“A luta armada foi uma guerra justa”, diz o bispo de Volta Redonda
Furtado e emprestado QTMD?
Especial para o QTMD?
Dom Waldyr na varanda de sua casa em Volta Redonda: "quando um país é oprimido e sofre, por estar sob domínio, a Igreja admite que os que estão sofrendo se levantem para se defender das torturas." Foto: Ana Helena Tavares
Dom Waldyr Calheiros deu abrigo e facilitou a fuga para outros países de diversos perseguidos políticos. Essa prática aliada à sua proximidade com movimentos sociais, especialmente sindicais, lhe valeu a alcunha de “responsável por toda a subversão no Vale do Paraíba”. Mas “nas costas de um bispo, há uma espécie de proteção natural”, garante. E a isso credita o fato de estar vivo e de nunca ter sido preso.
Por Ana Helena Tavares – do “Quem tem medo da democracia?“
Quem anda pela cidade de Volta Redonda, no Vale do Paraíba, sul do estado do Rio de Janeiro, fatalmente passará pela ponte Presidente Médici. Cruzá-la indo para a casa de um bispo que lutou contra a ditadura é, no mínimo, uma experiência inusitada, que mostra o quanto o Brasil ainda precisa avançar no esclarecimento de sua história.
Dom Waldyr Calheiros Novaes, bispo emérito de Volta Redonda e Barra do Piraí, abriu as portas de sua casa para conceder entrevista exclusiva ao “Quem tem medo da democracia?“ e se mostrou surpreso com o nome da ponte: “Vou tirar essa placa de lá”, disse rindo, mas expressando um desejo sério. “Médici foi o mais criminoso dos ditadores brasileiros”, completou.
Atraso para o Brasil
Ele acredita que, com o golpe de 64, “houve atraso para o desenvolvimento do país”. E prossegue: “Dali não poderia sair nenhum futuro, aquilo não poderia dar em nada. Os líderes trancados, proibidos de falar… Quem é que ia tomar iniciativas?”
A intervenção sindical em Volta Redonda
“Aqui, em Volta Redonda, o problema foi que interferiram diretamente no sindicato (dos metalúrgicos da CSN). Tiraram todos aqueles que eram independentes da ditadura e colocaram, dentro do sindicato, os seus assessores de confiança, afastando os outros. Ainda hoje tem gente aí que foi afastada naquela época. Hoje o sindicato não é mais o mesmo, porque a luta é contra a empresa, não contra a ditadura”
Em 1988, durante o governo Sarney, os operários da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) entraram em greve. Em 09 de Novembro daquele ano, o Exército invadiu a fábrica deixando três mortos. Oscar Niemeyer fez um memorial para homenageá-los. Memorial este que foi atacado a bomba em 89. No mesmo ano, um dos líderes da greve, Juarez Antunes, que havia sido recém eleito prefeito de Volta Redonda, foi morto num suposto acidente de carro. Dom Waldyr acompanhou toda essa história e até hoje acredita que foi atentado.
Álbum de recordações
Na foto histórica, o bispo emérito de Volta Redonda, Dom Waldyr Calheiros, aparece de microfone em punho celebrando missa do velório dos 3 funcionários da CSN mortos na greve de 1988.
No quadro, pendurado na parede da casa de Dom Waldyr, vemos o registro do momento em que os operários da CSN decidiram aderir à greve. Foto: Ana Helena Tavares
O banqueiro e as tropas
Falando sobre a influência do capital financeiro na sustentação da ditadura, Dom Waldyr lembrou que um banqueiro mineiro mobilizou tropas de Juiz de Fora para ajudar no golpe. “Vieram para o Rio de Janeiro e no meio do caminho houve uma negociação. Um dos coronéis era meu conhecido, general Cesar Neves, e ele me contou como foi aquilo tudo.”
O poder econômico “dominou, animou e impulsionou”
“Quer dizer, houve iniciativa de empresários. Não há dúvida nenhuma, porque os militares sozinhos, por serem militares, não tinham interesse pessoal em torno disso, tinham que ter o poder econômico por trás. Era o econômico que estava dominando, animando e impulsionando”.
