quarta-feira, 28 de março de 2012

O SURGIMENTO DO ESTADO MODERNO E SUAS RAIZES MEDIEVAIS

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 23: 103-114 NOV. 2004
RESUMO
Recebido em 19 de junho de 2003 Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 23, p. 103-114, nov. 2004
Aprovado em 15 de outubro de 2003
RUMO AO ESTADO MODERNO:
AS RAÍZES MEDIEVAIS DE ALGUNS
DE SEUS ELEMENTOS FORMADORES1
Raquel Kritsch
O artigo pretende apontar alguns elementos do processo de constituição do Estado moderno, entre os
quais a noção de soberania, nos séculos finais do medievo. Essa nova realidade, que não se configurou
ao mesmo tempo nem por um processo único em toda a Europa, apresentou algumas características
comuns. Procura-se argumentar que os conflitos entre os vários atores envolvidos nesse processo
foram, simultaneamente, de natureza política e jurídica, e que nessa discussão construíram-se os alicerces
legais e ideológicos do poder do Estado, ao mesmo tempo em que se determinou sua extensão.
PALAVRAS-CHAVE: Estado; soberania; Direito; Teoria Política Medieval; história do pensamento
político.
Friedrich Meinecke associa, em um de seus
livros, a noção de maquiavelismo à de razão de
Estado2. A palavra stato pode até ter sido
introduzida na literatura política por Maquiavel e
talvez não haja, antes dele, quem tenha escrito de
modo tão direto sobre a lógica do poder. Mas a
história da noção de “razão de Estado” começa
antes, bem antes, e um bom legista poderia incluíla,
se a conhecesse, no atestado de óbito de
Thomas Becket. A defesa de uma comunidade
universal cristã na obra de Salisbury, admirador de
Becket, não é somente a expressão de uma doutrina.
É também a resposta a uma nova realidade: um poder
secular que afirma sua jurisdição sobre um território,
em oposição tanto aos poderes locais quanto às
pretensões de ingerência da Igreja.
Essa nova realidade não se configurou toda ao
mesmo tempo nem por um processo único em toda
a Europa. O novo poder desenvolveu-se antes na
Inglaterra que no continente. No caso inglês, a
Coroa afirmou-se contra os barões, internamente,
e, no exterior, contra a Igreja. No continente, as
forças em confronto são fundamentalmente quatro:
a monarquia nascente, o Império, o Papado e os
poderes locais.
O conflito foi simultaneamente jurídico e
político. Político, porque envolveu não só uma
redistribuição de poder mas também a entrada de
novos atores na cena política. Jurídico, porque os
confrontos principais quase nunca, ou nunca, foram
explicitados diretamente como problemas de poder,
mas como questões de jurisdição e de legitimidade.
Os novos atores foram, entre outros:
1) a troupe do Estado (rei, ministros,
burocratas, juízes, coletores de impostos etc.);
2) os elementos urbanos emergentes (artesãos
e suas corporações de ofício, comerciantes,
prestadores de serviços etc.);
3) uma intelectualidade que, embora dividida
partidariamente e, portanto, dependente quase
sempre ou da Igreja ou da espada, passou a
constituir um fator de poder e
4) os grupos, em geral das camadas inferiores e
muitas vezes participantes de desordens e subleva-
1 Este artigo resume algumas das idéias desenvolvidas em
Kritsch (2002). Apresentado no I Simpósio Universidade
de São Paulo – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio
de Janeiro de Pós-graduação em Teoria Política, realizado
na Universidade de São Paulo em setembro de 2003.
2 “It was therefore a historical necessity that the man,
with whom the history of the idea of raison d’état in the
modern Western world begins and from whom
Machiavellism takes its name, had to be a heathen”
(MEINECKE, 1984, p. 29) [“Foi, portanto, uma
necessidade histórica que o homem, com quem a história da
idéia de raison d’état no moderno mundo ocidental começa
e de quem o maquiavelismo tira seu nome, tivesse que ser
um pagão” – nota do revisor].
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ções, envolvidos nos movimentos heréticos ou de
oposição às doutrinas religiosas dominantes.
A luta desenvolveu-se não só no plano da ação
direta como também no das idéias. Participaram da
disputa juristas, teólogos e filósofos, muitas vezes
pessoas com todas essas qualificações. A eles
competia determinar os fundamentos do direito
de cada parte e, portanto, a legitimidade das
pretensões em conflito. Nessa discussão
construíram-se os alicerces legais e ideológicos
do poder do Estado, ao mesmo tempo em que se
determinou sua extensão.
Os conflitos só apareceram, é óbvio, quando
um novo poder teve peso suficiente para questionar
a ordem dada em um certo momento. Esse é o fato
político em sua versão mais crua. Mas esse novo
poder tentou afirmar-se não apenas pela força: seu
objetivo era ser reconhecido como portador de
um direito ou, mais precisamente, como legítimo
detentor de uma jurisdição. Esse é o fato jurídico
em sua descrição mais simples. Todavia, não
houve, historicamente, nesse caso, um fato apenas
político ou apenas jurídico: o político manifestase
freqüentemente com a forma de uma
reivindicação legal. Nesse período, o teórico
político tinha de ser um jurista ou de enfrentar
questões de jurisprudência. Quando Maquiavel
escreveu, não precisou cuidar de questões legais
(ele referia-se já à lei como um dado político e
social). O trabalho de construção já tinha sido
realizado: o Estado, como entidade juridicamente
definida, era um fato plenamente desenvolvido,
não uma novidade3.
A partir de que momento, então, pode-se falar
em Estado em sentido compatível com a noção
moderna? A palavra “compatível”, nesse caso, é
uma restrição importante. Trata-se de saber não a
data de nascimento do Estado moderno, seja qual
for a sua descrição tipológica, mas de identificar
um movimento histórico bem determinado. Esse
movimento ocorre segundo ritmos diferentes em
diferentes locais (na Inglaterra e no continente, para
tomar uma distinção bem visível) e os arranjos de
poder não se dão da mesma forma em toda parte.
