Marx e Weber: um diálogo possível
As idéias de Max Weber e de Karl Marx nunca perdem a validade. Durante grande parte do século XX ambos foram colocados em campos opostos, em que suas reflexões sobre a sociedade moderna eram entendidas como interpretações antagônicas, sendo uma, a weberiana, classificada como conservadora e burguesa, e a outra, a marxista, como sendo progressista e fundamentalmente baseada nos ideais revolucionários. Esse suposto dilema já não é mais importante, pois vamos encontrar nesses dois pensadores uma convergência de análise do capitalismo que se tornaram clássicas no campo das ciências sociais e da história. Daí decorre a possibilidade de diálogo entre eles.
Em longos trechos das obras de Marx e Weber as questões postas são as mesmas, e ambos têm, como pensadores, muito mais em comum entre Marx e muitos autores que se dizem seus fiéis seguidores. Um dos elementos centrais que os aproxima está a preocupação de ambos sobre o destino do homem dentro da moderna sociedade capitalista.
No Manifesto Comunista, escrito em parceira com Engels, Marx identifica a história da modernidade como a história do trabalho revolucionário da burguesia que “destruiu as relações feudais, patriarcais e idílicas”, despedaçando “sem piedade (...) os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus ‘superiores naturais’, para deixar subsistir, entre os homens, o laço do frio interesse”. Além disso, a burguesia “afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta”. Fazendo da dignidade pessoal um simples valor de troca, temos nos tempos modernos uma substituição das numerosas liberdades, que foram conquistadas com tanto esforço, “pela única e implacável liberdade de comércio”. Isto significa que no lugar da “exploração velada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, cínica, direta e brutal” (MARX, 1984: 11).
Esse processo revolucionário, despoja de sua auréola todas as atividades até então reputadas veneráveis e encaradas com um profundo respeito. O processo histórico em curso, ao levar a burguesia à condição de classe dominante, segundo a análise de Marx, “rasgou o véu de sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações monetárias”, subvertendo a produção, abalando o sistema social e dissolvendo todas as relações sociais. Como diz Marx: “tudo que era sólido e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profanado” (Cf.,1984 : 12).
Todavia, ao criar o mundo à sua imagem e semelhança, a burguesia promove e acirra ainda mais o antagonismo social, o que pode levar à sua própria superação. As armas das quais ela lançou mão para destruir as relações feudais tendem a voltar contra si. Segundo Marx, a burguesia não forjou apenas as armas que lhe darão morte, mas também os homens que manejarão essas armas – o proletariado. “A burguesia produz seus próprios coveiros. Sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis” (1984: 24). Se Marx analisa a sociedade moderna, procurando entendê-la conceitualmente, por outro lado, ele vislumbra a possibilidade de transformá-la, criando as condições para uma nova ordem social. Isto quer dizer que, se pretende captar a realidade como ela é, ao mesmo tempo coloca em seu horizonte o como ela deveria ser. A sociedade verdadeiramente humana deve ser um dia uma sociedade sem exploração e opressão, e esta possibilidade está dada já agora, na sociedade presente. É por isso que precisamos compreendê-la o mais satisfatoriamente possível. A luta de classes, como lei da história, deve favorecer a construção do futuro desejado, já contido no presente odioso e iníquo.
A transformação de uma forma a outra, de um modo de produção a outro, se dá pelos conflitos abertos por causa da luta entre a classe dominada e a classe dominante em cada época” (RODRIGUES, 2000: 41).
O estudo que Marx fez sobre a sociedade burguesa moderna enraíza-se não no assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano, nem a partir de si mesma, mas nas relações materiais de vida. Desse modo, ele pôde encontrar um fio condutor que possibilitou a construção de uma utopia. No prefácio de Para a crítica da economia política, diz que esse fio condutor corresponde ao seguinte:
na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais (...) Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes (...) Sobrevém então uma época de revolução social” (1987: 29-30).
Com isso em mãos, passou a acreditar que o capitalismo, como modo de produção burguês, pode ser destruído, edificando, assim, em seu lugar uma sociedade sem classes. Ele punha a maior fé na capacidade da ciência em formular uma utopia que pudesse dar conta da sociedade do futuro. Acreditando haver descoberto as leis da história – o seu fio condutor -, Marx vislumbrou a superação da sociedade capitalista e a construção de uma nova sociedade, no qual o homem se reencontraria consigo mesmo, seria um ser autônomo e autoconsciente, trabalhador manual e intelectual ao mesmo tempo. Enfim, os homens e as mulheres seriam seres humanos inteiros, completos.
Portanto, para Marx, é a partir do caráter conflituoso da sociedade, sobretudo a moderna, que podemos edificar um novo mundo, um mundo que será o resultado da abolição da propriedade privada e da extinção do trabalho assalariado.
O que queremos é suprimir o caráter miserável desta apropriação que faz com que o operário só viva para aumentar o capital e só viva na medida em que o exigem os interesses da classe dominante” (MARX, 1984: 28).
