sábado, 18 de agosto de 2012

EMIR SADER: QUEM TEM MEDO DE CUBA?



Quem tem medo de Cuba?


Por Emir Sader
Professor de Ciência Política na UNICAMP


Voltar ao Brasil, tendo estado em outros países da América Latina, é como entrar no país pela porta dos fundos. Parece que o gigante adormeceu de cara para a Europa e de traseiro para a América Latina. Mesmo quando atolados no lamaçal dos devedores desesperançados, nossos olhos estão postos nas potências capitalistas, incentivados pelas estatísticas que os organismos dirigidos por elas nos mandam de volta: primeira potência industrial do mundo capitalista, quinto maior exportador de armamentos do planeta! Cegos pelas miragens, quanto mais nos agitamos de alegria, mais rapidamente nos afundamos na lama do subdesenvolvimento.

De retorno a um Brasil enredado nas malhas do FMI e dos bancos internacionais, eu tinha a esperança de ver que o país havia assumido de forma mais real sua identidade, dilacerada entre o feijão e o sonho, entre a ilusão de saltar o muro do Terceiro para o Primeiro Mundo e a terrível realidade cotidiana de 100 milhões de pessoas em condições de carência. Claro que é difícil, para o país mais rico e mais pobre do continente, definir exatamente quem ele é, a que universo ele pertence. Mais ainda quando a teimosa realidade insiste em reiterar-nos todos os dias qual é o chão em que pisamos, quem manda nele, qual é o grau verdadeiro da nossa soberania.

É verdade que a história brasileira tem peculiaridades importantes em relação ao resto da América Latina. A partir da colonização portuguesa, passando pelo fato de que não tivemos guerras de independência. Nos outros países, as lutas pela independência trouxeram pelo menos duas conseqüências importantes: o povo pôde visualizar claramente quem era seu inimigo imediato — a Espanha, como metrópole colonizadora e seu exército, — e assim participou massivamente na guerra e na fundação do exército nacional. O sentimento nacional nos outros países do continente já era então muito mais arraigado que no Brasil, desde a independência, dado que aqui se deu um processo bastante descaracterizado de proclamação da nossa soberania, com quase setenta anos de monarquia.

Ainda com essas diferenças, nosso destino não se diferenciou, no fundamental, do resto dos países latino-americanos: dominação inglesa e depois norte-americana, economias baseadas na exportação de produtos primários, industrializações dependentes do capital estrangeiro, ciclos de regimes parlamentares com ares democráticos e ditaduras, com as Forças Armadas desempenhando funções de tutela política e diretamente repressivas.
Países como o México e a Argentina — para citar dois deles — são referências que ajudam muito a compreender nossa história, muito mais do que pensá-la em comparação com os EUA, o Japão ou qualquer país europeu. Eles não estão apenas "na nossa frente", mas destruíram as pontes do caminho que já fizeram.




Cultivando as miragens
Mas as classes dominantes, porém, faturam em cima dessas "diferenças". Porque elas necessitam manter de pé as miragens de que um dia deixaremos de ser índia, para ser Bélgica (que Deus nos livre!). Os jornais, de todas as tendências, alimentam suas seções internacionais basicamente nas grandes agências de "notícias" norte-americanas ou algumas européias, que lêem o mundo da perspectiva dos dominadores e nos "explicam o mundo" — e inclusive nós mesmos — com a conivência de nossa grande imprensa.

Mesmo computando tudo isso, não deixou de ser assustadora a rea-ção da imprensa — de direita até a chamada liberal — diante da viagem de Lula a Cuba no ano passado. Neste último ano, foi o único tema de unanimidade do que é conhecido como "grande imprensa".
Ninguém deixou de soltar seus editoriais para condenar o fato de que um dirigente sindical e político brasileiro tenha se atrevido a dizer que Cuba — um país exportador de açúcar, caribenho e ainda por cima socialista — resolveu em 25 anos os principais problemas do seu povo, tais como a fome, o desemprego, a saúde, a habitação, a prostituição, as drogas, a discriminação racial, a corrupção, o contrabando, a violência, problemas que se incrementaram, em vez de diminuir, no último quarto de século no Brasil.

