sábado, 24 de março de 2018

As Novas Armas da Rússia (3): Implicações militares



organizado por Ruben Bauer Naveira
Este é o terceiro artigo da série “As Novas Armas da Rússia”, que busca apresentar ao público brasileiro a nova realidade mundial inaugurada pelo discurso do presidente da Rússia Vladimir Putin no dia primeiro de março, o qual marca uma ruptura histórica de consequências imensuráveis para todo o mundo inclusive o Brasil: os Estados Unidos já não detêm mais a supremacia militar no planeta, e os seus dias de superpotência estão contados.
Esta série é também composta pelos seguintes artigos:
– As Novas Armas da Rússia (2): Resumo das armas(compilação pela equipe do site SouthFront.org)
– As Novas Armas da Rússia (4): Implicações políticas (análise por The Saker)
– As Novas Armas da Rússia (5): Implicações para o Brasil (análise por Ruben Bauer Naveira)

As Novas Armas da Rússia (3): Implicações militares
Por Andrei Martyanov
Durante a guerra russo-georgiana de agosto de 2008, as operações do 58º Exército da Rússia foram definidas como “coerção para a paz”. É definição adequada, que faz lembrar o que estava então realmente em jogo. Os russos venceram aquela guerra e, sim, realmente coagiram a Geórgia a adotar comportamento muito mais pacífico. Nos termos de Clausewitz, os russos alcançaram o principal objetivo da guerra, dado que compeliram o inimigo a fazer a vontade da Rússia. Os russos, como mostram os eventos dos últimos 19 anos, já não têm ilusões sobre a possibilidade de algum tipo de conduta civilizada razoável do Ocidente como um todo, menos ainda dos EUA, que continuam a viver na bolha que os isola das vozes exteriores da razão e da paz. O currículo global dos EUA das últimas décadas não exige quaisquer elaborações sofisticadas: é currículo de repetidos desastres militares e humanitários.
O discurso de Vladimir Putin no dia 01mar2018 à Assembleia da Federação Russa não tratou das próximas eleições presidenciais, como sugerem muitos no Ocidente obcecados com eleições. A fala de Putin teve o objetivo de coagir as elites norte-americanas, se não para a paz, pelo menos para alguma forma de sanidade – aquelas elites que estão atualmente completamente isoladas das realidades geopolíticas, militares e econômicas de um mundo recentemente surgido. Como no caso da Geórgia em 2008, a coerção baseou-se no poder militar. O Exército Russo pré-Shoigu [N. do T.: refere-se ao general Serguei Shoigu, Ministro da Defesa da Rússia, que desde então tem comandado a modernização das Forças Armadas da Rússia], com todas as deficiências reais e sabidas, precisou de apenas cinco dias para liquidar a força georgiana treinada e parcialmente equipada pelos EUA – a tecnologia, o pessoal e o manejo operacional do Exército Russo foram simplesmente melhores. Obviamente, esse tipo de cenário não é concebível entre Rússia e os EUA; vale dizer, não é... a menos que o mito da superioridade tecnológica dos EUA tenha esvaziado como bolha de sabão.
A maioria das elites do poder nos EUA jamais prestaram um dia de serviço militar na vida, nem nunca frequentaram instituições acadêmicas militares sérias. Sua expertise em questões tecnológico-militares e geopolíticas se limita a um ou dois 'seminários' sobre armas atômicas, e, no melhor dos casos, aos esforços do Serviço de Pesquisa do Congresso. Essas elites simplesmente não têm a qualificação mínima indispensável para compreender a complexidade e a natureza de uma força militar; muito menos são capazes de compreender o serviço que presta esse tipo de força. Elas simplesmente não têm pontos de referência. Mesmo assim, uma vez que são produto da cultura norte-americana pop-militar – também chamada “pornografia militar” ou simplesmente propaganda –, essa coleção de advogados, 'cientistas políticos', sociólogos e jornalistas que dominam a cozinha estratégica norte-americana e que vivem de cozinhar, em regime non-stop, as doutrinas geopolíticas e militares as mais delirantes –, eles com certeza entendem alguma coisa, quando veem os seus entes queridos com um alvo desenhado ou na testa ou nas costas.
