quarta-feira, 30 de maio de 2012


Brasil e os golpes na Bolívia, Uruguai e Chile: 30 anos depois



 Por LUIZ ALBERTO MONIZ BANDEIRA
Politólogo, professor titular de história da política exterior do Brasil (aposentado) na Universidade de Brasília e autor de várias obras, entre as quais Conflito e integração na América do Sul: Brasil, Argentina e Estados Unidos (Revan, 2003), da qual foi extraido esse trecho aqui reproduzido.


Governo Costa e SilvaConquanto voltasse a defender, desde o governo do general Costa e Silva (1967-1969), o princípio de não-intervenção e o respeito à soberania dos povos, o Brasil, cujo regime militar passara a orientar-se pelo nacionalismo de direita, não admitia, em sua vizinhança, experiências de esquerda, que viessem a estimular a chamada subversão e obstaculizar, externamente, a expansão dos seus interesses econômicos.


 A repressão, que o governo do general Emílio Garratazu Médici (1961-1974) internamente intensificara contra toda e qualquer oposição ao regime militar, projetou-se, por conseguinte, sobre outros países da América do Sul, sob a forma de intervenções mais ou menos encobertas, sem apelo à justificativa doutrinária das fronteiras ideológicas. A Bolívia, onde a convocação da Assembléia Popular, em fins de 1970, parecera aos militares brasileiros uma tentativa de formação de um soviete, recebeu a primeira estocada.


 A Casa Militar do presidente  Garratazu Médici, chefiada pelo general João Batista Figueiredo, ofereceu aos adversários do governo do general Juan José Torres, através do ex-coronel Juan Ayoroa, dinheiro, armas, aviões e até mercenários, bem como permissão para instalar áreas de treinamento perto de Campo Grande (Mato Grosso) e em outros locais próximos da fronteira [1] . E o golpe de estado, deflagrado, finalmente, pelo general Hugo Banzer, contou com aberto apoio logístico do Brasil, cujos aviões militares, sem ocultar as insígnias nacionais, descarregaram fuzis, metralhadoras e munições em Santa Cruz de la Sierra, enquanto tropas do II Exército, comandado pelo general Humberto Melo, estacionavam em Mato Grosso, prontas para intervir na Bolívia (onde alguns destacamentos penetraram), se necessário fosse [2] 


Poucos meses depois, dezembro de 1971, o Uruguai outra vez esteve igualmente na iminência de sofrer a intervenção militar do Brasil. As tropas do III Exército, sediadas no Rio Grande do Sul, prepararam-se para o invadir, executando a Operação Trinta Horas (tempo necessário para a ocupação de todo o Uruguai), o que só não se concretizou porque o general Liber Seregni, candidato da Frente Ampla (partidos de esquerda e centro-esquerda), perdeu as eleições para os conservadores [3] . Mas os serviços de inteligência do Brasil lá continuaram a colaborar ativamente no combate às organizações de esquerda. O delegado Sérgio Fleury, da Divisão de Ordem Política e Social da Polícia de São Paulo, ajudou a organizar o esquadrão da morte para liquidar os tupamaros (militantes do Movimiento de Liberación Nacional Tupac Amaru), que realizavam espetaculares operações de guerrilha urbana [4] .


 E quando os militares finalmente deram, em 1973, o golpe de estado, ultimando o processo de implantação da ditadura, o Brasil, que influíra direta ou indiretamente para esse desfecho, enviou ao Exército do Uruguai centenas de veículos, tais como caminhões e carros Volkswagen, em uma operação da ordem de US$ 815.000, enquanto a Argentina fornecia automóveis para a Polícia, bem como gasolina e querosene da Yacimientos Petrolíferos Fiscales [5] .
Na mesma época, o Brasil também colaborou com os EUA na preparação do golpe de estado contra o governo do Chile, cujo presidente, Salvador AllendeSalvador Allende, intentava a implantação do socialismo pela via democrática e constitucional. Evidências houve de que oficiais brasileiros dos serviços secretos, em conexão, possivelmente, com a CIA, participaram da conspiração, tanto que o general Orlando Geisel, ministro da Guerra no governo Garratazu Médici, avisara ao embaixador do Paraguai que cedo o Chile cairia “em mãos dos militares” [6] . O próprio embaixador dos EUA em Santiago, Edward Korry, afirmou que o “real apoio técnico e psicológico” ao coup d'État  “veio do governo militar do Brasil” [7] .


 E seu sucessor, o embaixador Nathaniel Davies, revelou que o embaixador brasileiro, Cândido da Câmara Canto, convidou-o para que conjuntamente  planejassem e coordenassem os esforços no sentido de derrubar o governo de Allende [8] . Sem dúvida alguma, a cumplicidade do Brasil foi, na verdade, muito maior do que transpareceu. Além de recursos financeiros, fornecidos por empresários de São Paulo, vários carregamentos de armas e munições, entre 1972 e 1973, saíram do porto de Santos, com destino a Valparaiso, em caixas de maquinaria agrícola e de outros produtos, importados pela firma do Senador Pedro Ibáñez Ojeda, a fim de abastecer a organização direitista Patria y Libertad [9] . E, com a queda do governo Allende, em 11 de setembro de 1973, o Brasil reconheceu imediatamente a Junta Militar, chefiada pelo general Augusto Pinochet. Vários aviões da Força Aérea Brasileira voaram para Santiago, transportando não só mantimentos e remédios como também assessores da Polícia Federal e oficiais das Forças Armadas, que participaram de interrogatórios e treinaram seus colegas chilenos na arte da tortura, enquanto o embaixador Câmara Canto coordenava as medidas de apoio às novas autoridades do país [10] .