No entanto, é possível mostrar, em todos os casos,
características comuns de um processo de reordenação
política. Essa reordenação é constitutiva
do que hoje chamamos “Estado”. A ordem gestada
por esse processo é o que aqui se designa como
“compatível com a noção moderna”.
Quais seriam, então, os elementos principais
desse processo de reordenação política? Para
responder à questão, adotar-se-á aqui a perspectiva
genética, compartilhada por autores como Strayer
(s/d), Ullmann (1965) e Gierke (1938). Strayer, em
seu livro já clássico, concentrou a atenção
principalmente no desenvolvimento institucional
do Estado moderno, a partir da Idade Média,
enquanto Ullmann enfatizou as idéias que refletiram
e nortearam as mudanças políticas. De modo geral,
seus trabalhos tendem a ser complementares e
serão explorados a partir dessa perspectiva.
Strayer indicou três condições essenciais à
constituição do Estado a partir das formações
medievais: 1) o aparecimento de unidades políticas
persistentes no tempo e geograficamente estáveis;
2) o desenvolvimento de instituições duradouras
e impessoais; 3) o surgimento de um consenso
quanto à necessidade de uma autoridade suprema
e a aceitação dessa autoridade como objeto da
lealdade básica dos súditos (cf. STRAYER, s/d,
p. 16ss.).
Segundo Strayer, os estados europeus surgidos
depois de 1100 combinaram com êxito certas
características dos impérios antigos, como a
vastidão e o poder, e das cidades-Estado, marcadas
por um razoável grau de integração entre os súditos
e por um sentimento de identidade comum. Por volta
do ano 1000, depois de grandes migrações, guerras
múltiplas e intensa fragmentação do poder, ainda
seria difícil encontrar, na Europa, algo parecido com
um “Estado”.
A partir do final do século XI, porém, novas
condições começaram a marcar a vida política e
social. Strayer apontou em primeiro lugar a difusão
do cristianismo: “a Europa ocidental só passou a
ser realmente cristã nos finais do século X”,
escreve. A Igreja não só tinha alguns dos atributos
do Estado, como instituições duradouras e uma
teoria do “poder supremo” papal4, mas, além disso,
3 Justamente porque se pretende tratar do processo de
constituição do Estado moderno, não serão abordadas no
breve espaço deste artigo as formulações dos autores
modernos cujos vigorosos textos passaram a fazer parte
dos grandes cânones do pensamento político no Ocidente
moderno.
4 Vale a pena ressaltar aqui um ponto: Strayer chamou a
atenção para o fato de que tais instituições impessoais e
duradouras, que constituiriam um dos principais pilares do
Estado moderno, foram de certo modo herdadas pelos estados
nascentes do “aparato burocrático” já desenvolvido havia
séculos pela Igreja. Esta, por sua vez, tivera por modelo as
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influenciava diretamente a política secular, pelo
envolvimento do clero nos negócios públicos e
pela atribuição, aos governantes, da obrigação de
garantir a paz e a justiça entre os súditos. Exigências
desse tipo impunham o desenvolvimento de
instituições judiciais e administrativas.
O segundo fator indicado por Strayer é a
estabilização da Europa, depois de longo período
de migrações, invasões e conquistas. “Essa
crescente estabilidade política veio dar lugar ao
aparecimento de uma das condições essenciais para
a constituição do Estado, a continuidade no tempo
e no espaço. Pelo simples fato de manterem-se de
pé, alguns reinos e principados começaram a
adquirir solidez. Certos povos, ocupando
determinadas áreas, permaneceram, durante
séculos, integrados em um mesmo conjunto
político. [...] E os governantes de reinos e
principados que se mantinham no espaço e no
tempo tinham oportunidades e incentivos para
desenvolver instituições permanentes” (idem, p.
21-22).
Com a estabilização, surgiram condições para a
implantação de padrões mais sólidos de segurança
interna e externa, fundados em instituições judiciais
e financeiras mais eficazes, mais complexas e
crescentemente centralizadas5. As atribuições
públicas tenderam a especializar-se e, portanto, a
diferenciar-se das funções costumeiras da
comunidade.
Foram transformações lentas, acompanhadas
e reforçadas pelo aumento da produção agrícola,
do comércio e das atividades urbanas6. No final
do século XIII, segundo Strayer, a terceira
condição estaria consolidada, com os sentimentos
de lealdade em relação à Igreja, à comunidade e à
família ultrapassados pelo sentimento de lealdade
ao Estado nascente, principalmente na Inglaterra.
Não que as lealdades e interesses anteriormente
dominantes tivessem desaparecido ou perdido
importância. O fato significativo é que se passou a
pensar dentro de um novo quadro de referências.
Esse quadro impôs-se mesmo nas rebeliões: não
se lutava mais contra o Estado ou contra a
instituição materializada no governo central, porém
sim para mudar os padrões de governo e para obter
dos tribunais a proteção desejada.
A mudança foi mais veloz na Inglaterra do que
no continente. A França foi o primeiro Estado
continental a constituir-se a partir de províncias
virtualmente independentes e com instituições
muito diferenciadas. A administração da justiça e a
das finanças apareceram como fatores essenciais à
formação do Estado. Os reis da França, porém,
procederam com lentidão maior que os ingleses,
construindo instituições mais simples e
formalizando menos as funções públicas. A
burocratização cresceu, porém, a partir do século
XIII, como resposta às necessidades de controle
das províncias anexadas. Strayer descreveu a
França como um “Estado-mosaico”, formado por
muitas peças, com a burocracia exercendo a função
de cimento (idem, p. 57).
Se essas mudanças ocorreram a partir da
estabilização da Europa, o seu desenvolvimento,
no entanto, não foi pacífico. O conflito, como lembra
Francesco Calasso, nem sempre assumiu a forma
de contestação aberta, pelos reis, da concepção
tradicional da comunidade cristã universal
(CALASSO, 1965, p. 232ss.). Tampouco se manifestou
sempre como negação da autoridade impeinstituições
do Império Romano, que conheceu seu fim no
século V, com a conquista de Roma. Nas palavras de Strayer:
“A Igreja já tinha muitos dos atributos de um Estado –
instituições duradouras [como o próprio Papado], por
exemplo – e estava a desenvolver outros – por exemplo,
uma teoria da soberania papal” (STRAYER, s/d, p. 21).
