sábado, 13 de agosto de 2011

Um pouco sobre o Niilismo e a Metafisica



Aquilo que se preocupa em buscar o que está “além” da realidade não é a ciência, mas a metafísica, que significa literalmente depois da física. Mas o que está além da física? Ora, a resposta é óbvia: nada. Muito menos razões. Num mundo onde tudo é físico, só aquilo que inventamos pode ser metafísico, ao menos se entendermos por metafísica a clássica investigação de “razões últimas”. Para além do âmbito do realismo científico, a metafísica não tem função; é absurdo que tenha função. Na busca pelo conhecimento objetivo, o bastão foi passado para a ciência. Está morta a metafísica que investiga o mundo “profundamente”, por meio da razão pura. Isso nunca levou a nada, pois tentamos descobrir a realidade não olhando para o mundo, mas para um espelho. As respostas metafísicas para a existência parecem-nos interessantes porque, obviamente, partem do conveniente pressuposto de que a razão humana é capaz de substituir a experimentação e acessar uma suposta “essência do ser” por meio de uma intuição mágica, como que descobrindo o mundo por controle remoto. Parece tentador que possamos explicar a realidade desse modo, mas a metafísica é um tiro no escuro, algo tão inútil quanto usar a imaginação para prever o futuro.

Vejamos a questão do seguinte modo: a metafísica nasceu numa época de ignorância, em que os homens sequer sabiam da existência de bactérias. Sequer lhes passava pela cabeça que nossos cérebros eram feitos de neurônios. Mesmo assim, queriam explicar racionalmente a decomposição e o pensamento. Como não tinham microscópios para ver a realidade com precisão, constatando assim a existência de micro-organismos decompositores, limitavam-se a devanear teorias metafísicas, especulando sobre “realidades ocultas” que nos apodreciam em segredo, e é claro que não tinham a menor ideia do que estavam falando. Ao ver um corpo em decomposição, por exemplo, imaginavam que isso talvez se devesse a alguma ordem natural das coisas que nos impunha a decomposição como um “sentido existencial”. Assim, por ignorar que o que nos apodrece são as bactérias, supuseram que isso seria devido à misteriosa “essência decompositora do ser”. Esse tipo de raciocínio delirante, constituído por uma rigorosa lógica tapa-buracos, é o cerne da metafísica. Ela aborda todas as questões da existência com esse mesmo grau de autismo.

Nessa abordagem, em vez de investigado, o mundo deve ser pensado. Em vez de observar fatos, devemos buscar explicações de razão pura, devaneando sobre alguma essência sobrenatural que determina fatos naturais. Claro que, se o ser fosse racional em si mesmo, algo como uma equação matemática, a verdade seria algo abstrato que transcende os próprios fatos, isto é, a “essência do ser” seria constituída de princípios lógicos. Mas de onde tiramos a ideia de que o ser é racional? E o que é isso de “essência”? Não se sabe. O fato é que essa metafísica delirante nunca teria nascido se houvéssemos dado aos gregos um microscópio e uma tabela periódica.

Vistas desse modo, as mais profundas investigações metafísicas são pura e simples perda de tempo, pois estão em busca de algo que simplesmente não está lá — e a grande maioria das questões da existência, das questões que consideramos mais importantes, são levantadas não pela física, mas pela metafísica, pelo mais vergonhoso blablablá inquisitivo. Se tais observações parecem fortes, isso ocorre porque, mesmo hoje, nossa visão moderna da realidade ainda esconde muitos preconceitos metafísicos.

Pensemos, por exemplo, na razão de ser da vida. De onde tiramos essa ideia maluca? Certamente não da experiência, certamente não do mundo que temos diante de nossos olhos. Essa é uma questão metafísica despropositada, pois se trata de algo que em nenhuma circunstância poderia ser solucionado pela observação do mundo físico, e isso pode ser ilustrado pelo simples fato de que a observação do mundo físico feita pela biologia moderna, apesar de explicar perfeitamente bem como a vida funciona, não é aceita como resposta para essa questão. Senão, vejamos: observamos um espermatozoide e um óvulo fundirem-se; vemos as células multiplicando-se; vemos todas as etapas envolvidas na formação de outro organismo; vemos a vida acontecer bem diante de nós; tudo está perfeitamente claro. Mesmo assim, continuamos insistindo na crença de que há algo “por detrás” dessa realidade, um algo que é mais importante que a própria realidade. Esse algo, obviamente, são nossas crendices metafísicas. A ciência não pode responder a questão da “razão de ser” da vida porque esse modo de conceber a vida não corresponde à realidade. Seria o mesmo que pedir que a ciência respondesse onde ficam os dragões alados que vimos após consumir alucinógenos.