Omissão da mídia
Para o bispo, “a mídia se manteve completamente ausente diante da extravagância da ditadura. Foi totalmente omissa, porque tinha interesses econômicos. Nossa democracia não deve nada a eles, a não ser a um ou outro, como o Pasquim.” Mesmo sabendo que havia censura por parte do governo, ele acredita que “os grandes meios de comunicação, se quisessem, poderiam divulgar informações sem assumi-las como posição própria.”
“Porque o problema é que, muitas vezes, havia jornalistas com coragem, dispostos a assinar notícias denunciando o que estava acontecendo, mas os próprios donos não permitiam a veiculação. Para eles, aquilo era comum. Havia todo um comprometimento. O Roberto Marinho de braços dados com Figueiredo não me deixa mentir.”, ironiza Dom Waldyr.
O apoio da Igreja Católica ao golpe
Quando “estourou” o golpe, que Dom Waldyr garante ter sido em 1º de Abril de 1964, ele era bispo auxiliar do Rio de Janeiro. “Naquela ocasião, o cardeal Dom Jaime de Barros Câmara e Dom Hélder Câmara, que era o secretário da CNBB, pediram uma audiência ao general de plantão (Castelo Branco). Eles se encontraram em Laranjeiras, numa casa pertencente ao governo, junto com mais uns cinco bispos, dentre eles Dom Sigaud, que era da oposição à renovação da Igreja. Hélder ali falou claramente que apoiava as decisões do poder militar e que a Igreja não se ausentava daquela situação, mas não tomou a iniciativa nem estimulou.”, contou Dom Waldyr.
A reação da Igreja
“No entanto, quando, no mesmo ano, começaram as torturas, que chegaram dentro de casa, houve uma perseguição a muitos membros da Igreja que lutaram contra a ditadura. Aí, houve outra reunião. Foi para desfazer o contentamento da Igreja com o golpe.”
Dom Waldyr Calheiros: A Igreja, depois que viu que seus membros não foram livrados das prisões e das torturas, começou a mudar sua postura.”
“Naquela época, havia muitos movimentos sindicais, que faziam passeatas. Naturalmente, aquilo, para a Igreja, era um pouco de desordem. Mas já era uma reação dos operários à ditadura que foi estabelecida. Eles é que reagiram num primeiro momento. A Igreja, depois que viu que seus membros não foram livrados das prisões e das torturas, começou a mudar sua postura.”
O Cardeal que mudou de lado
“Dentro da Igreja, um dos defensores do golpe era o Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Jaime de Barros Câmara. Ele, por sua vez, teve um de seus sobrinhos atingido pela ditadura. Foi na Bahia. Colocaram-no no 5º andar de um prédio e começaram a maltratá-lo. Ele, então, pulou para se livrar daquilo. Suicidou-se. Esse suicídio desse menino serviu para Dom Jaime refletir e rever sua posição. Ele afastou toda possibilidade de dar apoio à ditadura”.
A morte do representante do papa
Dom Waldyr relatou que, na ditadura, teve contato com o representante do papa no Brasil, que é chamado “núncio” (palavra que significa anunciador). “Eu me dirigi ao núncio apostólico, o nome dele era Lombardi. Ele era totalmente contra o regime e, assim, foi instigado pela ditadura a se afastar do Brasil para vir outro núncio. Naquela época, a sede dos representantes do papa era no Rio de Janeiro, mas, nessa luta, Lombardi precisou ir até Brasília. Contrariado, porque as autoridades estavam quase colocando a mão em cima de Dom Hélder Câmara, que era a voz da Igreja contra a ditadura, ele quis se entender com as autoridades. Lá, em Brasília, ele teve um enfarto e morreu.”
“Antes da morte dele (do núncio), houve aqui um problema bastante antipático. O comandante do Batalhão de Infantaria Blindada (BIB), que era localizado em Barra Mansa, bem perto de Volta Redonda, para tomar conta da Companhia Siderúrgica, um bem nacional, achou de convocar as autoridades locais para fazer uma exposição muito negativa de mim. Disseram que eu tinha relações com todas as organizações comunistas internacionais.”