A indignação e o tom de "dons da verdade" dos tais editoriais e as referências depreciativas com que boa parte dos articulistas internacionais se referiram a Cuba dão a medida do provincianismo da nossa "grande imprensa". é como se a guerra fria, e depois, vinte anos de censura e autocensura tivessem entronizado na cabeça deles um misto de policial e de censor.

Esse clima de tabu em relação à realidade cubana tem seu contraponto na reação de praticamente todos os brasileiros que visitam a Ilha. Voltam com os olhos brilhando, com um singular ar de identificação, esperança e simpatia com o processo cubano, que a mencionada imprensa só pode explicar porque teriam passado por lavagens de cérebro ou porque os milhares de presos e as centenas de prisões teriam sido camuflados atrás das usinas de açúcar, dos estádios de atletismo e das escolas de campo.

Um jornalista francês fez, no ano passado, uma viagem a Cuba. Foi buscar, para sua revista, decididamente anticubana, os tais "campos de concentração", descobrir os "dissidentes", revelar finalmente ao mundo que não foi o socialismo, mas a barbárie que se instalou lá, ou que esta é o novo nome daquele. Voltou a Paris reafirmando suas divergências com os caminhos políticos e ideológicos da revolução cubana, mas garantindo que os próprios contatos que levava consigo, de gente que diverge da revolução, lhe asseguraram que não conheciam ninguém que estivesse preso, que os tais "campos de concentração" não existem e que umas pessoas, surpreendidas, lhe diziam: "No começo, sim, houve fuzilamentos, uns 400, e vocês apoiavam freneticamente a Fidel Castro, diria um deles. Agora, que está tudo institucionalizado, não existem fuzilamentos, nem nada disso, vocês se põem contra. Realmente não os entendo".

A reação diante da fantástica cortina de mentiras e, principalmente, de silêncios sobre a realidade de fato da sociedade cubana de hoje, tem responsabilidade nas eventuais reações não críticas de adesão ao conjunto de respostas que Cuba deu, numa situação histórica específica, a seus problemas. O que existe de particular e de geral na situação cubana? Cuba não é certamente nenhum "modelo" a seguir, mesmo porque os "modelos" não existem na história. Cada solução, revolucionária ou não, seguiu.seu próprio caminho: o triunfo soviético desobedeceu as previsões de Marx, a revolução chinesa inovou grandemente em relação à russa, e assim por diante, no que toca a Cuba, à Nicarágua. Todo processo revolucionário é inovador e todo processo social em geral é único. Mas isso quer dizer que "tudo é igual, nada é melhor", como diz o tango?




O "mau exemplo" das conquistas sociais
Cuba representa um inquestionável exemplo de que é possível resolver os problemas básicos do povo ainda dentro do subdesenvolvimento. A sociedade cubana é pobre materialmente, mas lá não existe miséria, todos estão integrados econômica, social, política, cultural e racialmente à sociedade e esta é a base da democracia política cubana. A revolução cubana contribuiu, portanto, aos países da periferia capitalista — entre os quais nos encontramos, apesar dos sonhos do "Brasil grande" — com a experiência de que esses avanços são possíveis, com uma condição: a liquidação do capitalismo.

É isso que faz de Cuba uma questão "subversiva" para os guardiães dos interesses dominantes: o "mau exemplo". Nisso, acabam sendo valiosamente ajudados pelos "liberais" de todos os matizes, com seus argumentos sobre a "exportação da subversão" por Cuba e do regime político "totalitário", com seus milhares de presos políticos e "asilos psiquiátricos". Argumentos com que se pretende passar por alto as conquistas inegáveis da sociedade cubana. No seu liberalismo não cabem nem relações diplomáticas com Cuba, no que temos a companhia, no continente, de Pinochet,de Stroessner, de Duvalier, dos regimes militarizados de El Salvador, da Guatemala, de Honduras. Governos minimamente soberanos como os da Argentina, México, Venezuela, Peru, Bolívia, Panamá, Equador já não aceitam os argumentos do governo norte-americano e têm relações normais com Cuba. Essas relações passaram a ser na América Latina sinônimo de soberania mínima na política externa e constantemente se identificam com o processo de democratização do país.