Para ser no mínimo razoáveis, temos de admitir que nunca tivemos motivos legítimos para pensar que a vida tem uma “razão de ser”, pois nada em nossa experiência no mundo nos sugere essa pergunta. Que tipo de fenômeno físico poderia nos ter insinuado essa questão? Olhamos para uma flor e pensamos: ó, que curioso, há nesse vaso uma flor! Por que não há na flor um vaso? Por que a flor não tem dentes? Que mistério! Isso só pode ser porque ela tem uma “razão de ser” — a flor desabrochou para cumprir um sentido transcendental! Sementes e pólen nada têm a ver com isso: trata-se de algo mais profundo, muito superior ao mundo material! Então propomos a nós mesmos o desafio: vou descobrir que razão é essa! Passados alguns anos, voltamos da faculdade de teologia e respondemos que isso só Deus sabe.

Nesse tipo de investigação, saímos desesperadamente em busca da resposta para uma pergunta sem sentido, e ainda nos espantamos por nunca encontrá-la. Claro que essa pergunta só poderia ser respondida se o mundo fosse algo como um playground de humanos, feito à nossa imagem e semelhança por alguma divindade entediada. Porém, como o mundo não se comporta segundo nossas expectativas infantis, em vez de admitir o óbvio, de aceitar que real é aquilo que está bem diante de nossos olhos, achamos mais sensato inventar uma segunda existência misteriosa que carrega a “essência oculta” da nossa — um mundo que só podemos imaginar como uma imensa biblioteca cheia de pergaminhos empoeirados nos quais ficam anotadas as “razões de ser” de tudo o que há no mundo em que estamos.

Portanto, para transformar uma crença absurda qualquer numa gloriosa “investigação metafísica”, basta colocar no fim dela um ponto de interrogação: teremos diante de nós mais um “mistério insondável”, mais uma prova da profunda ignorância do homem em relação ao mundo em que vive. Contudo, sejamos francos: não fomos nós próprios que, sem nenhum motivo respeitável, inventamos que a flor tem uma “razão de ser”, que precisa ter uma razão? Transformamos esse raciocínio circular em algo tão grandioso que, ao investigá-lo, temos a ilusão de estar andando em linha reta. Perdemo-nos em devaneios, e chamamos isso de “meditações transcendentais”, de “busca pelo sentido íntimo do ser”, coisa que não passa do homem correndo em torno do próprio rabo em busca de razões que insuflem sua vaidade. Diante desse algo oculto que nos torna tão monstruosamente ingênuos, a questão do mistério do mundo parece um assunto de piolhos.

Recobremos a sensatez. Se prestarmos alguma atenção, veremos que a verdadeira razão de ser da flor não é realmente uma razão, mas um fato: o fato de ela ter germinado e desabrochado; isso é tudo. O resto são questões metafísicas sem sentido, meros disparates interrogativos que levam nossas investigações para um mundo imaginário que nada tem a ver com aquilo que estamos tentando entender.

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Já deve estar bastante claro por que a postura niilista é incômoda, então prossigamos ao próximo tópico. Como o niilismo está ligado a uma mudança em nossa concepção metafísica da existência, convém esboçarmos o que é a metafísica atualmente, e principalmente o que ela era. A metafísica que criticamos aqui é a chamada metafísica tradicional, a qual parte de pressupostos antropocêntricos, lança-se em investigações sem pé nem cabeça, buscando algo que não existe para explicar o que existe. A metafísica moderna, por outro lado, busca apenas delinear uma visão coerente do que é a realidade, deixando à ciência o papel de descobrir o que existe. Em vez de sonhar, ela pensa a partir dos fatos que conhecemos, mas sem fazer extrapolações aberrantes. O contraste entre ambas nos ajudará a entender melhor o contexto do niilismo.

A metafísica é uma área da filosofia que busca investigar os aspectos mais fundamentais da existência por meio da razão. Ela trata daquilo que não nos é imediatamente acessível através dos sentidos, que não pode ser investigado direta e experimentalmente, isto é, através da ciência. Faz perguntas como “que é existir?”, “que é a razão?”, “que é a realidade?” etc. A metafísica faz perguntas tão básicas que a ciência não pode respondê-las diretamente, e a própria prática da ciência pressupõe muitos assuntos que apenas a metafísica investiga. A ciência somente observa fatos e os registra metodicamente — ela investiga com os olhos; a metafísica, com a razão.