A mensagem de Putin aos EUA foi extremamente simples: fez os EUA lembrarem as incontáveis vezes em que se recusaram até a ouvir o que os russos tinham a dizer sobre a posição da Rússia no Tratado dos Mísseis Antimísseis. Como escreveu Jeffrey Lewis, em um momento de surpreendente sobriedade da revista Foreign Policy:
A verdadeira origem da nova geração de bizarras armas nucleares russas não está na mais recente Atualização da Doutrina Nuclear dos EUA, mas na decisão do governo George W. Bush, em 2001, de retirar os EUA do Tratado dos Mísseis Antimísseis; e no fracasso bipartidário dos dois governos, de Bush e de Obama, que absolutamente não conseguiram dedicar atenção significativa às preocupações dos russos frente aos mísseis de defesa dos EUA. Putin disse claramente em seu discurso: “Durante todos esses anos, desde a saída unilateral dos EUA do Tratado dos Mísseis Antimísseis, nós trabalhamos sem descanso em armas e equipamentos avançados, que nos levaram a descobertas indispensáveis para desenvolver novos modelos de armas estratégicas. Esses feitos tecnológicos agora estão aí. Infelizmente, nós não conseguimos os feitos diplomáticos de que precisávamos”.
A mensagem de Putin foi clara: “Ninguém quis conversar conosco sobre o xis da questão da nossa segurança nacional. Ninguém quis nos ouvir. Agora, nos ouvirão”. Desse ponto em diante, a fala de Putin só pode ser descrita como um “Stalingrado versus Pearl Harbor” da tecnologia militar. Os desdobramentos estratégicos dos mais novos sistemas de armas que Putin apresentou são imensos. De fato, eles têm peso histórico decisivo. Claro, muitos especialistas norte-americanos, como era de se esperar, trataram de minimizar o evento o mais possível, o qual não passaria de evento de autopromoção – é o que se pode esperar vindo de qualquer ‘especialista’ da comunidade militar norte-americana. Já outros não foram tão longe, e vários, sim, nem tentaram disfarçar o susto. A impressão geral hoje, um dia depois da apresentação de Putin, pode ser descrita, em termos simples, do seguinte modo: o degrau que separa os mísseis dos EUA e da Rússia é real, mas não se trata de um mero degrau; se trata, na verdade, de um abismo tecnológico. Paradoxalmente, esse abismo nem está onde muitos até já admitiram que estaria – por exemplo, no míssil balístico RS-28 Sarmat, cuja existência e características aproximadas eram mais ou menos conhecidas já há anos. Claro que se trata, inegavelmente, de realização tecnológica impressionante, um míssil balístico que não só tem alcance praticamente ilimitado mas que, além disso, é capaz de adotar trajetórias que tornam inúteis todas as defesas com mísseis antimísseis. Afinal, ser atacado a partir do Polo Sul por um míssil que viajará sobre toda a América do Sul, absolutamente não é evento que os militares dos EUA tenham meios para neutralizar. E eles continuarão sem dispor desses meios por ainda muitos e muitos anos.
O mesmo se pode dizer do sistema de asa planadora hipersônica de velocidade Mach 20, chamado Avangardque já está sendo produzido em série, num desenvolvimento completamente surpreendente – os EUA têm programa semelhante para esse tipo de arma, mas ainda não lograram sucesso; ideias assim circulam nos EUA desde meados dos anos 2000s, sob o guarda-chuva do programa PGS (Prompt Global Strike). Essas são sim fantásticas conquistas tecnológicas dos russos, que Jeffrey Lewis chama de “bizarras” apenas para não confessar que “nós não temos nada que sequer se aproxime disso”, mas nem foi esse o verdadeiro choque. Vários dos meus artigos nesse universo trataram precisamente da área na qual os EUA estão absolutamente atrasados: os mísseis cruzadores, todos os tipos deles. Previ há muito tempo que o real declínio militar dos EUA viria precisamente desse lado. Hoje é absolutamente claro que a Rússia está em posição de gigantesca vantagem militar-tecnológica em mísseis cruzadores e aerobalísticos, décadas à frente dos EUA nesse campo crucial.