Essa observação já fôra feita por Ullmann, em seu estudo
clássico (cf. ULLMANN, 1955, cap. IX e XIII).
5 Strayer lembrou que “é difícil criar instituições impessoais
permanentes sem se poder dispor de arquivos escritos e de
documentos oficiais. De fato, o documento escrito constitui
a melhor garantia de perdurabilidade e o melhor isolador
entre um administrador e as pressões pessoais” (STRAYER,
s/d, p. 29). Por isso, foi relevante ainda para a consolidação
dessas instituições impessoais e duradouras não apenas o
surgimento de uma camada de homens instruídos, a partir do
século XII, como também a recuperação de documentos legais
que tinham sido a base do antigo Direito Romano – como,
por exemplo, o Corpus Iuris Civilis, compilado por
Justiniano, entre outros –, e que passaram então a constituir
a principal referência dos novos profissionais do Direito –,
os juristas civilistas, geralmente a serviço do poder temporal,
fosse do Império fosse da Coroa.
6 Para uma abordagem mais aprofundada das
transformações econômicas e sociais ocorridas na Europa
entre os séculos XI e XIII, pode-se consultar, entre outros,
Duby (1987, v. I, livro II), Le Goff (1965, partes I e II) e
Thrupp (1988).
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rial. Nem era preciso. No século XIII, o poder
efetivo do imperador pouco significava nos principais
reinos em formação e a Igreja encarregavase
de pôr em xeque esse poder sempre que podia.
É a descrição desse processo, portanto, que
legitima a pretensão de falar em “Estado” em fins
da Idade Média. Como escreveu Calasso: “Não
tenhamos medo de fazer mau uso da palavra Estado
para esses séculos que não a conheceram” (idem,
p. 237). Não se trata somente de afastar aqui, como
inútil, o escrúpulo defendido, por exemplo, por
Hermann Heller (1987, p. 141ss.). Muito mais do
que isso: trata-se de dar a ênfase necessária ao
movimento da história, sem se deixar limitar por
uma classificação tipológica.
O problema, como Calasso definiu-o, é entender
uma realidade que se constituiu à sombra da
ideologia da communitas humanitatis do Império
e da Igreja. A unidade dessa communitas
expressava-se no aforismo extra ecclesiam non est
imperium, porque fora da Igreja não existe poder
ordenado por Deus. Historicamente, no entanto,
imperadores e papas disputaram, às vezes com
muito sangue vertido, o poder em todas as suas
formas, temporais e espirituais. Também essa
disputa serviu para fecundar o pensamento político
e jurídico, especialmente entre os séculos XII e XIV,
mas dela não resultou, senão de maneira indireta, a
destruição da idéia de uma comunidade universal
dos cristãos.
Essa noção estava muito firme, como objeto de
fé, no tempo do “fatigoso nascimento dos assim
chamados Estados nacionais”, lembrou Calasso,
ao relacionar, em uma longa lista, as unidades
políticas em formação em toda a Europa desde, pelo
menos, o século XII: “Na Península Ibérica, depois
da vitória definitiva das armas cristãs sobre os
muçulmanos, nascem o reino de Aragão e o de
Portugal; consolidaram-se como estados fortes,
mas por meio de uma história inteiramente diversa,
o reino de França e o de Inglaterra – o primeiro,
com a pressão da monarquia sobre as classes
feudais e por meio da exaltação do elemento
citadino; o segundo, com a aliança triunfante das
várias camadas sociais contra a monarquia –; no
coração da Europa, o reino da Alemanha, com a
prevalência dos grandes feudatários, acentuou cada
vez mais uma política nacionalista, enquanto um
novo Estado dele destacou-se, a Áustria; ao Norte,
afirmaram-se os estados escandinavos, com
predomínio do reino da Dinamarca; surgiram os
reinos da Lituânia, da Polônia, da Rússia; enquanto
ao Sul a Hungria, a Sérvia, a Croácia, a Bulgária, a
Romênia, a Albânia consolidaram-se como estados.
Eram ordenamentos políticos novos ou em renovação,
que se ergueram sobre um fundo turbulento
de lutas gigantescas, em que os povos europeus
empenharam-se freqüentemente contra forças
extra-européias (dos muçulmanos no Sul aos mongóis
no Leste). E, como organismos jovens, não
queriam sentir-se ligados pelas amarras de ideologias
tradicionais, embora, note-se bem, como
estados cristãos, vinculados à Igreja de Roma, não
podiam, pela estrutura mesma do mundo medieval,
ignorá-las” (CALASSO, 1965, p. 243).
Mas não apenas os elementos institucionais
apontados por Strayer – a definição de fronteiras
geográficas estáveis, o surgimento de instituições
impessoais e burocratizadas (Fisco, Tribunais etc.)
– seriam de grande relevância para a formação do
Estado moderno. Seu processo de constituição
incluiu também elementos de tipo ideológico, como,
por exemplo, a concentração no Estado do
sentimento de lealdade básica dos súditos, como
apontou o autor.
Outro desses elementos ideológicos
constitutivos do Estado moderno é a noção de
“soberania”, que também se encontrava em
processo de gestação. Essa idéia começou a
desenvolver-se a partir dos intermináveis conflitos
de jurisdição entre papas, reis e imperadores, que
dominaram os séculos finais do medievo.
Essa noção nascente de soberania tornar-se-ia
em muito pouco tempo o atributo definidor do
Estado moderno – mais tarde intercambiavelmente
denominado Estado territorial soberano, ou
simplesmente Estado soberano. Isto é, a idéia de
soberania passaria a estar indissoluvelmente
vinculada àquele Estado cuja característica é ser
o detentor da jurisdição exclusiva sobre um
determinado território, como formulariam os
pensadores políticos modernos.