Logo depois do golpe de estado no Chile, com o conhecimento da CIA, os serviços de inteligência do Chile, Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai passaram a cooperar e, em  1975, instituíram a Operação Condor, codinome dado ao acordo para o empreendimento de ações conjuntas, visando a coordenar a repressão e eliminar os adversários  dos  regimes ditatoriais existentes nos  países do Cone Sul. Mas o raio de ação da Operação Condor não se restringiria à América Latina. 


A terceira fase e a mais secreta da Operação Condor, segundo o documento desclassificado pelo Defense Intelligence Agency (DIA), do Exército norte-americano, consistiu em formar equipes especiais dos países membros a fim de que viajassem por todo o mundo e executassem sanções, que incluíam até assassinatos, contra supostos terroristas   ou que apoiassem suas organizações, ou seja, contra adversários políticos dos  regimes militares instalados no Cone Sul. Se um adversário político ou um que apoiasse a organização política adversa estivesse na Europa, uma equipe especial da Operação Condor seria enviada para o localizar  e vigiá-lo. Quando culminasse a localização e a vigilância, uma segunda equipe de Operação Condor seria enviada para aplicar a sanção efetiva contra aquele adversário. Em teoria, um país proveria de documentação falsa a equipo de assassinos, formada por agentes de um outro país. 


Em Buenos Aires - onde havia exilados chilenos, uruguaios, bolivianos, brasileiros e paraguaios – vários crimes ocorreram no marco da Operação Condor, ainda antes de que ela fosse formalmente concertada e oficializada.  O general Carlos Prats, que servira ao governo de Salvador Allende, foi assassinado em setembro de 1974, em Buenos Aires. Segundo os  depoimentos prestados nos EUA, a bomba foi colocada pelo  norte-americano Michael Townley, ex-agente tanto da DINA como da CIA. E, além de outros numerosos dissidentes dos regimes militares, também foram assassinados em Buenos Aires, em maio de 1976, dois parlamentares uruguaios, o senador Zelmar Michelini y o deputado Héctor Gutiérrez Ruiz; e o general Juan José Torres, ex-presidente da Bolívia, em junho.


 E em 21 de setembro do mesmo ano, Orlando Letelier, ex-embaixador do Chile, e sua secretária, Ronni Moffit, foram assinados em plena capital dos EUA, na terceira fase da Operação Condor, no âmbito da qual os EUA facilitaram comunicações entre os chefes dos serviços de inteligência dos países do Cone Sul, conforme revelou o embaixador dos EUA no Paraguai, Robert E. White. O fato de que o  Pentágono estava interessado na Operação Condor, em 1976,  era relevante para a rede de comunicações que foi estabelecida e facilitada pelos EUA. 


O general Alejandro Fretes Davalos, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas do Paraguai, informou ao embaixador  norte-americano Robert White que todos os chefes dos serviços de inteligência dos países da América do Sul na Operação Condor se mantinham em contacto um com o outro através das instalações de comunicação dos EUA na Zona do Canal do Panama Zone que cobriam toda a América Latina  Essas instalações eram empregadas para coordenar as informações de inteligência nos países do Cone Sul.  [11]



[1] Garcia Lupo, R.,  1973, p. 229. Lozada,  1972, pp. 402, 403, 411-414, 437-440. Schilling, 1974, pp. 65-66.
[2] Garcia Lupo, R, “Bolivia - Instrumento Geopolítico en manos de Brasil", in Noticias, Buenos Aires, 31.05.1974. Garcia Lupo, R., 1983, p. 174.
[3] Grael, 1985, pp. 11-21. O autor dessa obra, coronel Dickson N. Grael, servia no III Exército quando dos preparativos para a invasão do Uruguai. Schilling, 1974, p. 67. Roper, Christopher, “EUA y América Latina - La Política del presidente Nixon” in Estrategia, março/abril 1972, nº. 15, pp. 33-42.
[4] Caula & Silva, 1986, pp. 43-44.
[5] Sanguinetti, J. M. – “Anatomia da Crise - Bem Nacional o Golpe Uruguaio”, in O Estado de São Paulo, São Paulo, 13.06.1974, p. 24. La Opinión, Buenos Aires, 13.07.1973.
O Globo, Rio de Janeiro, 25.05.1974.
[6] Simon, Marlise, “The Brazilian Connection” in The Washington Post, 06.01.1974, p. B3. Nathaniel Davies, 1985, p. 332.
[7] Korry, Edward M., “Confronting our Past in Chile” in Los Angeles Times, 08.03.1981, sec. 6, p. 5, cf. N. Davies, 1985., pp. 331-332.
[8] Davies, 1985 p. 332.
[9] Simon, Marlise, “The Brazilian Connection” in The Washington Post, 06.01.1974, p. B3.. Rojas, R., 1974, pp. 204-205.
[10] Jornal do Brasil, 18.09.1973, pp. 10 e B3. Segundo o deputado Maurílio Ferreira Lima, o presidente Allende preparava-se para denunciar, internacionalmente, a atuação de Câmara Canto em Santiago, quando  eclodiu o golpe de estado. Veja, São Paulo, 13.11.1985, p. 91.
[11] State Department Cable, U.S. Ambassador Robert White (Paraguay) to Secretary of State Cyrus Vance, Subject: Second Meeting with Chief of Staff re Letelier Case, October 20, 1978, Confidential. Esse telegrama foi descoberto pelo professor J. Patrice McSherry, da Universidade de Long Island, e publicado pelo New York Times, de 6 de março de 2001.  http://www.gwu.edu/-nsarchiv/mews/20010306/.

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