Enquanto os acadêmicos ocidentais discutiam esses sistemas exóticos e sem dúvida surpreendentes, projetados e construídos para transportar armas atômicas até qualquer ponto do globo com a mais alta precisão, muitos daqueles que são realmente profissionais lá estavam sem respirar, de queixo caído, ao ser relevado o míssil Kinzhal (adaga). Essa sim, é a arma que muda definitivamente o jogo, em termos geopolíticos, estratégicos, operacionais, táticos e psicológicos. Já se sabia há algum tempo que a Marinha russa dispunha de um míssil revolucionário, de velocidade Mach 8, o míssil antinavios 3M22 Zircon. Por mais impressionante e virtualmente não interceptável por qualquer das defesas conhecidas que o Zircon seja, o Kinzhal é simplesmente estarrecedor, tais as suas capacidades. O Kinzhal, que muito provavelmente é baseado no padrão do famoso míssil Iskander, alcança Mach 10, é altamente dirigível e manobrável. Esse míssil aerobalístico com alcance de 2.000 quilômetros, transportado e lançado por jatos MiG-31BM, simplesmente reescreveu o manual da guerra naval. É arma que torna obsoletas as frotas de superfície. Não, você não está lendo errado. Nenhuma defesa aérea ou sistema antimísseis que há hoje no mundo é capaz de obter qualquer vantagem no confronto com o Kinzhal (talvez com a exceção do futuro S-500, especialmente projetado para interceptar alvos hipersônicos [N. do T.: o mais avançado sistema russo antimísseis]) e, muito provavelmente, levará décadas até que se encontre um antídoto para ele. Mais especificamente: nenhum sistema moderno ou projetado de defesa aérea usado por quaisquer das frotas da OTAN pode interceptar nem sequer um único míssil dotado de tais características. Uma salva de cinco ou seis desses mísseis garante a destruição de qualquer porta-aviões e respectiva grupo de combate de destroieres e cruzadores, por exemplo. E tudo isso sem usar munição nuclear.
O emprego de tal arma – detalhe importante, especialmente porque agora sabemos que já há uma delas voando no Distrito Militar Sul da Rússia – é muito simples. O ponto-alvo mais provável de mísseis lançados dos MiG-31’s estará nas águas internacionais do Mar Negro, o que implica dizer que todo o Mediterrâneo Oriental estará fechado para qualquer tipo de navios ou esquadras de superfície.
A Rússia pode também fechar completamente o Golfo Pérsico. Ela pode também estabelecer uma vastíssima zona de exclusão no Pacífico, áreas nas quais os jatos MiG-31 estacionados em Yelizovo na península de Kamchatka ou na Base Aérea Centralnaya Uglovaya em Primosrky Kraipoderão patrulhar grandes distâncias sobre o oceano. Vale ressaltar que a atual plataforma de transporte e lançamento do míssil Kinzhal é o MiG-31 – possivelmente o melhor jato interceptador da História. Obviamente, a capacidade do jato MiG-31 para alcançar altas velocidades supersônicas (bem acima de Mach 2) é um fator chave para o lançamento. Mas não importa quais sejam os procedimentos para lançar essa arma aterrorizante, as consequências estratégicas imediatas da entrada em operação do Kinzhal são as seguintes:
1. Os porta-aviões são finalmente deslocados para o nicho da mera projeção de poder contra adversários fracos e indefesos, e para bem longe das áreas marítimas da Rússia, sejam o Mediterrâneo, o Pacífico ou o Atlântico Norte. Significa também uma zona de exclusão para qualquer um dos 33 destroieres e cruzadores da Marinha americana equipados com o sistema Aegis [N. do T.: sistema originalmente defensivo de mísseis antimísseis, que podem no entanto disparar também mísseis de ataque Tomahawk, que são mísseis de cruzeiro de difícil detecção, o que sempre representou uma grave preocupação para a Rússia], cruciais para o escudo dos chamados Mísseis Balísticos de Defesa dos norte-americanos;
2. O míssil Kinzhal torna completamente inúteis e obsoletos as clássicas esquadras de combate comandadas por porta-aviões, que se tornam imprestáveis como principal força de ataque contra adversário de força igual ou semelhante. Também deixa sem defesas qualquer navio de combate de superfície, sejam quais forem as suas defesas antiaérea e antimísseis. O Kinzhal anula completamente as centenas de bilhões de dólares que foram investidos naquelas plataformas e armas, que de repente foram convertidas em nada mais que gordos alvos indefesos. Todo o conceito de Batalha Ar-Mar, que também atende pelo nome de Conceito Conjunto para Acesso e Manobra nas Áreas Globais em Comum, e que é a pedra de toque da dominação global pelos EUA, foi também tornado simplesmente inútil. Pode-se chamar isso de catástrofe completa, doutrinária e orçamentária.
3. O chamado “controle sobre os mares e negação de acesso aos mares” muda completamente de natureza, as duas coisas se fundem. Quem possui essas armas é simplesmente 'dono' de vastos espaços nos mares cobertos pelos alcances do míssil Kinzhale das aeronaves que os transportam. Isso também remove completamente qualquer apoio de superfície, crucial para os submarinos em todos os casos, expondo-os à aviação e aos navios de superfície de patrulha e de guerra antissubmarina. O efeito é multiplicativo e é profundo.