Essa noção nascente de soberania, por sua vez,
é constituída de elementos formadores não menos
relevantes, que terminariam por fazer parte dos
alicerces legais e ideológicos do moderno Estado.
Um desses elementos formadores é a recuperação,
pelos juristas tanto canonistas quanto civilistas,
dos antigos códigos do Direito Romano. Entre os
inúmeros princípios retomados, há um de especial
importância, que logo seria adaptado aos novos
tempos, como observou Calasso: “Enquanto a
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Europa, particularmente entre os séculos XII e
XIII, era trabalhada pelo incessante movimento
dos povos que emergiam em busca de seu lugar,
dentro e fora da jurisdição direta do Império Romano-
germânico, no campo da ciência jurídica abria
caminho um novo princípio, destinado a interpretar
por séculos o mundo novo que estava por surgir.
Esse princípio veio logo encerrado em uma fórmula
que assim soou: rex superiorem non recognoscens
in regno suo est imperator, e que significava o
seguinte: ‘o rei, que não reconhece nenhum outro
poder acima de si, tem, no âmbito do próprio reino,
os mesmos poderes que tem o imperador sobre
todo o Império’” (CALASSO, 1965, p. 244).
Calasso dedicou à história dessa fórmula algumas
páginas, lembrando as circunstâncias de seu
emprego original. O uso mais remoto, provavelmente
em 1208, é atribuído ao canonista inglês
Alan. Na glosa de uma carta decretal do Papa Alexandre
III, a respeito da distinção entre jurisdição
espiritual e jurisdição civil, Alan retomou a questão
da origem do poder imperial. Esse poder, segundo
ele, é derivado do espiritual. Se assim não fosse,
argumentava, o Imperador não seria responsável
perante o Papa, que o julgava e o depunha.
Mas em seguida aparece um acréscimo
surpreendente: “E o que se diz do Imperador deve
ser dito também de qualquer rei ou príncipe não
subordinado a ninguém [qui nulli subest], que tem
tanto direito em seu reino quanto o Imperador no
Império” (CALASSO, 1965, p. 245). A referência ao
poder do Rei aparece, portanto, por analogia e não
como resposta a uma questão direta.
Outra fonte mencionada por Calasso é o célebre
glosador civilista Azzone, que, em uma discussão
com seus alunos na Universidade de Bolonha,
afirmou: “[o rei] que hoje vemos ter na sua terra o
mesmo poder que o imperador [na dele], pode,
portanto, fazer o que lhe agrade” (idem, p. 246).
Calasso chamou atenção para a “surpreendente
coincidência” temporal e para o fato de serem
ambos líderes da Escola de Bolonha.
Além disso, acentuou que, ao tomar como objeto
de discussão escolar um fato político ainda fresco
na memória de todos – a sucessão inglesa –, ele
dava como bem conhecido em seu tempo, ao usar
o advérbio “hoje”, “que cada rei tivesse na própria
terra o mesmo poder que o Imperador na dele”. Daí
se deduz, acrescentou Calasso, “que essa doutrina
era familiar na Escola de Bolonha, forja de todas
as doutrinas jurídicas da época e, particularmente
nos anos de seu maior esplendor, centro de
expansão para toda a Europa” (idem, p. 256).
A partir daí, Calasso reconstituiu, embora
sumariamente, os passos pelos quais, no dia-adia
da política e na maturação das novas idéias
pelos juristas, formou-se a concepção daquela
ratio specifica do Estado, “resumida por nós,
modernos, na palavra soberania” (ibidem).
Não menos relevante que os desenvolvimentos
levados a cabo pelos juristas canonistas e civilistas
foi – para o avanço desse processo que culminaria
na consolidação do Estado moderno – o aparecimento
de estudiosos dos costumes. A produção
de trabalhos como os de Henry de Bracton na
Inglaterra e Philippe de Beaumanoir na França
indicavam mais do que um novo interesse teórico.
Eles contemplavam o Direito Costumeiro, isto é,
a variedade a partir do ponto de vista da unidade
política e legal – a unidade do reino. Eram, em
geral, profissionais treinados no Direito Romano
e recrutados para o serviço da Coroa.
Quando Bracton escreveu De legibus et consuetudinibus
Angliæ, entre 1220 e 1230, o poder
já estava centralizado, na Inglaterra. A questão não
era, mais, a afirmação da supremacia real. O jurista
inglês manteve a concepção do príncipe como subordinado
à lei (“lex facit regem”). Na obra, há
uma definição legal das funções e da autoridade
reais e, embora o rei não tivesse par no seu reino,
seu poder era constitucionalmente limitado. Há
entre lei e rei uma relação de mútua dependência:
“attribuat rex legi, quod lex attribuit ei, videlicet
dominationem et potestatem” (BRACTON, 1925,
p. 33)7.
Para governar de modo reto, nos tempos de
paz e de guerra, escrevia o jurista no início de seu
livro, o rei necessitava de duas coisas, “a saber,
arma e leis”. Leis, para ele, são não somente as
normas escritas, mas também os costumes que,
apesar de não escritos, são legitimados pelo uso8.
O costume, porém, seria corretamente chamado
lei quando aprovado pelo consenso dos poderes
7 “Assim, atribua o rei à lei aquilo que a lei lhe atribui, a
saber, dominação e poder” (tradução da autora).
8 “In ea quidem ex non scripto ius venit quod usus
comprobavit” (BRACTON, 1925, p. 19).
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do Estado ou quando anteriormente definido como
justo pelo príncipe. Essa ressalva estabelecia uma
relação bipolar entre a função de governo e a “base”
social. O uso é fonte da lei, mas a lei é a norma
reconhecida como tal pelas instituições do Estado
(Rei publicæ). Hobbes desequilibraria aquela
relação bipolar, pondo toda a ênfase no
reconhecimento como marca da soberania.
A ênfase na legalidade faz da obra de Henry de
Bracton uma referência fácil para o liberalismo e,
mais geralmente, para o pensamento
constitucionalista. Locke mencionou o jurista
medieval ao discutir as circunstâncias que
justificavam a resistência ao governo, no capítulo
em que tratava da dissolução do governo (cf.
