Via Brasil de Fato
O Estado brasileiro reconhece 475 pessoas, entre mortas e desaparecidas, por fazerem oposição ao regime civil-militar (1964 – 1984)
Aline Scarso, da Redação
Egydio Schwade posa ao lado de indígenas Waimiri-Atroari na aldeia Yawara, em Roraima - Foto: Arquivo Pessoal
Provavelmente Egydio Schwade é um dos indigenistas vivos que mais podem contribuir com a Comissão Nacional da Verdade para esclarecer crimes praticados pelo Exército brasileiro, a mando do governo militar, contra os indígenas durante a última ditadura civil-militar (1964 – 1984). Atualmente com 76 anos, Egydio foi o primeiro secretário-executivo do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e trabalhou com a alfabetização dos Waimiri-Atroari (ou Kiña, como eles se autodenominam) em 1985, quando passou a morar com a família na aldeia deste povo na floresta amazônica. A partir dessa atividade, tomou contato com uma realidade na sua maior parte ainda desconhecida pelos brasileiros e não titubeia ao afirmar que pelo menos 2 mil indígenas dos Waimiri-Atroari de todas as idades estão desaparecidos. “São histórias de violência que precisam ser esclarecidas”, defende o ex-missionário.
Os Waimiri-Atroari constituíam suas aldeias em trajeto semelhante ao escolhido para a obra BR 174, a estrada que liga Manaus à Boa Vista, conhecida também como Manaus–Caracaraí, construída entre 1967 a 1977. Embasada em discurso desenvolvimentista dos estados da Amazônia e Roraima e do governo brasileiro, posteriormente a estrada facilitaria a instalação da hidrelétrica de Balbina e de projetos de mineração. Em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, em 21 de janeiro de 1975, o Coronel Arruda, comandante do 6º Batalhão de Engenharia e Construção, responsável pela construção da BR-174, deu o tom da ação: “A estrada é irreversível como é a integração da Amazônia no país. A estrada é importante e terá que ser construída custe o que custar. Não vamos mudar o seu traçado, que seria oneroso para o Batalhão, apenas para pacificarmos primeiro os índios”.
Em 1968, a expedição do Padre Calleri, a pedido da Fundação Nacional do Índio (Funai), constatou que aproximadamente 3 mil pessoas da etnia viviam na região. Quatro anos depois, o número foi confirmado por nova pesquisa da Funai. Em 1982, entretanto, um estudo do antropólogo e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB), Stephen Beines, verificou-se uma redução drástica dessa população, contabilizando apenas 332 Waimiri-Atroari. O que aconteceu com essa população? Egydio tenta responder.
Ele explica que era por meio de desenhos, da língua nativa Kiñayara e depois em português que os remanescentes denunciavam a dizimação de aldeias inteiras com armas de fogo e químicas. Crianças desenhavam aviões sobrevoando as aldeias. Indígenas contavam histórias de um líquido pegajoso e incendiário, provavelmente napalm, atirado contra os nativos. Histórias de tiros, dinamites, granadas também foram relatadas. “São diversas histórias e a mais chocante fala sobre a morte em massa. Uma aldeia estava em festa e nessas ocasiões praticamente todo o povo se movimenta. Tudo indica que foi no final de setembro de 1974, quando de repente, um pouco depois do meio dia, um helicóptero do Exército jogou um pó sobre as pessoas que as deixaram todas mortas. Só uma pessoa não morreu. E foi como se não tivesse acontecido nada no Brasil”, destaca.
Outro fato que chocou bastante o missionário foi a morte do pai de um de seus alunos. “Eles queriam fazer uma visita aos militares, um contato amistoso, para colocar os problemas da aldeia e eles foram recebidos à bala. O pai dele recebeu um tiro que passou pela boca, quebrando os dentes”, afirma. “Muitos dos nossos alunos eram oriundos de cinco aldeias que sumiram. Eles contam que o povo ficou muito revoltado, em consequência disso provavelmente ocorreram dois massacres contra funcionários da Funai”, relembra.
Além de um obstáculo ao desenvolvimento, os Waimiri-Atroari chegaram a ser associados à guerrilha. Um panfleto da Operação Atroaris, anti-guerrilha, escrito em versos, dizia: “Estais cercado, teus momentos estão contados; vê na operação esboçada que o teu fi m está próximo”. O folheto pedia ainda redenção do “irmão” e, como recompensa, garantia que a Operação lhes deixaria com vida.
Índios Waimiri-Atroari foram massacrados durante a ditadura
Foto: Egydio Schwade
Como atuou a Funai
De acordo com o ex-missionário, a missão da Funai era remover obstáculos. “E os obstáculos eram os índios. Depois explicavam para a opinião pública que estavam tentando proteger os indígenas, o que não ocorria”, defende. Segundo ele, a Fundação também auxiliava o governo que buscava manter longe dos Waimiri-Atroari jornalistas, pesquisadores e o movimento popular. A Funai foi procurada pela reportagem para que pudesse falar sobre os crimes cometidos contra os indígenas por suposta omissão ou autoria do Estado, mas até o fechamento desta edição não havia respondido.
Funcionários ligados ao órgão que denunciaram os abusos cometidos contra os Waimiri-Atroari na década de 1970 foram demitidos como são os casos de Milton Lloli e Apoena Meirelles. Este último, em entrevista ao jornal Opinião, veiculado no dia 17 de janeiro de 1975, chegou associar a etnia a indígenas traiçoeiros, mas ponderou: “Mas a estória é outra, e chegamos mesmo a mentir à opinião pública nacional, não contando a verdade dos fatos que levam esses índios a trucidar as expedições pacificadoras... é a estrada que corta a sua reserva, proliferando o ódio e a sede de vingança contra o branco invasor, foram os assassinatos praticados pelos funcionários da Funai durante os dois últimos conflitos”.
E continua: “Hoje em dia vamos em missão de paz, de amizade com os índios, mas na verdade estamos é trabalhando como pontas de lança das grandes empresas e dos grupos econômicos que vão se instalar na área. Para o índio fica difícil acreditar em missão de paz se atrás de você vem um potencial de destruição ecológica”.
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