Quando afirmamos que “todos os seres vivos nascem, crescem, reproduzem-se e morrem”, fazemos uma afirmação científica, que pode ser observada. Quando afirmamos que “a vida não tem sentido”, fazemos uma afirmação metafísica, pois se trata de algo que concluímos a partir de um processo de abstração intelectual, e abstrações não podem ser observadas. Portanto, quando conceituamos a realidade a partir de fatos, estamos fazendo filosofia, não ciência. A ciência não pensa, mas precisamos pensar para fazer ciência coerentemente, e esse é o papel da reflexão metafísica no contexto moderno: orientar nossas investigações. Em grande parte, a metafísica moderna tornou-se um meio de evitar os erros ingênuos da metafísica tradicional.

Como vimos acima, a metafísica tradicional é essencialista, ou seja, supõe que tudo o que existe possui uma “essência” que faz com que seja aquilo que é. O papel da reflexão metafísica seria, nessa ótica, investigar racionalmente tal “essência”, já que os fatos observados não seriam mais que sua manifestação. Já foi dito que essa essência é fogo, água, números, razões, deuses etc.; hoje diz-se que essa essência é tolice. Tal metafísica não se preocupa em entender o mundo em que estamos: busca entender um mundo transcendental de essências imaginárias do qual o nosso seria o resultado. Suas investigações pressupõem uma ordem das coisas que é extrínseca ao ser, ou seja, sobrenatural. Ela busca descobrir uma essência que também é uma explicação: a razão pela qual o mundo existe. Esse tipo de questionamento, obviamente, só seria compatível com um mundo que tivesse uma “essência transcendente”, coisa que remete à ideia de uma “subjetividade por detrás do mundo”. Por isso dizemos que a metafísica tradicional possui uma orientação teológica, pois confere atributos divinos à existência. Assim, esse tipo de investigação metafísica parece filosofia, mas na verdade é teologia.

A metafísica moderna, por outro lado, investiga a realidade não numa ótica transcendente, mas imanente. Em vez de especular sobre o que há “por detrás” do horizonte da existência, ela busca entender o que é a existência que está sob nossos pés, não sobre nossos travesseiros. Ou seja, trata a questão da “essência do ser” não como algo que fica fora do próprio ser, remetendo a “razões últimas”, mas como uma ordem das coisas que é intrínseca ao ser, ou seja, natural. A partir dos fatos que conhecemos, buscamos entender o aqui em função do aqui, não de um suposto “além”.

A própria noção científica que temos da realidade está baseada em suposições metafísicas — basta pensarmos no objetivismo e no naturalismo. O objetivismo afirma que, fora de nossas cabeças, existe uma realidade comum a todos. O naturalismo afirma que o mundo funciona em seus próprios termos, que não possui qualquer essência sobrenatural que o determina de fora para dentro. Pode parecer estranho que a ciência moderna parta de suposições metafísicas, mas elas são necessárias para que não caiamos no relativismo, para que tenhamos um ponto de referência sensato sobre o que é o mundo. Para investigar o mundo cientificamente, temos de supor o que o mundo é, e isso é uma suposição metafísica. Ainda mais, temos de conceituar o que é conhecimento, diferenciar o conhecimento subjetivo do objetivo, definir o que é uma prova, e por que provas são válidas, assim como por quais critérios essa validade é estabelecida, o que é tarefa de outra área exterior à ciência, a epistemologia.

Sem investigar tais questões com seriedade, não saberíamos como interpretar os resultados de nossas observações ou como estruturar experimentos científicos a fim de conhecer a realidade. A função de metafísica moderna, nessa ótica, seria justamente estabelecer um fundamento teórico para nortear a investigação da realidade sensível feita pelas ciências.

Um ponto de vista que rejeitasse indistintamente a metafísica não nos permitiria fazer quaisquer suposições a respeito da realidade que estivessem além da experiência imediata. Não poderíamos, por exemplo, justificar a suposição de que existe de uma realidade objetiva, e com isso cairíamos no relativismo, talvez até no solipsismo. Não havendo nada objetivo, toda a realidade se resumiria a uma construção social — inclusive a matéria, a gravidade, a eletricidade. A criação de um mapa-múndi seria algo tão arbitrário quanto um romance, pois tudo não passaria de uma ficção subjetiva. O relativismo faz bem ao enfatizar nossas limitações, mas levá-lo a sério seria tão despropositado quanto afirmar que uma publicação científica é arbitrária como uma revista de quadrinhos.

Não há, portanto, qualquer sentido pejorativo em dizer que fazemos uma afirmação metafísica ao supor que o mundo é natural e objetivo. Trata-se de algo metafísico apenas porque falamos a respeito da constituição básica do mundo, de algo teórico de que precisamos para alicerçar as ciências. Claro que as descobertas da ciência respaldam perfeitamente tais suposições, mas nem por isso elas deixam de ser metafísicas, pois são algo que nunca poderá ser demonstrado diretamente através da realidade sensível, mas apenas conceituado, pensado.