LOCKE, 2001, p. 598). O que interessa ressaltar,
neste momento, no entanto, é a idéia de unidade
política em contraste com a diversidade dos
costumes. Usos diferentes ganham um caráter
comum como “leges Anglicanæ”. O elemento
unificador é a instituição. Uma única ordem jurídica
engloba a Coroa, as funções públicas e os
costumes.
Também na França, no século XIII, a reflexão
sobre o Direito Costumeiro acompanhou a
afirmação do poder central. A Coroa não se opunha
ao costume; continuava a respeitá-lo. Normas locais
ainda seriam mantidas em vigor durante séculos.
Mas a corte real assumiu, com amplitude crescente,
o papel de última instância judicial e, quando
necessário, o de fonte primária da lei.
Um dos aspectos mais importantes do trabalho
de Beaumanoir foi o do exame das competências.
No condado de Clermont, onde ele era juiz, os
senhores feudais tinham a jurisdição imediata.
Acima desse nível estava a justiça do conde. Em
vários casos podia-se passar do nível local ao do
condado: apelo por falta de direito, por falso
julgamento, por petição de um nobre, por tratar-se
de assunto de interesse do rei, do conde ou do
próprio juiz ou por tratar-se de questões relativas a
tréguas (cf. BEAUMANOIR, 1970, vol. 2, §§ 295-
308). A jurisdição final era a do rei, pois “o rei é
soberano acima de todos” (idem, § 1043). Também
aqui o rei aparecia como o detentor último da
jurisdição em seu reino.
Importa chamar a atenção ainda para um outro
aspecto: o problema do fundamento da autoridade.
A maior parte dos debates a respeito dos poderes
dos reis, do Papa e do Imperador girava em torno
de uns poucos modelos de legitimação. Ullmann
deu atenção especial a dois, por ele indicados como
as teses do poder ascendente e do poder
descendente (cf. ULLMANN, 1965, p. 12). Essas
teses básicas apareciam, nas discussões, combinadas
com outros critérios, como o da anterioridade
histórica do governo secular ou do governo
eclesiástico. As duas doutrinas básicas coexistiram,
com predominância de uma ou de outra, segundo
a época.
A teoria do poder ascendente é a mais antiga.
Afirma ser o povo, ou a comunidade, a fonte do
poder. Ullmann, citando Tácito, lembra ter sido
baseada nessa idéia a forma de governo das tribos
germânicas. O povo elegia chefes para a guerra e
para outras funções públicas e o líder tinha apenas
o poder concedido pela assembléia eleitoral. Era
considerado representante da comunidade e
responsável perante a assembléia popular. Como
conseqüência, existia um direito de resistência ao
governante. Isso explica a facilidade com que se
depunha e afastava-se um rei, se, na opinião do
povo, tivesse deixado de representar sua vontade9.
Segundo a concepção oposta, o poder residiria
originalmente não no povo, como na teoria
ascendente, porém sim em um ser supremo,
identificado pelo cristianismo com a divindade.
“Não há maior poder que o de Deus”, disse São
Paulo. Daí a conclusão: todo poder na terra só pode
ser delegado. Até o século X, pelo menos,
predominou essa doutrina. Segundo a versão aceita
durante esse período, o Papa era o intermediário na
transmissão do poder. Logo, a eleição pelo povo
não é um requisito de legitimidade.
9 Nas palavras de Ullmann: “Metaphorically speaking
power ascended from the broad base of a pyramid to its
apex, the king or duke. The popular assembly controlled
the ruller’s government, and it was mainly as a court of law
that the assembly worked effectively. This ascending theory
of government may also be called the populist theory of
government, because original power was anchored in the
people.” (ULLMANN, 1965, p. 12; sem grifo no original)
[“Metaforicamente falando, o poder ascendia da larga base
de uma pirâmide para o seu ápice, o Rei ou Duque. A
assembléia popular controlava a gestão do governante e
era principalmente como uma corte de justiça que a
assembléia trabalhava efetivamente. Essa teoria ascendente
do governo também pode ser chamada de teoria populista
do governo, pois o poder original estava ancorado no
povo” – N. R.].
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Egídio Romano, teólogo que escreveu no início
do século XIV, por exemplo, ainda sustentava, no
seu livro Sobre o poder eclesiástico (ROMANO,
1989), que a supremacia fundada nessa mediação
incluía o poder de investir os governantes
temporais. Ao sustentar esse ponto de vista, Egídio
recuperava o agostinianismo: “Um reino que não
foi instituído por meio do sacerdócio ou não foi
reino, mas latrocínio, ou foi unido ao sacerdócio,
pois, mesmo antes que Saul fosse instituído por
Samuel, como por sacerdote de Deus, e fosse posto
como Rei, Melquisedeque foi rei de Salém. Mas
esse Melquisedeque, além de ser rei, era também
sacerdote” (ROMANO, 1989, p. 48). A
conseqüência de tudo isso é que “a autoridade
régia deve estar sujeita à autoridade sacerdotal e,
especialmente, à do sumo pontífice” (ibidem). O
Papa é instituidor da autoridade temporal e juiz de
tudo e só tem de ser julgado por Deus.
Todavia, o Papa, como detentor do poder
supremo, jamais é um indivíduo: esse poder é um
atributo do cargo. “Mas, como o ser e a denominação
da coisa vêm principalmente da forma e não
da matéria”, afirmava Egídio remetendo-se aos
gregos, “o povo é sempre o mesmo, o rio é sempre
o mesmo, embora nem sempre os homens e a
água sejam os mesmos. Assim também o sumo
pontífice é sempre o mesmo, embora nem sempre
seja o mesmo homem que está constituído neste
ofício” (idem, p. 87). A força vinculante das decisões
papais provinha não dos atributos individuais
do pontífice, mas da autoridade recebida de Deus.