A Rússia possui muitos desses transportadores-lançadores – o programa de modernização dos jatos MiG-31s para o modelo BM já está há anos funcionando a pleno vapor, e as unidades da frente de combate da Força Aérea russa vêm recebendo considerável influxo desse tipo de aeronave. Ficou claro agora o motivo pelo qual foi empreitado esse processo de modernização – ele fez dos MiG-31BM as plataformas de lançamento do Kinzhal. Como o Major-Almirante James L. Jones deixou registrado em 1991, depois da Primeira Guerra do Golfo: “Para botar para correr em pânico uma esquadra de combate de porta-aviões e tudo, basta alguém despejar na água meia dúzia de barris com inflamáveis”. O míssil Kinzhal efetivamente remove para milhares de quilômetros de distância das praias russas qualquer força de superfície não suicida, e torna irrelevante toda a sua capacidade. Em linguagem de leigos, significa apenas uma coisa – toda a frota de superfície da Marinha dos Estados Unidos vira uma força oca, boa só para desfilar em dias de parada e exibir bandeira nos litorais de países fracos e subdesenvolvidos. E isso pôde ser feito apenas com uma fração mínima dos custos astronômicos das plataformas e armas norte-americanas.
É muito difícil, nesse momento, prever o efeito de médio e longo prazo, nos EUA, do discurso de Putin. Pode-se prever bem mais facilmente que usarão o clichê, muito batido e já semimorto, da “assimetria”. Mas esse clichê não se aplica. O que aconteceu no dia primeiro de março desse ano, com o anúncio e a exibição das novas armas russas, não é fenômeno de “assimetria”: foi o reconhecimento do advento de um paradigma completamente novo na concepção da guerra, na tecnologia militar e, como consequência, também na estratégia e no manejo operacional. As velhas regras e os velhos saberes já não se aplicam mais. Os EUA não estavam e não estão preparados para o que veio, apesar de muitos profissionais competentes, inclusive nos EUA, terem alertado sobre um novo paradigma militar-tecnológico que estava em andamento, e alertado também para a miopia e a arrogância dos norte-americanos em tudo que tenha a ver com militares e militarismos. Como o coronel Daniel Davies se viu forçado a admitir:
Por mais justificado que o orgulho possa ter sido naquele momento, o orgulho rapidamente se converteu na mais insuportável arrogância. Hoje, essa arrogância é perigo mortal para a nação. Talvez nada exemplifique melhor essa ameaça do que o sistema disfuncional de compras do Pentágono.
É prudente prever hoje, considerado o pano de fundo de uma abordagem geral da guerra pelos norte-americanos, que não haverá resposta tecnológica sensível dos EUA à Rússia no futuro previsível. Os EUA simplesmente não têm recursos para se contrapor, exceto botar para rodar suas máquinas de imprimir dinheiro, levando a si próprios completamente à falência nesse processo. Mas esse é o ponto: os russos sabem disso, e o discurso de Putin não visou ameaçar diretamente os EUA, ainda que, para todos os efeitos e propósitos, os EUA estejam hoje simplesmente indefesos diante do arsenal de armas hipersônicas da Rússia. A Rússia não persegue o objetivo de destruir os EUA. As ações da Rússia são ditadas por uma única razão: dar um tranco, meter um trabuco no nariz de um bêbado armado com dois punhais que está aos pulos num bar apinhado de gente, para obrigá-lo a parar de pular, entregar os punhais e ouvir o que os outros tenham a dizer. Em outras palavras, a Rússia entrou armada de pistola numa briga de faca. Porque esse parece ser o único modo de lidar, hoje, com os EUA.
Se o tranco e a demonstração da superioridade militar-tecnológica dos russos terão algum efeito, como foi desde o começo a intenção dos russos, poderá ter início uma conversa racional e sensível sobre a nova ordem mundial entre os atores geopolíticos decisivos. O mundo já não tem como continuar arcando com um abusador valentão, pretensioso, superficial e guiado por autopromoção, que nem percebe o que faz e que ameaça a estabilidade e a paz do mundo. A autoproclamada hegemonia dos norte-americanos está encerrada, precisamente no ponto que realmente importa para qualquer real ou suposto hegemon – no campo militar. Ela já estava encerrada faz algum tempo, mas faltava o discurso de Putin para demonstrar o velho e bom truísmo de Al Capone, que sabia que sempre se pode obter muito mais com uma palavra gentil e uma arma do que só com a palavra gentil. Afinal de contas, ninguém mais que a Rússia insistiu em usar só a palavra gentil. Não funcionou, e os EUA agora só têm a si mesmos para culpar.

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