“Responsável pela subversão no Vale do Paraíba”
“O comandante dizia que tinha cartas minhas trocadas com revolucionários do Uruguai, do Paraguai, etc… E convocou delegados, promotores, todas as autoridades da sociedade, para ouvir a exposição dele. Alguns membros da Igreja que foram ouvi-lo me contaram tudo. Ele me acusava de ser o responsável por toda a subversão no Vale do Paraíba. Falava: ‘o bispo comunista incita as pessoas a ingressarem na luta’. E atribuiu a isso a prisão, dentre outros, de Waldyr Bedê, que era um professor aqui em Volta Redonda, um homem muito conceituado e esclarecido, sem compromisso com a ditadura, e que trabalhava comigo. Então, eu tive que reagir um pouco. Pedi uma audiência a ele.”
“Não posso prender um bispo”
“Isso foi depois do AI-5. Fui acompanhado do meu vigário-geral, Monsenhor Barreto, disse que tinha conhecimento do que ele (o comandante do BIB) havia dito. ‘Sei o conceito que o senhor tem de mim’. E disse mais: ‘Se o senhor acha que prendem pessoas pelo crime de trabalharem comigo, o criminoso sou eu, me prenda’. Ele respondeu: ‘Pode me dar um tiro, pode jogar uma bomba no batalhão, não posso prender um bispo’”, lembrou Dom Waldyr.
Nesse dia, o bispo permaneceu lá das 8h às 22h. Queria mesmo ser preso junto com aqueles que trabalhavam com ele, o que deixou os militares incomodados. “Não podemos mantê-lo aqui”, diziam. Dom Waldyr conseguiu com isso a libertação de alguns, mas houve um preço. “Cobraram deles que dissessem tudo o que tinham contra mim. Alguns saíram incumbidos de procurar coisas ruins a meu respeito para permanecerem soltos.”.
Facilitando fugas
“Uma vez, veio me pedir socorro uma pessoa que se apresentou dizendo que trabalhava com Dom Pedro Casaldáliga (bispo prelado emérito de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso). Queria que eu o ajudasse a fugir do país. Como ele trazia o nome de Dom Casaldáliga, já tinha uma credencial… E ele tinha que fugir, pois estar com Pedro não era possível… Fiz o que estava ao meu alcance, me dirigi ao bispo da fronteira, Foz do Iguaçu, e disse: ‘tem um fulano aqui que eu gostaria que você desse uma ajuda para ele passar para o Uruguai’ Ele atendeu. Esse eu sei que encaminhei.”
“E houve também certos companheiros que eu ajudei a fugir daqui (de Volta Redonda) pela perseguição que estava em cima deles. Entre eles, tem um jornalista chamado Aurélio, que ainda é vivo. Ele me disse (naquela época) que estava com receio de que lhe acontecesse alguma coisa. Eu disse a ele: ‘Olha, Aurélio, só há um caminho: é fora daqui, saia daqui’ Ele, então, ‘desapareceu’ por algum tempo. Passada a ditadura, ele voltou e é dono hoje do “Diário do Vale”, que é o jornal da cidade.”
“Confessar-se num livro não redime ninguém”
Dom Waldyr comentou a atitude do ex-delegado Cláudio Guerra, que foi um matador na ditadura e resolveu escrever um livro – “Memórias de uma guerra suja” – contando o que sabe: “O arrependimento é uma coisa muito pessoal. Alguns usam isso em proveito próprio, aproveitando-se da situação atual para se sentirem ainda acolhidos na comunidade, mas não acredito em conversão no caso dele. Se fosse dentro da sujeira que ele estava fazendo, tudo bem. Converter-se agora? Não acredito. E confessar-se num livro não redime ninguém. Se a Comissão da Verdade existir mesmo, ele tem que ser ouvido e acho que não seria perdoado.”
Tortura: “um pedaço da sua carne sofrendo no outro irmão”
“Porque o que a gente espera é que essa Comissão não só descubra os criminosos, mas faça justiça com relação aos que ainda estão vivos. É uma satisfação para os familiares das vítimas e para a sociedade. Os torturadores têm que ser julgados e punidos. Porque isso que eles fizeram foi muito doloroso e essa atitude não se faz sem uma opção pessoal. Torturar uma pessoa, sem ela ser criminosa, e mesmo que fosse, é inadmissível. É um pedaço da sua carne sofrendo no outro irmão.”