A fórmula evangélica da sagração de São Pedro
(“tudo que ligares na terra será ligado no céu, tudo
que desligares na terra será desligado no céu”) foi
invocada, mais uma vez, para afirmar a jurisdição
tanto religiosa quanto secular da Santa Sé. Retomando
opiniões de Carlyle e Scholz, Luís A. de Boni
observou, na introdução ao livro de Romano, que,
“sob vestes antigas”, o autor compunha “uma nova
teoria do poder” e o “primeiro tratado completo sobre
o absolutismo” renascentista (idem, p. 13, 25).
Essa doutrina do poder descendente, porém,
teve mais de uma versão. Em rigor, a idéia de Deus
como fonte do poder é funcional para qualquer
das pretensões políticas em jogo na Idade Média,
especialmente a partir do século XIII:
1) na versão tradicional, mais útil aos papas, o
sucessor de São Pedro seria o transmissor da
autoridade concedida por Deus. Esse é o sentido
da sagração dos governantes seculares pelo Papa,
como defendia Egídio Romano;
2) em uma versão alternativa, o poder seria
concedido por Deus diretamente aos governantes.
Essa doutrina será a base teológica do absolutismo
nos séculos XVI e XVII, mas derivava, claramente,
das pretensões dos imperadores: é, por exemplo, o
argumento de Frederico II, entre outros, e
3) em uma terceira interpretação, o poder seria
concedido por Deus ao povo e deste aos reis ou
imperadores10. Essa doutrina, de inspiração tomista,
foi retomada por autores do século XIV e
reapareceu, nos séculos XVI e XVII, como uma
das armas do clero contra os monarcas absolutos,
depois da Reforma. Foi a noção sustentada, por
exemplo, por autores como Bellarmino e Suarez e
contestada por Filmer.
10 Embora essa versão possa lembrar a teoria ascendente,
trata-se de fato de uma versão da teoria descendente, já que
a origem do poder não é o povo e sim um ser divino “acima
dos homens”. Como explicou Ullmann, “here [na teoria
descendente] original power was located in a supreme being
which, because of the prevailing Christian ideas, came to
be seen as divinity itself. [...] Whatever power was found
‘below’, was derived from ‘above’, for, as St Paul said,
‘There is no power but of God’. Here one can speak only
on delegated power. [...] Within this thesis the people had
no power other than that it had been given ‘from above’.
[...] The supreme officer was responsible to God alone”
(ULLMANN, 1965, p. 13; sem grifos no original) [“Aqui
[na teoria descendente] o poder original localizava-se em
um ser supremo que, devido às idéias cristãs prevalecentes,
passou a ser visto como a própria divindade. [...] Qualquer
que fosse o poder, era encontrado ‘abaixo de’, era derivado
‘de cima’, pois, como dissera S. Paulo, ‘Não há poder exceto
o de Deus’. Aqui só se pode falar de ‘poder delegado’[...].
De acordo com essa tese, o povo não tem outro poder senão
aquele que foi dado ‘de cima’. [...]. O governante supremo
era responsável somente diante de Deus” – N. R.].
Ou seja, o que a caracteriza como descendente é o fato do
poder ser delegado aos homens por Deus, causa primeira e
universal de todas as coisas e autor da natureza humana. O
povo, enquanto comunidade, é a sede da soberania. Mas
para tornar-se uma comunidade política, em sentido próprio,
o povo faz uma translatio potestatis, isto é, transfere voluntária
e imediatamente esse poder a um príncipe, que atualiza
o poder da comunidade e confere-lhe unidade política. Com
isso, o povo passa a sujeitar-se ao soberano e só pode resistir
a ele, de direito, quando esse soberano tornar-se um
tirano, transgredindo os fins da comunidade política – fins
conhecidos por todos os governantes cristãos e respeitadores
da fé. Nesse caso, o Sumo Pontífice pode liberar os
súditos de seu dever de obediência e declarar o soberano
tirânico. Para essa versão, conferir, por exemplo, Suárez
(1856-1878, tomo 24, III, 2, 1 e 17; III, 5, 2). Cf. Bellarmin
(1949, cap. 5).
RUMO AO ESTADO MODERNO
110
A maioria dos conflitos de legitimidade,
portanto, pode ocorrer sem necessidade de recurso
a uma teoria ascendente pura, que faça do povo a
fonte absoluta do poder. É mais funcional,
ideologicamente, contestar as pretensões do
Papado sem negar a noção de Deus como fonte
original do poder. No fundo, a grande questão era
identificar o intermediário, o comissário do Senhor.
Os grandes confrontos políticos entre papas,
imperadores e reis diziam respeito não só à definição
de áreas de influência e à divisão de funções, como
também ao poder de legislar. Durante a maior parte
da Idade Média, a fonte da lei não foi objeto de
discussão. Deus é o legislador, o Papa é seu
representante e ao poder temporal nada resta além
de conduzir os assuntos humanos de acordo com
as normas divinas. De certo modo, a lei era um dado.
Mais precisamente: as grandes linhas da legislação
apareciam como dadas, mas o Papa resolve as
questões emergentes de acordo com critérios
pragmáticos e dentro do horizonte dos interesses
imediatos.
Enquanto esse ponto de vista prevaleceu, não
houve conflito sobre as fontes das normas e,
portanto, de jurisdição. Ressalve-se: esta é uma
descrição sumária. Disputas de jurisdição existiram
desde o início da Igreja e dentro da própria Igreja.
O triunfo de Roma sobre a Igreja do Oriente foi o
primeiro exemplo. Mas a amplitude e a importância
dos confrontos a partir do século XI foram
imensamente maiores, porque o cenário não era o
mesmo (a Europa estabilizara-se), havia novos
atores em cena (poderes regionais em busca de
consolidação) e os valores em disputa eram
diferentes.
Os novos conflitos, principalmente a partir da
questão das investiduras, deram origem a uma
extensa literatura jurídica, política e artística. O
apogeu desse movimento ocorreu nos séculos XIII
e XIV. Grande parte da produção, talvez a mais
conhecida, trata do debate dos poderes do Papado
e do Império. Curiosamente, alguns dos textos mais
notáveis apareceram quando o Império já pouco
significava. No século XIV, quando entraram no
debate figuras como Guilherme de Ockham e
Marsílio de Pádua, a influência do Imperador era
muito limitada e o poder dos reis, em contraste,
cada dia mais sólido. É como se os confrontos entre
Papado e Império compusessem o cenário para a
consagração de um novo poder, o do Estado
moderno.
