sábado, 13 de agosto de 2011

Um pouco sobre o Niilismo e a Existencia



Quando colocamos a razão antes da observação, em vez de investigar o mundo, investigamos nossa própria razão, nosso próprio universo subjetivo. Fechamo-nos para o mundo sensível e passamos a buscar não fatos observáveis, mas “razões últimas”, “intenções por detrás do mundo”, e essa postura investigativa nunca chegou a lugar algum. Investigar o mundo natural com uma postura metafísica equivaleria, digamos, a tentar descobrir a geografia dos continentes não navegando ao seu redor e anotando aquilo que se observa, mas trancando-nos num quarto e meditando sobre a razão de ser, sobre a essência e a finalidade das voltinhas caprichosas de cada continente. Com essa abordagem não apenas ficamos sem saber como o mundo é, mas ainda gastamos todas as nossas energias em investigações inúteis sobre coisa nenhuma.

Percebemos o erro de inquirir o mundo racionalmente, através da razão pura, e passamos a investigá-lo com os olhos, por meio de procedimentos empíricos. Investigamos a realidade através da experimentação científica, e chamamos de leis naturais os padrões que conseguimos descobrir a respeito de como o mundo funciona. Como tais padrões independem da ótica de um sujeito, dizemos que são objetivos. Assim, quando colocamos a observação antes da razão, passamos a investigar aquilo que queremos descobrir. Em vez de devanear, saímos pelo mundo afora, contornamos os continentes e anotamos aquilo que observamos, e só usamos a razão para saber como estruturar nossas investigações, não para dispensar a necessidade de barcos. Essa postura nos proporcionou mapas úteis, que servem para orientar quaisquer navegadores, em vez de apenas grossos livros com especulações metafísicas sobre a essência transcendente da areia fina. Terminada a observação empírica, tudo o que a metafísica pode fazer é afirmar que há um mundo ao qual o mapa corresponde.

Como o objetivo das ciências é conhecer o mundo, e não entender os porquês de seu suposto criador, tivemos de reajustar nossa concepção metafísica do mundo, reduzindo-a àquilo que tínhamos diante de nós e que era passível de investigação. Nosso conhecimento tornou-se então a descrição objetiva dos fatos — em vez de uma tentativa de explicá-los como resultado da subjetividade de um ser superior. A partir de então demos à ciência o papel de investigar os fatos, de explorar o mundo, e à metafísica restou apenas o papel de conceituar o mundo a partir desses fatos que observamos, ajustando um ao outro para permitir um conhecimento cada vez mais preciso e coerente. Passamos a usar a razão não para entender ou explicar o mundo, mas para tornar o conhecimento possível, para justificar a validade das ciências como um saber objetivo.

Como se percebe, hoje o campo da metafísica é muito mais modesto, e busca apenas entender o que é a realidade e como se dá a nossa relação com ela. Busca explicar como é possível entender o mundo objetivamente, não a partir da ótica subjetiva do “ser absoluto”, mas da ótica subjetiva do homem, que está contida na própria realidade natural, e não acima dela. Assim sendo, o que hoje denominamos metafísica não é a tentativa de investigar o que existe “além” da física, mas além da experiência imediata. Ela busca distinguir aquilo que existe em si mesmo — e que existiria mesmo se não existíssemos — daquilo que existe apenas em nossas mentes. Com essa abordagem, já não tentamos justificar o mundo, mas o conhecimento. Em vez de distinguir entre ser e essência, entre dentro e fora da física, passamos a distinguir entre subjetivo e objetivo, entre dentro e fora do homem. Abandonamos a ideia de que haveria uma “essência transcendental” inefável, pois percebemos que essa essência era apenas nossa subjetividade projetada no mundo exterior.

