segunda-feira, 24 de agosto de 2015

"Porquê não mataram todos em 1964"


Sou limitado, limitadíssimo. Não consigo entender determinadas coisas, nem com reza braba. Quer ver uma coisa que não entendo? Por que é proibido fazer a apologia do nazismo, mas é permitido fazer a apologia da ditadura militar, do extermínio por razões ideológicas etc.? Ah, já sei: Médici foi bem mais bonzinho do que Hitler. Que burro eu!
Bem, eu poderia me alongar nesse assunto, mas o meu texto não teria nem um pingo do brilhantismo do artigo publicado pelo grande Mário Magalhães em seu blog ("O silêncio cúmplice aceita a barbárie").
Mário esgotou o assunto. Sobrou-me a questão linguística, que, no caso, diz respeito à penúria gramatical da frase que se lê num cartaz que uma nobre senhora brandia no domingo para expor a sua também nobre visão de mundo: "Porquê não mataram todos em 1964". Sim, assim mesmo.
Posto isso, vou tentar ajudar essas etéreas almas a redigir cartazes que, ainda que indignos da nossa semelhança a Deus, sejam linguisticamente "limpos", ao menos no que diz respeito a "por que", "por quê", "porque" e "porquê".
Comecemos pela forma (mal) empregada por essa candidata ao Nobel da Paz, que, salvo engano, queria ter escrito uma frase interrogativa direta. Nesse tipo de construção, não se emprega "porquê"; emprega-se "por que", sem acento, a menos que haja uma interrupção depois do "que": "Por que Deus põe no mundo gente de alma tão ignóbil?"; "Você não vai? Por quê?".
Também se emprega "por que" em perguntas indiretas, como se vê em "Não sei por que essa gente é tão limitada" ou "Ninguém sabe por quê". Note, por favor, que no segundo exemplo o "que" foi acentuado.
No caso da sentença perpetrada pela discípula direta da Madre Teresa de Calcutá, a forma adequada seria "por que". E como deveria terminar o sublime pensamento? Com ponto de interrogação? Ou sem ele?
Depende. Quando se escreve, por exemplo, "Por que essa gente diz barbaridades?", pergunta-se por que essa gente diz barbaridades; quando se escreve "Por que essa gente diz barbaridades", anuncia-se que se vai explicar a razão pela qual essa gente diz barbaridades.
O que (suponho) a nobre senhora queria dizer se escreve assim no português formal: "Por que não mataram todos em 1964?" (que Deus me abra as portas do céu por eu reproduzir pensamento tão celestial!).
Anote uma dica simples: independentemente da presença ou da ausência do ponto de interrogação, ou seja, independentemente de a pergunta ser direta ou indireta, escreve-se "por que"/"por quê" e pode-se substituir esse "por que"/"por quê" por "por qual razão", "por qual motivo" ou, em certos casos, por "a razão/o motivo pela/o qual": "Por que Emoticon smile 'Por qual razão') essa gente é tão ignóbil?"; "Não sei por que
Emoticon smile 'por qual razão') essa gente é tão ignóbil"; "Por que ('A razão pela qual') não fui a Washington".
Para quem sabe inglês, uma boa dica é ver se entra "why" ou "because". Se entra "why", entra "por que"; se entra "because", entra "porque".
"Porque" é uma conjunção causal ou explicativa, a qual, como já se pode deduzir, introduz a explicação, a causa do que se afirma ou sugere: "Não durma, porque ainda temos muito a fazer"; "Diz barbaridades porque a sua alma é pequena".
E "porquê", a forma empregada pela nossa filha de Maria? É substantivo, sinônimo de "motivo", "causa": "Não entendo o porquê disso".
Como dizia o grande Fernando Pessoa, "tudo vale a pena, se a alma não é pequena". E eu digo: "Senhor, tende piedade de nós". É isso.

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