***

As suposições metafísicas a respeito da realidade são importantes para nos nortear, para nos dar uma visão global da realidade, mas, como se trata de um terreno especulativo, devemos ser muito cuidadosos quanto ao que supomos sobre o mundo em si mesmo. A metafísica pensa no escuro, e pode facilmente perder-se em devaneios. Se supusermos, por exemplo, que o mundo é “racional em si”, passaremos a pensar que nele tudo tem uma “razão de ser”, que há um motivo inteligível que explica, digamos, por que a gravidade atrai os corpos em vez de os repelir. Que tipo de razão seria essa? Não se sabe, mas corpos caindo a 9,8 m/s ao quadrado seriam o resultado dessa “razão”. Mas por que essa essência não faz com que os corpos caiam a 15 m/s ao cubo? Qual é o motivo disso? Não sabemos onde procurar tais razões, mas conforta-nos pensar que o mundo é racional, e isso é tudo de que precisamos para nos convencermos. O fato é que não há metafísica alguma na gravidade. Sabemos que a gravidade atrai os corpos porque vimos isso acontecer. Trata-se de uma afirmação científica, empírica, não de uma racionalização abstrata.

Argumentos puramente racionais, no fim das contas, só refletem o modo como usamos as palavras. Se não pudermos verificá-los, eles não dizem nada — assim como não diz nada o argumento da “causa primeira”. Quando perguntamos por que “motivo” a gravidade é assim, estamos pressupondo que ela poderia ser de outra forma, e que é como é por um motivo que pode ser entendido. Isso pressupõe que as leis naturais são racionais, implicando que a razão, de algum modo, está na essência da realidade. Mas a gravidade não foi pensada, foi observada. Não é uma teoria, mas um fato — e não precisamos pensar quando podemos ver. Portanto, aqui a metafísica não tem função.

Levantar questionamentos metafísicos sobre fatos naturais equivale a humanizar a existência, supondo que haja uma “intenção racional” por detrás do que existe, como se o mundo houvesse sido projetado por seres humanos ou supra-humanos. Mas de onde tiramos a ideia de que o ser é racional em si mesmo? A explicação mais plausível é esta: de nós mesmos, pois isso nunca foi demonstrado por qualquer observação da realidade. Novamente vemos que essa busca pelo “sentido oculto da realidade” é apenas teologia disfarçada. Para ilustrar, percebamos que perguntar o “porquê” do mundo natural seria o mesmo que perguntar o porquê de o Sol brilhar. Claro que, ao fazer esse tipo de pergunta, colocamo-nos no lugar do Sol, pensando nas razões pelas quais brilharíamos se fôssemos essa estrela. Partindo disso, respondemos, por exemplo, que o Sol brilha “para aquecer a Terra”, e é claro que essa suposição não pode ser demonstrada, tampouco condiz minimamente com as descobertas da Astronomia. Essa espécie de resposta é claramente antropocêntrica, pois busca fora do homem, na realidade em si mesma, algo que só existe em nosso universo subjetivo: intencionalidade.

As ciências, ao chegarem aos mesmos resultados a partir de observadores independentes, podem justificar a suposição de que existe uma realidade objetiva, independente de nós. Como nunca constatamos mudanças nas leis que regem os fenômenos, também podemos justificar a suposição de que o mundo é natural. Mas como podemos sustentar que a razão existe fora do homem? Só estaríamos autorizados a pensar na existência como possuidora de uma “razão de ser” se esta houvesse sido criada por uma força sobrenatural inteligente, se houvesse muitos indícios disso nos fatos que observamos, mas não há nenhum.

Esse tipo de raciocínio reverso, que procura intencionalidade nas coisas, só é admissível em questões subjetivas. Por exemplo, assim como prédios possuem alicerces, colunas de concreto, reforços de aço, elevadores, janelas, andares, portas, e assim como cada um desses elementos possui uma estrutura e uma finalidade, se o universo houvesse sido projetado, também nele haveria uma “razão de ser” inteligível que constitui sua essência e que explica por que cada coisa é como é, e não de outro modo. A essência do mundo em si mesmo, no caso, seria equivalente à intenção do engenheiro que o projetou — e só nessa ótica esse tipo de investigação metafísica faria sentido, mas precisaríamos pressupor que ele teve um criador. Isso nos permite entender melhor por que a metafísica tradicional possui uma orientação teológica: ela faz questionamentos que só são admissíveis partindo-se do pressuposto de que o mundo foi criado inteligentemente para cumprir uma finalidade. Por isso, no fim das contas, a metafísica tradicional resume-se à tentativa de fazer engenharia reversa no projeto divino.
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Autor: Cancian
Adaptação: Marivalton Rissatto
OBS:Créditos ao autor.

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