração, que formava a plebe.
Eles eram considerados livres, podiam ter terras, deviam pagar impostos e prestar
ao serviço militar, mas não podiam pertencer ao conselho das cúrias (assembléia
do povo), exercer função pública ou gozar da distribuição de terras adquiridas pelo
Estado. Com a introdução do critério de riqueza, entre os homens, para o
pertencimento à assembléia, extingui se, definitivamente, os antigos laços
gentílicos. Assim, a instituição do Estado passa a seguir os interesses baseados
na divisão e apropriação de terras, na posse de riquezas e no exercício dos
serviços públicos.

A luta entre patrícios e plebeus vai da República Romana ao Império, levando até
o fim a dissolução da nobreza patrícia na nova classe dos grandes proprietários de
dinheiro e terra. Diferentemente da experiência de  Atenas e Roma, o Estado Germano, herda da gens o sentido de marcas  e comunidade rural, onde imperava
o direito materno, elemento que interferiu diretamente na constituição da
organização social e política entre os germanos. Não obstante a importância dada
ao papel da mulher, a ela coube todas as tarefas do lar, daí a sua autoridade
perante as coisas da casa. A comunidade doméstica patriarcal é, portanto, a fase
intermediária entre a família comunista  matriarcal e a família individual moderna.
É essa mesma família patriarcal que vai explorar  as grandes propriedades de
terras (os latifúndios) após a conquista de Roma. Porém, diante da necessidade
de produção da existência, em função de todos os aspectos que cercaram a
decadência do Império Romano, a alternativa encontrada será a  divisão de terras
e o cultivo de pequenas fazendas. Os órgãos das gens, a que as famílias haviam
retornado, tornam-se órgãos do Estado, que agora devia protegê-las e aos seus
territórios conquistados. O chefe militar é o representante desses novos Estados,
até a transformação dos mesmos em Monarquia. A formação dos feudos se deu
muito em função das guerras que arruinaram a capacidade produtiva das
pequenas fazendas, colocando os camponeses em situação de desproteção e
renúncia, primeiro, junto à nova nobreza e à Igreja, e em segundo ao seu patrão, o
senhor feudal, transferindo-lhe as terras em troca de arrendamento ou prestação
de serviços, até caírem na servidão. Em síntese: As relações entre os poderosos latifundiários
e os servos camponeses dependentes – relações que tinham sido para os
romanos a forma da decadência irremediável do mundo antigo - foram, para nova
geração, o ponto de partida para um novo desenvolvimento. E, além disso, nem
por isso deixaram de produzir um grande resultado: as nacionalidades modernas,
a refundição e a reorganização da Europa ocidental  para a história iminente
(Engels, p.124).

Até aqui, o que fica claro é que os progressos obtidos na produção dos meios de
existência determinaram e determinam o desenvolvimento humano, bem como a
configuração das relações de matrimônio e dos sistemas sócio-políticos, isto é, as
diferentes formas de organização do Estado também coincidem com a ampliação
e esgotamento das fontes existência. Como expressões da sociedade capitalista,
a família monogâmica e o Estado de direito, liberal e burguês
configuram-se como instâncias fundamentais que reproduzem, em seu interior, a
lógica da acumulação e da desigualdade que tão bem a caracteriza. A superação
destas relações sociais, familiares e políticas só  será possível com a superação
das atuais formas de organização da produção.
Barbárie e Civilização - notas finais
Depois do exposto, cabem somente alguns destaques.  O processo histórico
concreto no qual as diferentes mudanças e progressos na organização
econômica, social, política e cultural da humanidade foram produzidas, foi acompanhado e impulsionado por condições materiais  relacionadas à provisão
dos meios de existência e ao esgotamento dos mecanismos de
acumulação, mas também motivado pela tensão e contradição social,
movimentada pela luta de classes. Desse modo, vejamos: Nascida na fase inferior
da barbárie, a riqueza da gens está no fato de que  ela se fundamenta na
economia doméstica praticada de modo comunista, sendo a
propriedade comum, como fruto do trabalho pessoal e coletivo. Por isso, nela não
cabiam a dominação e a servidão, inexistindo, em seu interior, diferença entre
direitos e deveres, nem divisão de classes. Como manifestação da primeira
divisão social do trabalho, que destacou as tribos pastoras em relação ao restante
dos bárbaros que cultivavam a horticultura, tem se o posterior desenvolvimento de
outros ramos da produção, sobretudo após o descobrimento do tear, da fundição
de minerais e o trabalho com metais fundidos, tornando a força de trabalho do
homem capaz de produzir mais que o necessário para sua manutenção. Dadas as
condições históricas engendradas pela primeira divisão social do trabalho, a
escravidão foi uma das suas conseqüências mais marcantes, pois provocou a
cisão da sociedade em duas classes: senhores e escravos, exploradores e
explorados.