Esse movimento de naturalização tem profundas implicações a respeito de como pensamos o mundo e o lugar do homem na existência — e, como essa mudança de ótica é relativamente recente, ainda carregamos muitos preconceitos metafísicos herdados da metafísica tradicional essencialista. A relação do niilismo com a metafísica, no caso, seria justamente a tentativa de entender as implicações de reduzir o homem ao natural. O niilismo existencial nega que haja sentido em buscar um sentido subjetivo no mundo objetivo, exterior ao homem. Ou seja, a investigação da realidade natural nunca poderá envolver questões subjetivas, pois não podemos investigá-las por meio da observação de fatos naturais.

Para levar tais questões subjetivas adiante, investigando, por exemplo, a “razão de ser do homem”, precisaremos naturalizar essa questão, isto é, abordá-la dentro do contexto de um mundo natural regido por leis físicas impessoais. O problema é que, ao naturalizar a subjetividade, a questão mostra-se algo tão despropositado quanto procurar uma fundamentação física para o Natal ser em dezembro. Entender nossa subjetividade como resultado de um processo natural torna ilegítima a maioria das questões que levantamos sobre o mundo em si mesmo. Assim, quando o âmbito da reflexão metafísica fica amarrado à ciência, à experimentação, aos fatos naturais, o resultado é que deixam de ser admissíveis as investigações metafísicas que não digam respeito àquilo que foi observado no mundo natural. Afirmar que o homem não pode procurar para si mesmo um sentido que não seja baseado em fatos naturais equivale, é claro, a destruir a ideia de sentido pela raiz — ficando as investigações sobre o sentido da vida restritas a fatos naturais, como sobrevivência da espécie e perpetuação genética, por exemplo.

Como se nota, o niilismo faz o incômodo papel de “carrasco das investigações sem sentido”. Não se trata realmente de uma ideologia, de uma ótica com qualquer objetivo “positivo”, mas de uma postura de reflexão analítica e retificadora. O niilismo não busca explicar ou guiar o homem, mas situá-lo imparcialmente dentro daquilo que se conhece por meio da ciência. Nessa ótica, como o fim da metafísica tradicional equivale a uma ruptura radical com a teologia, podemos dizer que o niilismo faz o papel de coveiro do sentido: busca sepultar todas as questões levantadas com base na suposição de que haveria uma “razão” para tudo o que existe. O além desaparece, restando apenas o aqui.

Nessa abordagem, aquilo que denominamos vazio da existência seria precisamente o vácuo criado por essa drástica redução de nossa concepção metafísica do mundo. Pensávamos que o que existia dentro de nós, nossa subjetividade, também existia fora de nós, refletindo os “princípios últimos” da realidade, algo como um “espírito do mundo”. Agora, reduzindo o mundo à física, aos fenômenos naturais, essa essência passou a equivaler às leis físicas — algo que julgávamos ser apenas uma pequena parcela da realidade. Quando passamos a ver o mundo como algo natural e objetivo, tornamo-nos também algo natural e objetivo, e isso nos decepcionou grandemente — sendo o papel do niilismo manter o homem decepcionado até que decida abandonar suas criancices existenciais.

Entendendo que as leis físicas são, por assim dizer, a “essência” da realidade, a observação mais interessante a ser feita é a seguinte. A existência do homem é uma lei física? Não. Há algo no mundo natural que torne a existência do homem necessária como a gravidade? Não. Segue-se que não fazemos parte do mundo natural enquanto homens, mas enquanto matéria. Como não há leis naturais subjetivas, nossa subjetividade não tem essência. Em vez de necessária, a existência do homem é contingente: somos um acidente. A naturalização da realidade implodiu a subjetividade, e o homem foi reduzido a nada.

***

Feitas essas observações, vemos que o niilismo nos coloca numa situação bastante estranha, como se fôssemos visitantes no mundo, hóspedes temporários da matéria — e é exatamente esse o caso. Somos um fenômeno natural, e nossa ideia aqui é nos revisarmos por completo enquanto tais, passando a limpo nossa compreensão da realidade.

Até este ponto, ocupamo-nos em explicar que o vazio da existência decorre de reconhecermos o caráter não-humano do mundo em si. Daqui em diante, nos dedicaremos a delinear com maior clareza o que seria esse mundo não-humano, distinguindo-o de nosso universo subjetivo. Nossa primeira observação será a respeito da busca pelo conhecimento. Isso foge um ponto do assunto, mas é importante. Depois começaremos a delinear a distinção entre objetivo e subjetivo em detalhes, e daremos alguns exemplos de “aplicação” do niilismo enquanto procedimento analítico.