A transformação dessa sociedade é resultado de um longo processo histórico, cabendo ao cientista identificá-lo, o que lhe dá as condições para construir uma utopia. Por isso que Marx é categórico sobre essa questão. No prefácio citado, afirma, cheio de esperança e de otimismo, que
as relações burguesas de produção constituem a última forma antagônica do processo social de produção, antagônicas não em um sentido individual, mas de um antagonismo nascente das condições sociais de vida dos indivíduos; contudo, as forças produtivas que se encontram em desenvolvimento no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para a solução deste antagonismo. Daí que com esta formação social se encerra a pré-história da sociedade humana” (MARX, 1987: 30).
A esperança de Marx por uma nova sociedade não pode ser construída sem a presença também da ação educativa. No Manifesto, ele deixa claro que a educação deve ser levada em consideração no momento de se elaborar qualquer projeto de superação das relações sociais burguesas. É preciso, segundo ele, arrancar a educação da influência da classe dominante, do modo burguês de ver o mundo, se não quisermos que as crianças sejam transformadas “em simples objetos de comércio, em simples instrumentos de trabalho” (1984: 32). Entre as medidas a serem implementadas para que um novo tipo de educação seja construído, é preciso praticar uma “educação pública e gratuita de todas as crianças”. Pensando a educação como parte de sua utopia revolucionária, Marx identificou nela uma arma valiosa a ser empregada em favor da emancipação do ser humano, de sua libertação da exploração e do jugo do capital - a construção da sociedade comunista.
Os estudos de Weber sobre a sociedade moderna é tensionada pela análise feita por Karl Marx, que considera os tempos modernos como também o tempo do conflito – o tempo da luta de classes. “A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes” (MARX, 1984: 8). Essa é a lei que Marx descobriu para entender como funciona a história humana. Seja na Roma antiga, na Idade Média ou na sociedade burguesa moderna, verifica-se a presença de uma guerra ininterrupta entre opressores e oprimidos. Contudo, diz Marx, é em nosso tempo que esse antagonismo aparece de forma mais acirrada, em que a sociedade divide-se em dois campos diametralmente opostos: a burguesia e o proletariado.
Embora não fosse um leitor contumaz das obras de Marx, Weber o considerava, ao lado de Nietzsche, como um dos baluartes do pensamento social moderno. As idéias marxistas foram objeto de dedicação de suas reflexões, embora considerasse o marxismo uma teoria monocausal, que dificultava reconstruir adequadamente as conexões sociais e históricas. Sentia que Marx dava a uma perspectiva parcial - o materialismo histórico - uma importância exagerada, reduzindo a multiplicidade de fatores causais a um teorema de fator único. Weber não se opõe diretamente ao materialismo histórico como totalmente errado - nega-lhe simplesmente a pretensão de estabelecer uma seqüência causal única e universal para a realidade histórica.
Na sua opinião, a suposição de Marx de que o movimento da História tem uma direção geral era tão ilegítima quanto a filosofia hegeliana da História, que a originara. Enquanto Weber admitia, com fortes reservas, a utilização de "estágios de desenvolvimento" como "instrumentos heurísticos" que poderiam facilitar a exposição de "esquemas deterministas" baseados em qualquer tipo de teoria geral do desenvolvimento histórico. Weber estava convencido de que o capitalismo não poderia ser efetivamente transcendido num futuro previsível e que o modo capitalista de produção não estava levando a uma luta de classes aberta e irresistível entre trabalho e capital.
No entanto, partilha com Marx da tentativa de colocar os fenômenos "ideológicos" nalguma correlação com os interesses "materiais" das ordens econômica e política. O conceito de burocracia racional é contraposto ao conceito marxista de luta de classes. Ocorre com o "materialismo econômico" o mesmo que acontece com a "luta de classes": Weber não nega as lutas de classes e sua parte na história, mas não as considera como a dinâmica central. Nem nega a possibilidade de uma socialização dos meios de produção. Simplesmente relega essa exigência a um futuro bem distante e refuta qualquer espera de socialismo em nossa época (Cf. WEBER, 1997: 275). Não vê nada de atraente no socialismo. Aos seus olhos, ele simplesmente completaria na ordem econômica o que já acontecera na esfera dos meios políticos. Os estamentos feudais haviam sido expropriados de seus meios políticos e substituídos pelo funcionalismo assalariado do moderno Estado burocrático. A socialização dos meios de produção simplesmente sujeitaria uma via econômica ainda relativamente autônoma à administração burocrática do Estado. Para Weber, a concepção de socialismo contida no Manifesto Comunista está assentada na esperança revolucionária da ditadura política do proletariado. Na sua opinião, um socialismo dessa natureza levaria à maior servidão – a burocratização "O que - ao menos por enquanto - está em marcha é a ditadura do funcionário, e não a do trabalhador" 1997: 268).
Por ALONSO BEZERRA DE CARVALHO Doutor em Filosofia da Educação (USP) e Professor do Departamento de Educação da Unesp-Assis/SP
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Bibliografia :
-MARX, Karl & ENGELS, F. Manifesto Comunista. São Paulo: CHED, 5ª ed., 1984.
-MARX, Karl. Manuscritos econômicos- filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1997.
-RODRIGUES, Alberto Tosi. Sociologia da Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
-WEBER, Max O socialismo In: GERTZ, René E. Max Weber e Karl Marx. São Paulo: Hucitec, 1997, pp. 251-277.
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