Com a segunda divisão social do trabalho, em que  artesanato se separou da
agricultura, a diferença entre pobres e ricos veio  a somar-se à diferença entre
homens livres e escravos, acarretando uma nova divisão da sociedade em
classes, agora entre proprietários e não
proprietários, ou seja, trabalhadores de toda espécie.

Na medida mesma da transição do matrimônio sindiásmico à monogamia, operase a transição da
propriedade coletiva à propriedade privada, na qual a família individual assume o
papel de unidade econômica da sociedade.
Com a segunda divisão do trabalho, consolida-se a divisão do trabalho, ampliando
o contraste entre cidade e campo, incrementando a produção de objetos
fabricados para a troca e transformando o produto do trabalho em mercadoria.
Assim, produz-se uma terceira divisão social do trabalho, que cria uma classe de
homens que não se ocupa da produção e sim, exclusivamente da troca: os
comerciantes. Ao lado da riqueza em mercadorias e escravos, ao lado da riqueza
em dinheiro, aparece a riqueza em terras. A terra também poderia ser
transformada em mercadoria, introduzindo-se a propriedade provada da terra, ou
na linguagem de Marx, a propriedade fundiária. Essas mudanças na economia e
na divisão social do trabalho criam novas necessidades e interesses opostos à
ordem da gens, que veio e ser substituída pelo Estado.

Sobre este último, Engels comenta:  O Estado não é, pois, de modo algum, um
poder que se impôs à sociedade de fora para dentro;[...] É antes um produto da
sociedade, quando esta chega a um determinado grau  de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com
ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue
conjurar (p.135-136).

O Estado caracteriza-se, pois pelo agrupamento dos seus súditos de acordo com
uma divisão territorial; é a instituição de uma força pública que não se identifica
com o povo, ao contrário, pode ser exercido contra o povo; para o seu sustento
são exigidas contribuições por parte dos cidadãos;  estes, divididos em classe,
fazem pressão sob o poder público em nome dos seu interesses, todavia, como o
Estado nasceu da necessidade de conter e administrar os antagonismos de
classe, ele é, via de regra, representante da classe mais poderosa, ou seja,
da classe economicamente dominante, classe que, por  intermédio dele, se
converte também em classe politicamente dominante e adquire, assim, meios de
repressão e exploração da classe oprimida, meios esses que reproduzem a ordem
social estabelecida.

Diante desse quadro, infere-se que a civilização é o estágio da sociedade em que
a divisão social do trabalho, a troca entre os indivíduos e produção mercantil
atingem seu pleno desenvolvimento, tendo como seus  sustentáculos a
propriedade privada dos meios de produção (propriedade da terra, dos escravos e
dos produtos em si), a família monogâmica e o Estado. Baseada neste regime, a
civilização realizou coisas que a antiga sociedade gentílica não podia imaginar.
Entretanto, o fez sob um custo social também jamais sonhado: a ambição mais
vulgar é a força motriz da sociedade, afirma Engels. Seu determinante é a riqueza,
que impõe a cada época uma nova forma de exploração baseada na divisão social
do trabalho.

O autor acredita, por outro lado que, como os interesses da classe dominante não
absolutamente
antagônicos ao bem-estar geral de todos, aos processo de emancipação e
promoção humana, a dissolução desta sociedade, que  vem avançando e
acirrando suas contradições sociais, é sempre uma possibilidade, pois ela mesma
encerra os elementos de sua própria ruína.

___________________________________
Referências Bibliográficas 
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado
Tradução de Leandro Konder. In: MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Obras
escolhidas, Volume 3. São Paulo: Alfa-Omega,  /d, p. 7-143.


Notas
1 Quanto à produção e reprodução do homem em si mesmo, trata-se de pensar, 
como sugere o próprio livro, na produção e reprodução da espécie humana, mas 
também do homem como ser histórico, o que significa identificar o mundo que o 
homem cria para si e ao mesmo  tempo lhe confere sentido e significado, tanto do ponto de vista material como 
simbólico. 

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