Não há dúvida de que compreender o mundo sempre foi nossa maior ambição filosófica. Porém, exceto pela curiosidade, no processo de entendê-lo não há qualquer ponto de partida seguro, e isso sempre nos incomodou. Foram propostas muitas soluções para o problema da incerteza em nosso conhecimento, mas todas elas se mostraram inconclusivas — ainda hoje não temos qualquer certeza. O que dificilmente nos ocorre, entretanto, é questionar o ponto de chegada: as certezas. Se não temos qualquer ponto de partida seguro, por que achamos seguro dizer que a certeza é o ponto de chegada? Ora, certezas são o objetivo de quem busca segurança, não conhecimento. O problema da incerteza nasce simplesmente de nossa angústia — não se trata de algo a ser solucionado por meio da investigação, mas por meio de calmantes.

Perceba-se, então, que não faz sentido procurar certezas no mundo, pois o próprio conceito de certeza foi inventado por nós mesmos — e não com o fim de melhor conhecer o mundo, mas de nos sentirmos mais seguros. Repudiamos certezas porque queremos entender o mundo, não justificar nossos rodeios ansiolíticos. A crença na necessidade de certezas desvirtua nossa compreensão porque, o aceitarmos a noção de certeza, passamos a investigar a realidade física em busca dessas mesmas certezas, num processo obviamente circular. Esse objetivo de alcançar “verdades absolutas” nunca foi demonstrado como válido, apenas suposto como desejável por filósofos medievais inspirados pela matemática.

Nessas circunstâncias, se não podemos partir do pressuposto de que devemos buscar certezas, já não temos ponto de partida nem de chegada, o que é ótimo. Livres desses preconceitos, podemos começar a construir uma visão imparcial, que não está comprometida com a “paz na alma” como critério da verdade.

Apenas agora, saindo desse círculo, abandonando todas as expectativas, nosso ponto de partida passa ser observar o que temos diante de nós. Abrimos os olhos, vemos que há um mundo, e que estamos nele — mais nada. Essa é a postura mais básica e neutra que podemos adotar. Partir de posturas complicadas e confusas torna tudo complexo e confuso, então partimos de nossa existência no mundo, que é a coisa mais elementar e imediata à qual temos acesso. Claro, não temos “fé” nisso, não pensamos que se trate de uma verdade incontestável. Talvez estejamos errados ao pensar que existimos. Talvez existir seja uma ilusão. Há infinitos talvezes teóricos, mas queremos que também nossos motivos para a dúvida sejam baseados em fatos, não em suposições metafísicas inócuas.

Sendo que não possuímos motivos razoáveis para duvidar de nossa existência, não duvidamos. Pensamos que existimos porque estamos aqui, e só. Essa não é uma questão que possamos resolver por meio de meditações metafísicas — não temos como investigá-la. O que nos leva a aceitar a existência do mundo como um fato é o fato de o termos diante de nós. Isso é tudo o que podemos dizer. Sabemos que existir é um absurdo, mas é um fato absurdo, não apenas uma especulação.

Desse modo, existir não se trata de uma crença metafísica: trata-se simplesmente de abrirmos os olhos e nos vermos acontecer neste algo que chamamos mundo. Nossa postura seria metafísica apenas se abríssemos os olhos acreditando que devemos buscar certezas ou razões últimas. Em vez disso, abrimo-los tão somente, e é isso o que vemos. Se existir é uma ilusão, é diante da ilusão que estamos, e queremos conhecê-la, seja ela o que for. Essa incerteza básica sobre o existir é algo que simplesmente temos de aceitar, do contrário viciaremos nossa investigação logo de início, passando a andar em círculos à moda dos teólogos.
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Autor: Cancian
Adaptação: Marivalton Rissatto
Obs: Créditos ao autor.

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