quinta-feira, 10 de maio de 2012

MISERIA X OBESIDADE


Geopolítica do Acesso: Fome e Obesidade no Século 21

Quando publicou “Geografia da Fome”, em 1946, Josué de Castro certamente não podia imaginar que no Século 21 ainda haveria no mundo um bilhão de pessoas passando fome, e, novidade, um bilhão e meio de pessoas com sobrepeso e obesidade. Segundo estudo da Organização Mundial de Saúde, a obesidade já é uma realidade global, afetando 502 milhões de pessoas. É uma “Pandemia do Século 21”, diz a OMS. O artigo é de Milton Pomar.

Semana passada, o canal de TV da National Geography apresentou um documentário sobre obesos mórbidos, no qual o destaque principal era um norte-americano adulto com 464 kg, há três anos sem conseguir se levantar da cama. Ele pesava o equivalente a oito asiáticos de tamanho “normal”. Após tratamento e cirugia, o “campeão” baixou para 240 kg, quase o mesmo peso de um jovem de 19 anos, indeciso quanto a submeter-se à cirugia de redução do estômago, que o programa também mostrou.

Quando publicou “Geografia da Fome”, em 1946, o médico e geógrafo brasileiro Josué de Castro certamente não podia imaginar que no Século 21 ainda haveria no mundo um bilhão de pessoas passando fome, e, novidade, um bilhão e meio de pessoas com sobrepeso e obesidade, por comerem em excesso. Segundo estudo realizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 199 países, a obesidade já é uma realidade global, afetando 502 milhões de pessoas. Essa situação levou a OMS a denominar a obesidade “Pandemia do Século 21”.

Considerado até há pouco tempo um problema de países ricos, o sobrepeso ultrapassou todas as fronteiras nos últimos 20 anos, e hoje atinge países em desenvolvimento e pobres, nos quais grande parte das populações está urbanizada. Exemplo dramático dessa evolução é o caso do México, que detém a primeira posição no ranking da obesidade mundial, com 30% da população adulta obesa, segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), e um total de 69,5% com sobrepeso.

Vizinho do México, os Estados Unidos (EUA) são o país com a maior quantidade de obesos no mundo: 38 estados possuíam em 2010 mais de 25% de obesos entre a população adulta (em 2007 eram 30 estados nessa condição). Dos 13 restantes, apenas um tinha menos de 19% de obesos, e os demais ficavam entre 20% e 24%. O campeão nacional é o Mississipi, com 33,8% de obesos.

Tendo o Índice de Massa Corporal (IMC) como parâmetro, a parcela da população adulta que é “normal” (IMC entre 18,5 e 24,99) no Laos é de 77,1%; Japão 68,9%; Vietnam 68,5%; Mongólia 66,6%; Filipinas 63,7%; Coréia do Sul 63,2%; Índia 62,5%; China 58,9%; Cingapura 58,3%; Brasil (55,4%), França (53,5%) e Itália (52,6%). Em contrapartida, no Panamá é de 31,5%; Kuwait 33,3%; Reino Unido 33,9%; EUA 35,7%; Nova Zelândia 36,1%; Austrália 39,2%; Turquia 40,1%; Arábia Saudita 42,1% Espanha 44,9%; África do Sul 46,2% e Canadá 46,7%. Esse quadro ainda favorável na Ásia está mudando rápido, e já é visível nas grandes cidades da China, e de outros países da região, o aumento da obesidade infantil e adolescente, resultante da alteração dos hábitos alimentares, pela combinação de maior poder
aquisitivo, intensa publicidade de alimentos hipercalóricos e facilidade de acesso a produtos alimentares industrializados.

O IMC utilizado como parâmetro nesse estudo mundial, é questionado por alguns médicos, que consideram-no insuficiente: para eles, o percentual de obesos seria ainda maior. Outros avaliam que, ao contrário, por utilizar apenas duas variáveis (altura e peso), ele inclui na condição de sobrepeso pessoas que apenas possuem estrutura óssea maior. Mas o IMC é inegavelmente simples, permitindo por isso classificar rapidamente a situação de milhões de pessoas.