Luta armada: “um instrumento de libertação”
Para Dom Waldyr, a luta armada de esquerda foi “totalmente legítima” a partir do momento que funcionou como “um instrumento de libertação para os que lutaram e uma forma de exigir que a prática de tortura não continuasse”. Para ele, “ninguém tem uma vocação suicida, maltratando o seu direito de viver, então eles (os guerrilheiros) fizeram o que era necessário.” E vai além: “Quando um país é oprimido e sofre, por estar sob domínio, a Igreja defende uma guerra justa e admite que aqueles que estão sofrendo e passando mal se levantem para se defender dessas torturas. Uma guerra justa.”
Assista ao bispo Dom Waldyr Calheiros falando da legitimidade da luta armada
Comissão da Verdade
O bispo considera que os nomes escolhidos para integrar a Comissão “são confiáveis, são pessoas que passaram pela experiência (da ditadura) e não falarão genericamente, porque são testemunhas da verdade”. Mas não entende o porquê do espaço de tempo de 1946 a 1988: “Só se for para atrasar o resultado”, disse.
Uma sugestão para a Comissão
“Tem um casal conhecido meu que o filho deles trabalhava no Exército, no batalhão de Barra Mansa, na época da ditadura. Uma vez, ele vinha de lá para Volta Redonda, num jipe do Exército. Era noite e prenderam um rapaz que estava pintando uma propaganda da Casa Confiança. Colocaram-no dentro da caminhonete, onde começaram a socá-lo. Nisso, ele caiu, bateu com a cabeça numa pedra e morreu. Até hoje a família é enganada pensando que houve um acidente, mas tem uma irmã dele consciente de que o mataram. Esse é um caso que a Comissão da Verdade deveria apurar e descobrir o que aconteceu, porque ele morreu dentro do quartel.”
Um comentário sobre FHC
“Eu conheci Fernando Henrique Cardoso quando a ditadura ainda o amarrava. Ele era um dos conferencistas privilegiados pela CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil). Quando o regime começou a se endurecer, a CNBB o convidava para ele expor qual seria a melhor atitude. Nós fomos companheiros dele, quando tivemos oportunidade de estudar como nos libertarmos disso. O que aconteceu depois da ditadura foi que os homens começaram a querer tirar vantagem.”
A importância do passado para o presente
“É importante (que haja o esclarecimento dos crimes da ditadura) primeiro para que o Brasil supere a falta de memória dos que viveram e não se interessaram pelo bem da sociedade. Talvez alguns tenham se afastado, valendo-se daquele velho ditado – ‘Como o fogo não é na minha casa, que os outros tomem conta que não é comigo’. Somente esses – os que não foram atingidos – é que podem ficar indiferentes ao que se passou. É uma espécie de egoísmo exaltado ao máximo. Quem perde a memória do passado não pode saber, diante do presente, que passou aquela experiência”.
“Se eu souber de um torturador, abro o bico”
Perguntado sobre sua opinião a respeito dos jovens que tem pintado muros e colocado faixas em locais onde moram ou trabalham ex-torturadores, Dom Waldyr reagiu positivamente: “Acho que é uma boa contribuição. Uma atitude dessas é uma participação da comunidade ao repúdio que se tem diante da ditadura e do seu modo de tratar, que foi uma miséria, tratavam as pessoas como se fossem animais. Acho que é uma ajuda importante, porque foi injustíssimo aquilo. Então que se faça justiça hoje, quando se tem um ambiente para isso. Se eu souber de um torturador, abro o bico, grito claramente com os instrumentos de que eu puder dispor. Porque a impunidade dos criminosos de ontem é a pior coisa para que outros cometam novos crimes.”
“Quem vai para a delegacia é pobre”
Falando sobre o Brasil de hoje, o bispo pergunta-se: “Quem vai para a delegacia?”. Ele mesmo responde: “É pobre!” E prossegue: “Tudo o que fazem lá com ele (com o pobre) é justificado, porque ele fez isso, aquilo e aquilo outro… Aí aparecem pessoas delatando a vida do povo, testemunhas às vezes falsas. Acho que é indecente por parte daqueles que se aproveitam disso.”
Dilma: “uma esperança”
“Acho que Dilma é uma esperança. Tenho estado de pleno acordo com a maioria das atitudes que ela vem tomando.”, diz o bispo. E conclui: “Espero que ela consiga fazer com que essa Comissão da Verdade funcione, não só reconstituindo a verdade, mas punindo os crimes dos agentes do Estado”.
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