Nos anos 60, e durante boa parte dos 70, a "grande imprensa" mentia, sobre Cuba, no mesmo estilo da época da "guerra fria": na Ilha imperava a miséria, e o país era um verdadeiro campo de concentração. à medida que a informação passou a circular mais amplamente, que os organismos internacionais, como os de saúde, de educação, de cultura, de agricultura e outros, ligados à ONU e outras entidades internacionais reconhecidas e legitimadas, consagravam os avanços de Cuba, já não se podia seguir na mesma cantilena. Aí o tom mudou: se reconhecem as conquistas econômicas e sociais, às vezes até as culturais, mas se alega que "o preço disso foi a perda da liberdade".

Não é Cuba que é uma resposta esclarecedora em relação aos problemas do subdesenvolvimento: é o anticapitalismo e o socialismo das suas soluções como perigoso parâmetro de reflexão para os outros povos. A campanha internacional de que o "socialismo já era" e que, então, tudo é possível, em que se sustenta uma nova direita e as correntes neoliberais, encontra um desmentido flagrante na experiência cubana que, portanto, não lhes convém.

O sistema político cubano não é modelo para nenhum outro país, porque é a forma particular que o povo cubano encontrou para responder a todas as agressivas campanhas políticas, ideológicas e militares dos EUA para impedir, como centenas de outras vezes havia feito na região centro-americana e do Caribe, que regimes não do seu agrado se instalassem. 

Olhado, agora, é praticamente um milagre que Cuba tenha sobrevivido contra os desígnios do seu imenso e hostil vizinho a 140 quilômetros de distância. Uma das condições disso foi uma férrea unidade interna, para impedir que acontecesse como na guerra de independência de fins do século passado, quando a Espanha havia sido virtualmente derrotada pelo exército popular cubano e os EUA intervieram para se apropriar do triunfo e desenvolveram uma política de divisão da frente anticolonialista, para impor seu domínio por mais de meio século.
O sistema político cubano é um sistema de partido único, produto da fusão dos três partidos que participaram ativamente do processo revolucionário. O Estado cubano se apóia em assembléias do poder popular, eleitas (e passíveis de substituição a qualquer momento por seus eleitores) com um mínimo de três candidatos para cada posto, eleitos em assembléias públicas de massas.

Nem sequer do ponto de vista do que pensava Lenin, se pode dizer que este sistema seja um modelo, dado que a chamada "ditadura do proletariado" leninista não implicava a existência de um partido único, fenómeno que só pode ser explicado pelas condições históricas e políticas concretas que Cuba teve que enfrentar para se afirmar contra a vontade dos EUA. A própria Nicarágua constrói um sistema plu-ripartidário. Quanto ao apoio popular, bastava que nossa imprensa informasse minimamente, com fotos nos jornais, filmes na TV e entrevistas com cubanos, para atestar que nenhum governo no mundo mobiliza tão amplamente o povo e recebe dele apoio tão ativo quanto o cubano, 25 anos depois de sua instalação.

Se o regime político tem raízes nacionais, as linhas de abordagem das questões referentes ao destino que o capitalismo reserva para o conjunto do povo têm muito que ver com a totalidade do continente e, portanto, conosco.




A nossa identidade latino-americana
Mas, para o Brasil — e aqui penso em particular nas suas forças democráticas, populares e nacionais — mudar o enfoque em relação a Cuba tem que ver com a percepção da nossa própria identidade de país latino-americano, do grupo intermediário de nações da periferia capitalista, às voltas não somente com seu processo de democratização, mas com a crise do seu sistema capitalista. Afinal de contas, a ditadura é filha do capitalismo em crise, e se não cortarmos o capim ruim pela raiz, ela tende a crescer de novo. E reconhecer o chão em que pisamos facilita a escolha dos herbicidas.


FONTE:

Lua Nova: Revista de Cultura e Política Print version ISSN 0102-6445 Lua Nova vol.2 no.2 São Paulo Sept. 1985
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64451985000300010
PENSANDO O BRASIL acessado em 18/08/2012 em :

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-64451985000300010&script=sci_arttext

2 comentários:

  1. Quem tem medo de Cuba é o Coxinha Marxista Emir Sader, por isso que não vai para Cuba!

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  2. Você deveria ler o post que eu repliquei hoje, uma carta aos analfabetos políticos. Quem sabe ele ilumine um pouco o seu cérebro obscuro, cheio de chavões midiáticos, falácias pueris e imbecilidades variadas...

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