Assim que assumiu a presidência dos EUA, Barack Obama tomou a iniciativa de alertar para a dimensão e gravidade desse problema no país, denunciando a contribuição do consumo de refrigerantes para a obesidade. Entretanto, Obama não enfrentou o gigantesco sistema de alimentos industrializados, da produção à publicidade e varejo, maior responsável pelo sobrepeso e obesidade nos EUA e no restante do mundo.

Refrigerantes contribuiriam no Brasil com 6,3 kg per capita de consumo anual de açúcar, substância que tem parcela considerável de “culpa” nessa expansão global da obesidade: o consumo mais do que triplicou nos últimos 50 anos, graças ao aumento do consumo de alimentos e bebidas que utilizam açúcar. No Brasil, por exemplo, onde o consumo per capita era de 15 kg em 1930, em 2000 chegou a 51,7kg e hoje, como na maior parte dos países ocidentais, está na faixa de 55 kg. Essa é a explicação mais direta para a epidemia de diabetes em crianças e adolescentes, que atinge inclusive as populações de países pobres.

As duas maiores populações do mundo, da China e Índia (totalizam 2,55 bilhões de pessoas), têm um consumo de açúcar ainda baixo, 10 kg por pessoa, mas essa média é enganosa, porque na China, onde metade da população é urbana, o consumo real dos 650 milhões de pessoas que moram nas cidades é de quase 20kg per capita; e na Índia, onde a parcela da população efetivamente consumidora são 400 milhões de pessoas, o per capita real desse universo deve chegar a 30kg.

Pode-se deduzir, pela existência do um bilhão de pessoas com sobrepeso e 502 milhões obesas (297 milhões de mulheres e 205 milhões de homens), e pelo “poder de fogo” do sistema de alimentos industrializados, que nos próximos 20 anos o total de obesos no mundo ultrapassará o de famintos.

Essa realidade assusta os profissionais de Saúde do mundo inteiro, que elencam os problemas causados pelo sobrepeso e obesidade (diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares, câncer etc.) e os custos adicionais para os sistemas de saúde dos países mais atingidos por essa pandemia.

Sobre isso, uma certeza todos podem ter: a obesidade causará estragos de proporções incalculáveis nos precários serviços públicos de saúde e elevará os custos de todo o sistema de saúde no mundo, o dos EUA disparado na frente.

Apesar disso, não há ainda um enfrentamento da obesidade como um problema mundial de saúde pública, com direito a campanhas de propaganda, restrições legais etc. Ao contrário, busca-se a sua “aceitação” como um direito individual das pessoas, de poderem escolher como querem ser. E além das lojas especializadas em roupas “extra grande”, de várias outras formas procura-se atender as dimensões e necessidades peculiares dos obesos, como uma adequação do mercado a esse segmento de consumidores: o aeroporto de Campinas(SP), por exemplo, rendeu-se aos fatos: oferece cadeira dupla para obesos na sala de espera. Essa novidade confirma a tendência generalizada de acomodação à realidade dessas pessoas que tem dimensões equivalentes às de duas ou mais pessoas “normais”.

Na lógica dominante de vários países, as pessoas tem o direito de comer e beber várias vezes mais do que uma pessoa de padrão “normal” (60-80 kg, para um homem adulto), desde que tenham poder aquisitivo suficiente para tal. Apesar dessa lógica ter levado os EUA a uma situação-limite em obesidade, semelhante à que o México se encontra (não por coincidência), ela só será efetivamente enfrentada quando os sistemas de saúde entrarem em falência. Ou quando os preços dos alimentos atingirem e se mantiverem em níveis muito acima da média histórica de cada produto.

Mas o medo de ser “politicamente incorreto” na abordagem direta desse problema leva toda a Humanidade a uma armadilha perigosa, porque a obesidade é hoje muito mais do que uma questão de saúde (individual e de financiamento do sistema), ela é uma questão política, diz respeito à sobrevivência de toda a população mundial, na medida em que o consumo de alimentos e água pelo 1,5 bilhão de pessoas com sobrepeso e obesas equivale pelo menos ao de quatro bilhões de pessoas “normais”. O acesso exagerado a alimentos, por parte dessas pessoas, que comem cada uma delas por quatro ou cinco pessoas “normais”, resulta em uma pressão gigantesca sobre a oferta de alimentos, elevando os preços e com isso aumentando a quantidade de famintos entre as populações pobres.