Em alguns dos textos mais ricos do século XIV,
o poder real aparecia como um dado, enquanto o
do Imperador e o do Papa eram objetos de
discussão. Bom exemplo é o capítulo final do
Brevilóquio sobre o principado tirânico, de
Guilherme de Ockham. Nessa passagem, o não
reconhecimento pelos reis de França de nenhum
superior em assuntos temporais é mencionado
como um argumento, isto é, como um fato fora de
disputa e reconhecido pela própria Igreja (cf.
OCKHAM, 1988, p. 184). O assunto em debate era
outro: a pretensão do Papa de estender seus
poderes sobre o Imperador.
Faltava pouco, nesse momento, para a
pulverização da idéia de comunidade cristã
universal. Como indicou Francesco Calasso, essa
noção manteve-se sobretudo como uma moldura
ideológica do debate político – moldura, porém,
cada vez menos importante. Todavia, o poder real,
muito mais concreto que o imperial no século XIV,
só se consolidou por meio de uma história de
disputas com a Igreja e com o Império, em que os
reis enfrentaram cada adversário separadamente.
No caso inglês, o confronto com o Império foi
desnecessário. Restava, como rival, o poder do
clero. Quando Henrique II resolveu intervir no foro
eclesiástico, a lealdade dos homens influentes
estava definida. Thomas Becket só aceitou a
decisão do Parlamento de Westminster com uma
restrição: “salvo ordine nostro et iure Ecclesiæ”.
Henrique II recuou, por um momento, e em seguida
o Parlamento especificou, em 16 artigos, as
restrições. Becket aceitou, mudou de idéia e fugiu
para a França.
Significativamente, partiu do Papa, Alexandre
III, a tentativa de entendimento. A resistência de
Becket acabou quase à margem da política pontifícia
oficial. Ao reconciliar-se com Henrique II, ele
manteve a cláusula: “salvo honore Dei”. O rei,
aparentemente, dispôs-se à convivência.
Historiadores descreveram o assassínio do
Arcebispo quase como um mal-entendido ou fruto
de intriga. Henrique II, incitado por intrigantes, teria
deixado escapar a frase famosa: “Não há ninguém
capaz de vingar a honra do rei contra esse
sacerdote?”.
Quatro cavaleiros decidiram executar o serviço.
A morte de Becket, no templo, foi descrita por
Salisbury como um martírio (SALISBURY, 1984, p.
30). O mesmo Alexandre III, que tentara a
111
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 23: 103-114 NOV. 2004
conciliação com Henrique II, canonizou Becket
em 1173, três anos depois de sua morte. Acidente
ou não, o fim da história parece lógico. O poder
do rei impôs-se ao resistente e a Igreja fez da vítima
um santo. Que outro desfecho seria mais
emblemático? Hobbes poderia ter feito essa
pergunta.
Os confrontos de Roberto da Sicília com o
Imperador e de Felipe, o Belo, com o Papa são
especialmente interessantes por seus
desdobramentos jurídicos. A controvérsia entre o
Papa Bonifácio VIII e Felipe, o Belo, começou
quando o Rei francês decidiu tributar o clero. A
medida foi contestada pelo Papa na bula Clericis
laicos em 1296. Bonifácio declarou ilegal a taxação
e proibiu o clero de pagar impostos sem expressa
autorização papal. Recuou, depois, ao descobrir o
apoio encontrado por Felipe, mesmo entre os
padres, em torno de questões de interesse francês.
A essa sucedeu uma polêmica sobre o direito da
Coroa de prender e julgar um bispo acusado de
traição. A crise terminou com a morte do Papa, dias
depois de um grupo mandado pelo Rei ter tentado
prendê-lo. A história ficou por isso mesmo e,
assinalou Strayer, “os papas que se seguiram não
conseguiram reavivar qualquer interesse pelo caso”
(STRAYER, s/d, p. 60).
Bastaria esse desfecho para tornar esse conflito
extremamente importante como episódio de
afirmação do poder real. Mas a história interessa
também pelo desenvolvimento do debate suscitado
pela questão fiscal. A defesa das pretensões reais,
lembrou Ullmann, aparece em tratados escritos por
ministros do rei e por professores da Universidade
de Paris – estes protegidos pelo anonimato. Um
texto especialmente interessante mencionado por
Ullmann é a Discussão entre um clérigo e um
cavaleiro. Segundo o cavaleiro, Jesus nunca deu
ao Papa os poderes por este pretendidos; sendo
apenas um governante espiritual, sem domínio, não
cabe ao Papa ditar leis (cf. ULLMANN, 1965, p.
156).
Em 1312, Roberto, o Sábio, resistiu às forças do
Imperador Henrique VII, quando este estava em
campanha na Itália. Foi, então, acusado de traição,
com o argumento de haver incitado os toscanos e
lombardos a rebelar-se contra as forças imperiais e
a expulsar a administração germânica do Norte da
Itália. O rei siciliano foi citado, recusou-se a
comparecer perante o tribunal imperial de Pisa e
foi condenado por crime de lesa-majestade.
Como o reino da Sicília era, nominalmente,
feudo do Papado, Roberto levou o problema ao
Papa, que consultou vários juristas eminentes. Em
1313, Clemente V editou o decreto papal Pastoralis
cura, aderindo oficialmente ao ponto de vista, até
então teórico, de que o rei é soberano em seu
território e não pode ser citado ante o tribunal de
nenhum outro rei nem ante o do Imperador. Como
rei, não poderia cometer alta traição contra nenhum
outro rei, por não ser súdito.
Esse decreto foi provavelmente a primeira
expressão legal do conceito de soberania territorial.
