domingo, 12 de agosto de 2012

A metástase dos juros



Vamos enfrentar um assunto importante para perceber a nossa sociedade e todo o Capitalismo: os juros.
Os juros são hoje considerados normais, indispensáveis para o funcionamento dum qualquer banco.
De facto, parece normal: o banco empresta dinheiro, o banco ganha uma percentagem do dinheiro emprestado.
É isso normal? Sim, na sociedade contemporânea é normal.
Este é o conceito de juro? Sim, e de usura também.
Pois temos que entender uma coisa: "juros" e "usura" são a mesma coisa. A única diferença é que a usura é um juro "excessivo". Mas que significa "excessivo"? Quem estabelece quando um juro deixa de ser legal e torna-se usura?
Não existe uma lei natural que possa ajudar: é o homem que decide isso. A demonstração é que a "fronteira" entre juros e usura não é igual em todos os Países.
Mas vamos com ordem.
Antiguidade: juros? Não, usura
Wikipedia, que tudo sabe e ensina, explica:
Documentos históricos redigidos pela civilização suméria, por volta de 3000 a.C., revelam que o mundo antigo desenvolveu um sistema formalizado de crédito baseado em dois principais produtos, o grão e a prata.
Antes de existirem as moedas, o empréstimo de metal era feito baseado em seu peso. Arqueólogos descobriram pedaços de metais que foram usados no comércio nas civilizações de Troia, Babilónia, Egipto e Pérsia. Antes do empréstimo em dinheiro ser desenvolvido, o empréstimo de cereal e de prata facilitava a dinâmica do comércio.
Pergunta: mas o que isso tem a ver com os juros? Em verdade nada, aqui fala-se de empréstimos, de créditos, não de juros. Mas serve: serve para que o Leitor comece a considerar o juro como uma componente natural do empréstimo. O que é falso.
No artigo Os bancos do Islão é explicada a forma como os bancos islâmicos funcionam: sem juros, pois estes são expressamente proibidos pela religião (riba, proibição de juros).
Mas, surpresa, os juros são condenados também na Bíblia:
Não deves emprestar com juros ao teu irmão; interesse de dinheiro, interesse alimentar, interesse de tudo o que é emprestado
(Deuteronomio 23:19)
E se emprestardes àqueles de quem esperais receber, que mérito há nisso? Também os pecadores emprestam aos pecadores, para receberem outro tanto.
(Lucas 6:34)
Mas ainda antes do Novo Testamento, os Gregos tinham chegado à mesma conclusão: neste caso Wikipedia versão italiana explica que
além de Aristóteles, outros pensadores da Antiguidade condenaram a usura: Platão, Cato, Cícero, Séneca e Plutarco.  
O que é outra vez falso. O que Aristóteles diz é o seguinte:
nummus nummum parere non potest
    isso é: o dinheiro não pode gerar outro dinheiro. Aristóteles e companhia não tinham condenado a usura, mas todas as formas de ganhar dinheiro a partir do dinheiro. Tinham condenado os juros.
    Também a Republica de Roma proibia os juros; a Lex Genucia de feneratione, de 340 a.C., previa que o empréstimo com juros fosse proibido.
    E ao longo da Idade Média as coisas não mudaram: São Tomás de Aquino (séc. XIII) argumentou que a cobrança de juros era errada, porque equivalia a "dupla cobrança", cobrando tanto para a coisa que ao uso da coisa (São Tomás tinha ideias um pouco confusas acerca do assunto, mas enfim...).
    A Igreja (e com ela toda a sociedade ocidental) considerou este como um pecado da usura: o Concílio de Lyon II, em 1274, e o Conselho de Vienne, de 1311, condenaram expressamente a cobrança de juros, entendendo o empréstimo como uma venda de dinheiro com pagamento diferido, cujos interesses não eram justificados pelo passar do tempo, sendo o tempo um "bem comum".
    A formula é um pouco contorcida, mas a síntese simplificada faz sentido: o empréstimo de facto é uma venda de dinheiro, então, enquanto venda, não é justo que o preço varie com o passar do tempo. O preço tem de ser estabelecido antes e não pode variar.
    Resumindo: no Mundo Antigo as principais religiões eram contrárias aos juros (também o Budismo segue a mesma linha de pensamento), e por três razões:

  • não é correcto fazer dinheiro a partir de dinheiro
  • uma mera questão de transparência (o preço fixo e invariável, antes)
  • o perigo da usura (que depois são os mesmos juros). 
      Mas tudo muda com a reforma luterana e, sobretudo, com Calvino: os juros são admitidos. Sucessivamente o Código Napoleónico (1804) liberaliza o contrato de empréstimos e vários economistas tentam fornecer uma base teórica ao conceito de juro: Irving Fisher e Eugen von Boehm-Bawerk nos últimos 200 anos.
      Bawerk, em particular, afirma que os juros existem "por causa da manifestação das preferências temporais dos consumidores, já que as pessoas preferem consumir no presente do que no futuro". Como dizer: os juros existem por causa dos consumidores, é apenas culpa nossa.
      A ideia de fazer surgir no cidadão sentidos de culpa não é tão nova, afinal.
      Qual a diferença?
      Mas voltamos ao princípio: qual a diferença entre juro e usura?
      Repito: não há. Cada País estabelece um limite, além do qual a lei não reconhece o juro mas a usura.
      Na Europa é geralmente aceite um limite de 30%, além do qual fala-se em usura. Mas há diferenças.
      Em Italia, por exemplo, o limite é 50%, em França 113%, em Espanha não há um limite, que é estabelecido a segunda dos casos pelos juízes; nos Estados Unidos a leiGarn-St. Germain estabelecia 10% como limite, mas foi abolida em 1982.
      E também na Europa as coisas estão prestes a mudar: existe uma proposta para liberalizar completamente o mercado do crédito, sem limites para os juros. E os Países que ainda aplicam controles anti-usura (Italia, França, Alemanha, Holanda) serão obrigados a interromper qualquer forma de controle.
      De facto estamos perante a medida mais inteligente para combater a usura: torna-se a mesma usura legal. E, como já sabemos, o mercado que sabe auto-regulamentar-se faz o resto...
      Mas se os juros são maus, como é possível imaginar um banco que trabalhe sem eles? Não será ficção científica?
      A resposta é: não.
      Já existem bancos que trabalham sem juros: são todos os bancos dos Países muçulmanos. Lembramos: não podem trabalhar com juros, seria um pecado particularmente grave.
      Mas não apenas muçulmanos: um banco europeu sem juros existe já, é o JAK Medlemsbank, um banco da Suécia.
      JAK: banco sem juros
      Como funciona? Como pode um pobre banco sobreviver sem juros?
      A filosofia do JAK (que funciona desde 1933) é simples:

    • os rendimentos dos juros são inimigos da estabilidade económica
    • o juro provoca desemprego, inflação e destruição do ambiente
    • o juro desloca matematicamente dinheiro dos pobres para os bolsos dos ricos
    • o juro favorece projectos que atinjam altos lucros em pouco tempo
        e desafio alguém a demonstrar o contrário.
        JAK propõe um modelo financeiro alternativo e um conceito de poupança livre da ideia do juro especulativo, somando 35.000 sócios que emprestam o dinheiro um ao outro sem a intervenção dum banco clássico.
        Obviamente, no JAK não existem juros (que o banco considera, justamente, como usura) e os custos administrativos e de desenvolvimento são pagos com a quota associativa e a "taxa sobre o empréstimo", igual a 2,5 % (fixo) em linha com a taxa de inflação.
        A ideia é simples: cada sócio acumula ponto-poupança e pontos-despesa, e estes dois têm de equilibrar-se. Ao pedir um empréstimo, é claro que os pontos-despesa serão maiores dos pontos-poupança; então o sócio terá de poupar para acumular outros pontos-poupança.
        Como ganhar pontos-poupança? Com depósitos que, entretanto, servirão de empréstimo para outros sócios. Uma vez reembolsado o crédito, os pontos-despesa serão iguais aos pontos-poupança e tudo começa outra vez.
        Sem juros.
        Funciona? Sim, funciona: em 2008 os sócios tinham poupado 97 milhões de Euros, dos quais 86 utilizados sem empréstimos. E, tanto para não gerar confusões, a propriedade do banco pertence aos sócios: cada sócio uma acção, não mais (e mais seriam inúteis, pois objectivo do banco não é o lucro).
        Tendo como base o modelo do JAK, nasceram dois bancos do mesmo género na Dinamarca e um na Alemanha.
        O sócio parasita e o regresso ao futuro
        Como vimos, não existe diferença entre juro e usura: e exactamente a mesma coisa, só que um é legal, a outra não. E o limite entre legalidade e ilegalidade varia consoante ao País.
        Agora, pensamos nisso: ao pedir um empréstimo para iniciar uma actividade comercial, assinamos um papel com o qual reconhecemos que ao longo de X anos uma parte dos nossos lucros ficarão nas mãos duma terceira entidade (o banco): não para devolver o empréstimo (coisa justa), mas para pagar os juros do empréstimo.
        É a mesma coisa que ter um sócio. Com a diferença é que nós temos de trabalhar, enquanto o sócio nada faz e limita-se a ficar com o lucro.
        Acham isso normal?
        Esta é a actividade dum banco.
        O banco ganha com as despesas ligadas à manutenção da conta.
        O banco ganha com as comissões das operações.
        O banco ganha com as despesas da prática.
        O banco ganha com os juros sobre o montante emprestado.
        O banco ganha com o fecho da conta (sic!).
        Continuam a achar isso normal?
        A doutrinação perpetrada pela sociedade ao longo dos séculos fez que hoje todos consideramos os juros como uma componente natural dos empréstimo e da actividade dum banco. Até por alguns é difícil entender um banco que funcione sem empréstimos. Mas assim não é: é tudo falso.
        Lembrem:

      • os rendimentos dos juros são inimigos da estabilidade económica
      • o juro provoca desemprego, inflação e destruição do ambiente
      • o juro desloca matematicamente dinheiro dos pobres para os bolsos dos ricos
      • o juro favorece projectos que atinjam altos lucros em pouco tempo

        Para perceber até a que ponto os juros desenvolvam um papel importante (fundamental) nas nossas vidas, pensamos na actual tragédia do Mundo Ocidental, a dívida pública, mas sem os juros.
        Quem compraria a dívida dos Países sem juros? Ninguém, pois não haveria nada para ganhar: os Países seriam obrigados a orçamentos mais cuidadosos, pois bem poucos seriam propensos a emprestar dinheiro sem juros (isso é, sem ganhar nada).
        Isso significa que os Países deveriam cuidar mais do próprio tecido produtivo, única fonte importante de liquidez: a verdadeira riqueza voltaria a identificar-se com a produção de bens e com a relativa venda, não com a capacidade de contrair dívida.
        Agência de rating? Para quê? O que seria avaliado sem lucros e ninguém a comprar as dívidas dos Países?
        Especulação na dívida? Especulação de quê?
        Credit Swap DefaultFutures e outros mecanismos financeiros? Seriam palavras sem sentido.
        E os bancos? Na maioria estariam nas mãos do público, pois as margens dos eventuais lucros seriam muito reduzidas.
        O que os homens do Mundo Antigo tinham percebido é que a verdadeira riqueza está na capacidade de produzir bens tangíveis (comida, máquinas) e no comercio: ganhar dinheiro a partir do dinheiro (isso é, sem fazer nada e desfrutando o trabalho dos outros) é uma aberração.
        Eles tinham chegado à esta conclusão, nós temos que entende-la outra vez.
        Ipse dixit.
        Links:  Infelizmente não há um banco sem juros ou uma associação que trate deste assunto em língua portuguesa. Em Italiano há o JAK Italia, enquanto em Inglês existe The Reciprocal Bank; depois há o site sueco do JAK, disponível também em Inglês.
        Leia também no blog do Max
        A vigança do camponês

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