O mercado mundial de alimentos é dominado por meia dúzia de grupos gigantescos, cartel cujo negócio é lucrar com a compra e a venda de alimentos e bebidas, dos produtos agrícolas aos industrializados. E é graças à lógica desses grupos que continua havendo 1 bilhão de pobres famintos, por falta de dinheiro para o acesso à comida suficiente, e, agora 1,5 bilhão de pessoas gordas e enormes de gordas, inclusive crianças e adolescentes.

Assusta verificar a baixa produção de alimentos em países muito populosos da Ásia e África, como a Indonésia, Paquistão, Nigéria, Bangladesh, Filipinas e Etiópia – juntos, somam quase 1 bilhão de habitantes –, e mais ainda ao saber que alguns deles possuem pouca água e desertos e semi-áridos em grande parte do território. Essa situação, mais as estimativas de crescimento da população nos países pobres, sempre leva alguns especialistas a diagnósticos sombrios em relação à oferta de alimentos no mundo, como se esse fosse o maior problema, e não o acesso profundamente desigual aos alimentos – como aliás nunca antes ficou tão evidente.

Entretanto, é verdade, mas em geral ela não é explicitada, que faltará alimentos no mundo quando os pobres de alguns países começarem a comer um pouco mais do que o mínimo para se manter vivos. Particularmente, os pobres da Índia, cerca de 800 milhões de pessoas, total equivalente a quatro vezes a população brasileira. Apesar de ser o segundo país mais populoso do mundo, com 1,2 bilhão de habitantes, a produção indiana de alimentos é muito pequena, se comparada à sua demanda real: em 2010 colheu 120 milhões de toneladas de arroz, 80 de trigo, 14 de milho, 10 de soja e 37 de batatas. A China, com uma população 10% maior (1,34 bilhão), no mesmo ano colheu 197 milhões de toneladas de arroz, 115 de trigo, 178 de milho, 15 de soja e 75 de batatas.

Em 2010, a existência de 88% dos famintos no mundo era concentrada na Ásia e Pacífico (62%), região onde vive mais da metade da população mundial, e na África subsahariana (26%). A América Latina e Caribe tinham 9% do total mundial de famintos. Segundo a FAO, agência das Nações Unidas que trata da Alimentação, a principal razão da fome ainda é a pobreza: nos países asiáticos, o percentual de gastos dos pobres com alimentos fica entre 60% e 70% da renda familiar.

Ora, se um dia esses 800 milhões de indianos pobres tiverem poder aquisitivo para consumir alimentos como os 400 milhões de mexicanos e norte-americanos, simplesmente não haverá no mundo disponibilidade de alimentos para atender 10% dessa demanda reprimidíssima. Por extensão, se o mesmo ocorrer com os demais famintos da Ásia e da África, se eles passarem a ter acesso a alimentos na mesma proporção de um para quatro dos obesos dos EUA e México, “caos” seria uma palavra insuficiente para descrever o horror da fome que se instalaria no mundo. Situação, aliás, que já ocorreu algumas vezes, nos dois últimos séculos, na Índia, China, Brasil e Irlanda, como bem descreve Mike Davis, em “Holocaustos Coloniais”.

Enquanto esse dia não chega, a obesidade continuará a ser tratada como um direito individual, apesar de representar problema mundial de saúde, e não de consumo exagerado de 20% da população do mundo, com implicações graves para os 80% restantes. O moderno sistema de alimentos industrializados continuará lucrando cada vez mais, o Brasil continuará produzindo e vendendo cada vez mais açúcar (será o maior exportador mundial), e em alguns populosos e pobres países asiáticos e africanos, paradoxalmente, a eventual melhora do padrão de vida, com o correspondente aumento do acesso a alimentos, ameaçará a sobrevivência de famintos, obesos, pessoas “normais” e com sobrepeso.






-------------------------------

(*) Milton Pomar, 53, é geógrafo, técnico agropecuário e jornalista agrícola. Editor da revista em chinês “Negócios com o Brasil”, trabalha com a China há 15 anos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários são como afagos no ego de qualquer blogueiro e funcionam como incentivo e, às vezes, como reconhecimento. São, portanto muito bem vindos, desde que revestidos de civilidade e desnudos de ofensas pessoais.Lembrando que vc é o único responsável pelo que disser aqui. Divirta-se!
As críticas, mais do que os afagos, são bem vindas.