Negava a universalidade do poder do Imperador,
em que o Papa sempre havia insistido com especial
interesse. Segundo o decreto, o Imperador só
exerceria um poder territorialmente limitado. Para
muitos juristas, tanto acadêmicos – como os da
Universidade de Bolonha – quanto profissionais,
a idéia era bem familiar desde o século XIII.
A referência mais freqüente remete a
Beaumanoir, autor do primeiro texto conhecido em
que aparece a palavra “soberano” (“souverain”).
A noção vinculava-se tanto à idéia de função
governamental quanto à de jurisdição: “Verdade é
que o rei é soberano acima de todos e tem, de seu
direito, a guarda geral de todo o seu reino, pelo que
ele pode estabelecer tudo que lhe aprouver para o
proveito comum, e o que ele estabelece deve ser
seguido [...]. E, como ele é soberano acima de todos,
nós o nomeamos ao falar de alguma soberania que
lhe pertença” (BEAUMANOIR, 1970, § 1043).
Todas as propriedades mais importantes do
poder soberano, tais como concebidas pelas
modernas teorias do Estado, aparecem nessa
passagem de Beaumanoir: o domínio definido (“seu
reino”); o poder legislativo amplo (“estabelecer
tudo que lhe aprouver para o proveito comum”); o
caráter vinculante das normas (“o que ele
estabelece deve ser seguido”); o uso da força como
parte da função (“a guarda geral de todo o reino”);
a supremacia da autoridade (“soberano acima de
todos”) e, o que é especialmente significativo, a
idéia de uma legitimidade independente de qualquer
outro poder (“tem, de seu direito” todos os poderes
e funções mencionados).
Retomando o argumento de Calasso, quando
se entende esse processo formador, pode-se fazer
a crítica da opinião comum que nega haver a Idade
RUMO AO ESTADO MODERNO
112
Média conhecido o conceito de Estado e, também,
o de soberania. Segundo essa opinião, as duas
idéias só se afirmaram no século XVI, com o
triunfo do absolutismo, isto é, das condições de
poder descritas teoricamente por Jean Bodin11.
Os tempos modernos, escreveu Calasso,
preencheram a palavra “soberania” com um
conteúdo que, como “fatalmente sucede às fórmulas
definitórias”, foi-se petrificando e assumindo o
peso de um dogma, um “verbum mysticum,
destinado a cobrir alguma coisa que na realidade
se havia distanciado sempre mais das
consciências”. Fazer a história de um dogma,
segundo Calasso, implica dissolvê-lo. Esse dogma
a Idade Média não conheceu, por ser uma criação
da Idade Moderna. Mas, ao invés, “pôs o seu
problema em termos modernos e seu esforço
consistiu sobretudo na consumação do velho
invólucro que, como se viu, havia incubado a nova
idéia” (CALASSO, 1965, p. 256-257).
Marcel David, examinando o uso das palavras
“soberano” e “soberania” nos séculos XIII e XIV,
pôs na mesa um argumento importante: nos séculos
XII e XIII, “três das noções expressas em francês
pela palavra ‘soberania’ já existiam, simplesmente
adaptadas à estrutura da sociedade política da
época. Duas delas, ‘autoridade suprema’ e ‘recusa
de toda ingerência de um superior no nível de uma
potência reconhecida como legítima’, exprimiamse
pela mesma palavra: auctoritas. Quanto à
potência pública, é a palavra latina a partir da qual
ela formou-se, potestas, que habitualmente serve
para exprimi-la. Assim, o pensamento político dessa
época soube fazer do vocabulário um uso mais
judicioso do que a partir do século XVI” (DAVID,
1954, p. 14). Além de tudo, disse também Marcel
David, “a história e a lógica não se opõem a que
as idéias inerentes ao termo ‘soberania’ tenham
sido já extraídas, simplesmente expressas no latim
da época, com ajuda de um vocabulário original
que pôde muito bem permanecer sem grande
influência sobre aquele que utilizamos em francês”
(idem, p. 17).
É a insuficiência dessa noção de processo, em
sua análise, que dificulta o tratamento das noções
de Estado e de soberania no capítulo de Heller sobre
os pressupostos históricos do Estado atual. O texto
contém referências históricas, mas permanece preso
a uma perspectiva tipológica que acaba sendo
dogmática. Por isso, ele acaba tratando exemplos
históricos importantes, como os da Sicília e da
Inglaterra, quase como casos excepcionais, desvios
da norma, dados que não desmentem a communis
opinio. Talvez o problema esteja no fato de que,
enquanto Weber utilizou material histórico para
construir um tipo, Heller, movido por uma inspiração
declaradamente weberiana, tenha partido de um tipo
(do Estado) e de um conceito cristalizado (o de
soberania) para examinar a história política medieval.
O caminho percorrido até aqui autoriza,
portanto, afirmar que a noção de gubernatio já não
basta, obviamente, para dar conta dos elementos
apontados nesse texto. A palavra pode continuar
em uso, mas tornou-se cada vez mais pobre diante
dos desenvolvimentos políticos e jurídicos ao
longo dos séculos XIII a XV. Novas noções são
necessárias para dar conta dos novos fatos. Seja
polemizando, seja refletindo sobre o espetáculo da
política, os filósofos e juristas do final da Idade
Média tentaram refazer o quadro conceitual. A
tarefa ganhou impulso considerável a partir da
recuperação de Aristóteles por São Tomás de
Aquino. Muito trabalho estava feito quando
Maquiavel e Bodin produziram seus tratados sobre
as questões do Estado e da soberania. Nem os
teóricos anteriores trataram apenas do que deve
ser, desconhecendo a “verità effetuale delle cose”,
nem foram cegos diante dos atributos do poder
soberano.
11 A opinião é bastante antiga, mas encontrou refinados
defensores no século XX. Apareceu, por exemplo, entre
outros, na abordagem de Heller e seus discípulos, que são
numerosos (cf. HELLER, 1987, p. 152ss.). Com aparência
mais moderna, revestida de coloração histórica, foi repetida
por autores contemporâneos como Bartelson (1995, p.
90ss.).
Raquel Kritsch (kritsch@uel.br) é Doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e Professora Adjunta do
Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
113
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